03 Março 2017
Alguns meses atrás, um representante da Cargill viajou até essa remota colônia nas planícies do leste da Bolívia, ao extremo sul da vasta bacia do Rio Amazonas, levando uma oferta tentadora.
A gigante americana do agronegócio queria comprar soja de residentes menonitas, descendentes de camponeses europeus que há mais de 40 anos criaram seus assentamentos nessa densa floresta.
A reportagem é de Hiroko Tabuchi e Claire Rigby, publicada por The New York Times, 02-03-2017.
A empresa financiaria um armazém e um posto de pesagem de forma que os agricultores pudessem vender sua produção diretamente para a Cargill no local, disse o homem, de acordo com residentes locais.
Um desses agricultores, Heinrich Janzen, estava desmatando florestas de um terreno de 15 hectares que ele havia comprado no final do ano passado, correndo para plantar soja em tempo de colher em maio. “A Cargill quer comprar de nós”, disse Janzen, 38, enquanto uma fumaça azulada saía de pilhas de uma vegetação que queimava lentamente.
Sua soja está com alta procura. A Cargill é uma das várias empresas do agronegócio que disputam para comprar de produtores de soja na região, ele disse.
A Cargill confirmou os relatos dos residentes das colônias, e disse que a empresa ainda estava avaliando se ela compraria da comunidade. Essa decisão dependeria de um estudo da produtividade da área e dos títulos de propriedade, disse Hugo Krajnc, chefe de assuntos corporativos da Cargill para o Cone Sul, com base na Argentina. “Mas se um fazendeiro tiver queimado sua floresta, não vamos comprar desse produtor”, ele disse.
Uma década depois de o movimento “Salve a Amazônia” ter forçado a adoção de mudanças que desaceleraram de forma drástica o desmatamento em toda a bacia amazônica, a atividade está voltando com tudo em algumas das maiores áreas de floresta no mundo.
Esse ressurgimento, instigado pelo apetite crescente que o mundo tem por soja e outros cultivos, desperta o temor de que haja um retrocesso nos esforços para se preservar a biodiversidade e no combate à mudança climática.
Na Amazônia brasileira, a maior floresta tropical do mundo, o desmatamento aumentou em 2015 pela primeira vez em quase uma década, para quase 7.989 km² entre agosto de 2015 e julho de 2016. Esse é um salto em relação aos cerca de 6.207 km² de um ano antes e aos pouco mais de 4.848 km² no ano anterior a esse, de acordo com estimativas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Aqui, do outro lado da fronteira, na Bolívia, onde há menos restrições sobre o desmatamento, o fenômeno parece estar se acelerando também.
Cerca de 3.500 km² de terra foram desmatadas para uso agrícola, em média, por ano, desde 2011, de acordo com estimativas da ONG Bolivia Documentation and Information Center, uma área de tamanho quase equivalente a Rhode Island. Esse número aumentou em relação aos cerca de 1.481 km² por ano, em média, nos anos 1990, e dos 2.700 km² por ano nos anos 2000.
Agora, um novo estudo realizado pelo grupo de defesa ambiental aponta para indícios recentes de desmatamento em grande escala feito por fazendeiros bolivianos e brasileiros que vendem soja para a Cargill.
Essa organização com sede em Washington, a Mighty Earth, usou imagens de satélites e informações de mapeamento de cadeia logística do Stockholm Evironment Institute, um think tank ambiental, para identificar o desmatamento no Brasil onde duas gigantes do agronegócio americanas, a Cargill e a Bunge, são as únicas empresas agrícolas conhecidas.
O mapeamento da cadeia logística feito pelo instituto ambiental usa dados de alfândega, frete e armazenamento, bem como dados de produção de municípios brasileiros para rastrear exportações agrícolas até seus produtores.
De acordo com análises da Mighty Earth, as áreas de Cerrado brasileiro nas quais a Cargill opera tiveram mais de 1.300 km² de desmatamento entre 2011 e 2015. A Mighty Earth também associou a Bunge, outra gigante agrícola, a mais de 5.665 km² entre 2011 e 2015.
Na Bolívia, onde não há um mapeamento de cadeia logística disponível, a Mighty Earth enviou funcionários para áreas onde a Cargill opera. A organização usou drones para registrar o desmatamento de florestas e savanas em áreas onde a Cargill tem silos.
O estudo foi financiado pela Agência Norueguesa pela Cooperação em Desenvolvimento e uma ONG, a Rainforest Foundation Norway.
Uma repórter para o “The New York Times” viajou de forma independente para áreas remotas da Bolívia descritas no relatório dos ambientalistas e entrevistou agricultores envolvidos em desmatamentos que disseram ter vendido soja para a Cargill.
Os agricultores descreveram o que eles chamaram de incentivo da Cargill para aumentar suas compras de soja produzida localmente e suas tentativas de melhorar as relações com produtores locais.
Os relatos de desmatamentos recentes têm ocorrido apesar de um acordo histórico assinado três anos antes pela Cargill e por outras empresas que incluía uma meta de “eliminar o desmatamento da produção de commodities agrícolas como óleo de palma, soja e carne até 2020”.
Especialistas na época disseram que o prazo, determinado na Declaração de Nova York sobre Florestas, requereria que as empresas começassem imediatamente a tornar seus fornecedores mais sustentáveis.
Tanto a Cargill quanto a Bunge disseram que o relatório parecia inflar seu papel no desmatamento da região. A porcentagem de soja comprada pela Cargill nas cidades bolivianas nas quais opera chegou a cerca de 8%, segundo a Cargill. Enquanto isso, na região brasileira de Matopiba, a porcentagem da Bunge era de cerca 20%, de acordo com a empresa.
E a soja é só um dos produtos por trás do desmatamento, disse Stewart Lindsay, vice-presidente para assuntos corporativos globais da Bunge.
“Uma empresa sozinha não consegue resolver essa questão”, disse Lindsay. “Um passo positivo seria mais empresas adotarem compromissos de desmatamento zero, aplicassem controles para barrar produtos cultivados em áreas desmatadas ilegalmente de entrar em suas cadeias produtivas, relatar progressos publicamente e investir milhões de dólares em apoio a esforços de planejamento de uso sustentável da terra, tudo coisas que a Bunge fez”. (No entanto, a Bunge não é signatária da Declaração de Nova York sobre Florestas”.)
Em uma entrevista, David MacLennan, CEO da Cargill, disse que a empresa estava estudando as alegações de desmatamento na Bolívia e no Brasil associadas à empresa. “Se houver algo ali, se for provado, faremos algo a respeito”, disse MacLennan. “Se for verdade, não é aceitável”.
“Vamos honrar nossas obrigações e nossos compromissos”, ele continuou. “Nós nos comprometemos em acabar com o desmatamento e em fazer nossa parte nisso. Promessa é promessa”.
A perda de florestas é prejudicial ao clima da Terra. O desmatamento e os incêndios que o acompanham geram um décimo de todas as emissões relacionadas ao aquecimento global, de acordo com a Union of Concerned Scientists, tornando a perda de florestas um dos maiores contribuintes para a mudança climática.
Somente cerca de 15% da cobertura florestal do mundo permanece intacta, de acordo com o World Resources Institute. O resto foi removido, degradado ou está em fragmentos, destruindo ecossistemas e deslocando comunidades indígenas, dizem cientistas.
Por trás do aumento do desmatamento está a estratégia de multinacionais alimentícias que compram commodities agrícolas de áreas cada vez mais remotas em todo o mundo. Essas áreas tendem a estar onde proteções legais de florestas são mais fracas.
A Amazônia brasileira, um símbolo do movimento global de conservação florestal, foi beneficiada por um número crescente de proteções, como uma moratória anunciada em 2006 sobre desmatamentos para produção de soja.
Entre essa época e 2015, o Brasil reduziu em quase dois terços o desmatamento da Amazônia, de acordo com estimativas do Mongabay, um site de notícias ambientais, com base em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
No entanto, o aumento que houve no desmatamento desde então despertou preocupações, de que talvez o progresso esteja longe de estar garantido.
A Bolívia, por outro lado, apresenta uma situação diferente. O presidente Evo Morales, um socialista, fez da garantia da “soberania alimentar” uma parte importante de sua agenda, levando à expansão agrícola da Bolívia.
Existe um número relativamente pequeno de proteções ambientais, e a agência federal fundiária é encarregada dos papeis possivelmente conflitantes de regulação do uso da terra, da agricultura e da silvicultura, e da emissão de concessões para a exploração de madeira e a agricultura.
O país declarou que ele espera liberar quase 56.655 km² de florestas até 2025 para convertê-los em áreas cultiváveis.
Mesmo antes da Declaração de Nova York, a Cargill havia feito esforços significativos para comprar óleo de palma proveniente somente de terras não associadas a desmatamentos recentes, de acordo com um especialista em cadeias logísticas com ampla experiência de trabalho com os esforços de sustentabilidade global da empresa. Ele falou sob condição de anonimato, dizendo que se o fizesse abertamente colocaria em risco suas relações profissionais.
A Cargill continuou a investir milhões de dólares, contratando mais equipes e auditores independentes para verificar que o óleo de palma estaria vindo de plantações estabelecidas, e não de áreas cultivadas recém-criadas de desmatamentos, ele disse. Mas tem sido menos agressiva com outras commodities, ele disse.
Parte do problema era a estrutura descentralizada da Cargill, disse o especialista. Outro problema era a resistência de negociantes de commodities, cujo incentivo é buscar insumos no maior número possível de fontes, para abaixar os custos. Comprar somente commodities cultivadas de forma sustentável significaria uma oferta mais limitada.
Agora grupos ambientalistas estão acusando a Cargill de recuar em seu prazo de 2020. Em declarações dadas recentemente, a Cargill adotou o prazo de 2030 para eliminar o desmatamento de sua cadeia produtiva — um prazo separado, mencionado em outro ponto na Declaração de Nova York, que deveria se aplicar ao fim de todas as formas de desmatamento, não somente àquele relacionado às commodities agrícolas.
“Eles estão deliberadamente distorcendo a Declaração”, disse Glenn Horowitz, CEO da Mighty Earth. “Eles estão quebrando sua própria promessa”.
MacLennan disse que a Cargill está comprometida a eliminar até 2020 o desmatamento de sua produção de óleo de palma, uma commodity amplamente usada em alimentos, detergentes e cosméticos. Mas, ele disse, a Cargill sempre entendeu que a declaração daria até 2030 a todos seus signatários para acabar com o desmatamento.
“Acho que eu e outros não apreciamos a ampla complexidade da tarefa”, disse MacLennan. “Digamos que estamos negociando ou comprando e vendendo farelo de soja. De onde vieram os grãos de soja? E eles vieram de uma terra desmatada? Talvez não estivéssemos comprando a soja diretamente. Não sei.”
Holly Gibbs, uma especialista em desmatamento tropical e agricultura na Universidade de Wisconsin-Madison, disse que a interpretação do prazo como 2030 é devastadora. “Se formos esperar até 2030”, disse Gibbs, “não sobrará floresta nenhuma”.
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Desmatamento da Amazônia, que já esteve sob controle, retorna com força - Instituto Humanitas Unisinos - IHU