20 Janeiro 2017
“A pior heresia é colocar na boca de Deus algo que ele jamais disse”. Em síntese: usar Deus para ganhar poder, para impor-se sobre os outros. Quando isso acontece, deve-se denunciar. Esta é uma das reflexões do mestre da Ordem dos Pregadores, frei Bruno Cadoré, em uma conversa com jornalistas. Os dominicanos encerram esta semana seu jubileu especial, a 800 anos da sua fundação o por São Domingos de Gusmão.
“Enviados a pregar o Evangelho” é o tema do Congresso Missionário que iniciou na terça-feira, 17 de janeiro, e se estenderá até o dia 21. Nesse dia, os participantes terão a oportunidade de participar de uma missa especial celebrada pelo Papa Francisco na Basílica de São João de Latrão de Roma. O encontro reservou espaço para temas como “migrantes”, “povos originários”, “diálogo inter-religioso e ecumênico”, “justiça, paz e cuidado da Terra”, “apostolado nas prisões”, “apostolado da saúde” e “comunicação”.
A entrevista é de Andrés Beltramo Alvarez, publicada por Vatican Insider, 18-01-2017. A tradução é de André Langer.
Após oito séculos de vida, ainda tem sentido ser dominicano?
O sentido é converter-nos em uma família da pregação e dar o desejo à Igreja de ser esta família; isto tem sentido.
Você assinalou que hoje é muito difícil propor a mensagem cristã como uma “boa notícia”. Por quê?
Porque a linguagem das culturas modernas está muito distante da linguagem da fé como estamos habituados. Nós falamos da gratuidade, da gratidão, do receber. Na cultura moderna fala-se mais em tomar, comprar, dos gastos, do dinheiro. A linguagem não é a mesma, mas quando há dois idiomas diferentes é muito importante fazê-los dialogar para atingir uma linguagem comum. Para isso, o encontro é fundamental. O encontro exige dos cristãos darem-se conta de que a cultura cristã não é óbvia para todos. Facilmente temos essa ideia. Lembro quando dava aulas de bioética para estudantes de Medicina; quis falar-lhes do sofrimento e citei Jó, mas ninguém o conhecia. Eu pensava que todos o conheciam. A cultura cristã deve seguir pelos caminhos da humanidade para escutá-la.
A crise da vida religiosa na atualidade surge de certa incapacidade de dialogar com estas diferentes linguagens?
Existem muitas razões para esta “crise”. A verdadeira crise da vida religiosa é colocar o mundo em crise; essa é a sua missão. Não quer dizer fazer desordens, mas dizer ao mundo que aquilo que parece estar muito bem organizado, talvez pudesse ser ordenado de maneira diferente. A propriedade, as relações, a fraternidade, a inclusão de todos. Então, a crise da vida religiosa pode vir quando já não sabemos como fazer isso.
Neste momento pensamos mais em nossas estruturas, em nossas organizações e não no sistema. Devemos pensar mais de forma sistêmica. A vida religiosa é uma escolha interior, mas também coletiva, pública. E esta escolha serve para entrar em diálogo com o mundo, não para ser escondida. Para colocar o mundo em crise.
A crise na vida religiosa é vista apenas na diminuição de vocações ou existem outros elementos que devem ser levados em conta?
Para mim, o mais importante é evitar a crise de se fechar ao diálogo com o mundo. As vocações são variáveis. Tivemos muitos freis, poucos freis, um pouco mais, um pouco menos, não importa. A Bíblia diz que não se deve contar, que os números não são importantes. A crise da vida religiosa se daria, também, se na Igreja católica não se pudesse entender que a vida religiosa é um serviço específico e não uma reserva de potencialidade. Um sinal específico de fraternidade, de alegria, de gratuidade.
Os dominicanos aderiram concretamente ao desafio proposto pelo Papa Francisco de estar perto dos migrantes e refugiados?
Neste mundo o dinheiro viaja com muita facilidade, as pessoas não. Para nosso congresso, algumas pessoas do Sul do mundo não conseguiram seu visto para participar. É muito fácil fazer esta comparação. Existem muitos irmãos dominicanos cujas famílias são migrantes ou diretamente refugiadas. Por exemplo, na República Centro-Africana. Para eles, a realidade dos refugiados não é dos outros. Os que sofrem dificuldades têm um destino comum conosco. Nossas religiosas no Iraque perderam todas as suas casas, os conventos. Estão buscando como viver, assim como as pessoas comuns.
A situação dos migrantes e refugiados é muito importante no mundo todo. Estamos tratando de ver como acolher estas pessoas na Europa e envolver-nos no espaço político, para ajudar os nossos países a não produzir mais refugiados, a não usá-los, a não crescer nas costas deles. Ajudar a pensar a política e as pessoas com competência. Na Itália, França e outros países europeus, cada comunidade nacional fez um projeto para acolher estas pessoas, inclusive abrimos algum convento vazio para isso, por exemplo, em Pisa. Isso é o normal.
Há 800 anos, São Domingos lutava contra as heresias. Em tempos de diálogo inter-religioso, é válido falar disso?
Não se usa facilmente (esse termo), mas devemos esclarecer que a heresia é colocar algo na boca de Deus que ele nunca disse ou fez. Quando alguém coloca na boca de Deus coisas que ele não faz, é preciso dizê-lo. Este é o ensinamento de Jesus. Ele mesmo disse: “Vocês dizem que este é o poder de Deus, a vontade de Deus, mas isso não é verdade”. Quando começou a fazê-lo, alguns replicaram: “devemos matá-lo”.
Qual é hoje a heresia que mais o preocupa?
A pior heresia é usar Deus para exercer poder sobre os outros. Isso é uma tentação de todos, é a tentação mais importante que Jesus queria combater. Não se pode usar Deus.
É o terrorismo, que assassina em nome de Deus?
Todas as formas que usam Deus para justificar um poder humano sobre os outros seres humanos. Existem muitas maneiras de fazer isso. O terrorismo com armas é uma delas, mas também a ideologia do liberalismo absoluto, dizendo que não existe outro sistema possível para a nossa sociedade.
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“A pior heresia é usar Deus para ganhar dinheiro”. Entrevista com Bruno Cadoré, mestre dos Frades Dominicanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU