05 Fevereiro 2017
Uma rica participação de especialistas no Instituto Sturzo para o congresso “De Puebla a Aparecida: Igreja e sociedade na América Latina (1979-2007)”. Os dois dias de estudo e de debate, promovidos pelo ILA e organizados pelo Instituto San Pio V, abriram um percurso de estudos, dirigido por Antonio Iodice, sobre o “laboratório” latino-americano: que se projeta sobre a Europa também a partir de algumas prioridades indicadas pelo Papa Bergoglio, “especialmente a da paz, da reconciliação e do combate a todas as formas de violência”.
A reportagem é de Geraldine Colotti, publicada no jornal Il Manifesto, 01-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois das intervenções institucionais (o vice-ministro do Exterior, Mario Giro), as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Puebla e de Aparecida enquadraram a labuta da Igreja no século das revoluções e os desafios do novo milênio.
Falou-se sobre a questão indígena (Massimo De Giuseppe), a violência (Gianni La Bella), as longas transições depois das ditaduras (Marco Gallo), pluralismo religioso e pentecostalismo (René de la Torre), a temporada das esquerdas pós-revolucionárias (Ugo Pipitone), a teologia do povo (Carlos Galli) e os cristãos na Argentina (Miranda Lida).
Na estruturação geral, um discutível fio de continuidade entre as políticas vaticanas nos tempos de Karol Wojtyla, da guerra contra o “perigo vermelho” e da excomunhão aos padres “comunistas”, e as de Bergoglio dos “3 Ts” (terra, teto, trabalho), do diálogo inter-religioso e da crítica ao modelo capitalista.
Discutimos a respeito com o teólogo argentino Lucas Cerviño, da Universidade Católica da Bolívia, que agora vive no México e que proferiu uma conferência intitulada “A Igreja e a crise ecológica”.
Qual é a relação que a Igreja de Bergoglio pode ter com as sociedades latino-americanas de hoje?
Escutar a alegria e o sofrimento do povo, escutar sempre o grito do pobre e do povo, e levá-los a uma pastoral que leve em conta as necessidades específicas das sociedades individuais e do continente. Uma preocupação presente na Conferência de Medellín, no Concílio Vaticano II e nas diferentes fases e versões da teologia da libertação. Francisco acolheu essa herança e colocou no exercício universal da Igreja as temáticas atualizadas em alguns países do continente latino-americano.
Este papa fala abertamente de crítica ao modelo capitalista e à lógica do dinheiro, e mostra, sobre muitos temas, uma abordagem diferente dos seus antecessores imediatos. Para você, há continuidade ou descontinuidade com o pontificado de Wojtyla?
Sem dúvida, há muitas diferenças. O papa polonês era condicionado pela sua experiência com o comunismo soviético e a projetou na busca da verdade e nas escolhas diplomáticas feitas em nível internacional. Francisco vem da América Latina, de uma opção próxima da classe pobre e, portanto, também daquela parte da teologia da libertação que desenvolveu uma teologia do povo, mas sem ceder às categorias marxistas, que impulsionaram muitos sacerdotes latino-americanos do século passado também a escolhas extremas. Ele é um papa filho do seu continente e fala desse contexto. Por isso, às vezes, na Europa, ele é mal interpretado.
Na sua cruzada contra o comunismo e contra os teólogos da libertação, o papa polonês impôs novas hierarquias e novas relações entre a sociedade latino-americana e a Igreja. Como essas decisões incidiram no avanço das outras religiões no continente?
Eu acho influenciaram. Certos grupos religiosos têm uma estrutura hierárquica mais líquida – nas palavras de Bauman – que lhes permite uma discussão mais ampla. Por isso, Francisco, também retomando a crítica àqueles que privilegiaram a dimensão da transformação social em relação à da proximidade espiritual, ataca os bispos “de escritório” e aquele catolicismo cômodo que está convencido de que tem o monopólio, porque gerencia um espaço próximo do poder. Francisco prega a proximidade do pastor ao pobre. E também encontra oposições surdas. Por isso, apesar de ser um bispo que, como cardeal, também tivera divergências com a Companhia de Jesus, quando foi eleito buscou apoio: ele precisava de um exército no mundo para a sua reforma, procurou o apoio da revista La Civiltà Cattolica e de outros espaços que tivessem uma reflexão e orientação similares. Mas ele fez muitos gestos significativos. Na sua viagem à Bolívia, não seguiu as indicações da Conferência Episcopal. Saindo do protocolo, parou para rezar no lugar onde desapareceu o jesuíta “vermelho” Luis Espinal, torturado e morto pela ditadura.
Pelos 200 anos da independência argentina, Bergoglio enviou uma mensagem sobre a Pátria grande e sobre a integração latino-americana. É correto falar de um papa bolivariano?
Sim, é um papa que acredita na integração latino-americana, que, pela primeira vez, levou à atenção do mundo esses conteúdos. Eu poderia dizer que é um papa peronista, por causa da sua genial capacidade de estabelecer uma relação direta com o povo, escutando as suas exigências reais, unindo-se aos movimentos populares para pedir teto, terra, trabalho, e, com isso, voltar ao espírito da Conferência de Medellín.
A encíclica Laudato si’ expressa posições radicais, mas um dos conselheiros do papa foi o cardeal hondurenho Óscar Maradiaga, não exatamente um progressista...
As teses contidas na encíclica Laudato si’ retomam, com outras palavras, as que foram expressadas pelo teólogo da libertação brasileiro Leonardo Boff em 1992: entender tanto o grito do pobre quanto o da terra, no sentido de uma ecologia social muito sentida na América Latina, que considera inseparáveis o tema da terra e da crise ecológica e o da pobreza e da exploração. Um esquema que põe em crise o modelo socioeconômico-cultural, o modelo capitalista. Por isso, mais do que uma encíclica verde, parece uma encíclica vermelha ou rubro-verde.
Mas isso é típico de uma certa tradição latino-americana, que tem uma forte consciência da crise ecológica e que se alimentou nos últimos anos de várias contribuições, como a do Movimento dos Sem Terra brasileiro. Ultimamente, houve uma interessante decisão do Pontifício Conselho Justiça e Paz: a instituição de uma Rede Panamazônica, que inclui leigos e religiosos para trabalhar juntos em defesa da Amazônia. O pontífice enviou uma carta que ajudou a superar os particularismos e as pequenas disputas territoriais, em vista de um modelo alternativo em defesa do pobre: porque, se quisermos proteger a biodiversidade, é preciso proteger a sociodiversidade.
Eu acredito em uma teologia do diálogo intercultural: diálogo, e não colonização cultural. Eu vivi por muito tempo na Bolívia. Considero fundamental a contribuição dos povos indígenas para a questão ecológica. Acho que a Igreja deve se abrir mais à grande sabedoria indígena para ter a atitude certa em relação ao ambiente. O caminho está aberto, mas por enquanto Francisco ainda está muito condicionado pelas suas raízes europeias. É preciso recuperar mais a dimensão mestiça e indígena para desenvolver uma proposta ecológica alternativa.
Para Donald Trump, a crise ecológica não existe. Como a Igreja de Bergoglio reage a esse presidente dos Estados Unidos?
Eu vivo há alguns meses no México, onde há um sentimento de grande incerteza: fala-se de muros, expulsões, fechamentos. Ainda é muito cedo para ter uma ideia precisa, mas está claro que haverá uma mudança de orientação, e é preciso defender a soberania do continente. Mas a América Latina adquiriu uma forte consciência da sua identidade. O povo, hoje, tem um maior sentido de pertença.
A Igreja de Bergoglio também vai avançar no tema do gênero?
Francisco criou uma comissão de oito teólogos e teólogas para discutir o tema da ordenação de diaconisas, como era na Igreja primitiva e como é em outras Igrejas não católicas. Mas ele também está à escuta de outras correntes interessantes de teologia ecofeminista, como aquela que é proposta pela brasileira Ivonne Gebara. A teóloga escreveu um artigo muito crítico sobre a encíclica Laudato si’, afirmando que ela ainda é muito patriarcal e antropocêntrica. O desafio que o ecofeminismo representa para a Igreja talvez seja ainda mais profundo do que o da teologia da libertação. O papel da mulher é fundamental, ajuda a se posicionar na espiritualidade a partir de si mesmo, da necessidade de assumir a nossa dimensão complementar do masculino e do feminino. A mulher deve ter mais espaço de decisão. Por exemplo, no consistório que elegeu o papa, também deveria haver um grupo de mulheres. Sobre isso, Francisco tem uma grande responsabilidade.
De Cuba à Colômbia, passando pela Venezuela, Bergoglio parece exceder às vezes a própria diplomacia do Vaticano...
Francisco está implementando um novo paradigma. Ele tem uma capacidade dialética que desconcerta, parte de uma escolha humanista e inclusiva, que visa a chegar ao consenso, mesmo que leve mais tempo. Ele conhece a América Latina, sabe que o povo, depois, faz as suas sínteses, encontra os seus mecanismos para sobreviver. Francisco chega ao coração dessas exigências e as apresenta através da fé.
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A América Latina no ritmo de Bergoglio. Entrevista com Lucas Cerviño - Instituto Humanitas Unisinos - IHU