13 Dezembro 2016
Há 40 anos, Rodrigo Londoño entrou para as FARC, e nesse dia passou a se chamar Timochenko, como hoje é conhecido em todo o mundo. Nesta conversa com o Página/12 em Havana ele conta como se chegou ao acordo de paz, explica as consequências da vitória do “Não” no plebiscito e antecipa os passos seguintes.
A entrevista é de Pablo Waisberg e publicada por Página/12, 11-12-2016. A tradução é de André Langer.
A Colômbia está em guerra há 52 anos. O conflito estourou após um bombardeio ordenado pelo governo para sufocar um grupo de camponeses que reclamava uma política agrária. Essa decisão, que funcionou como um catalisador para que 48 camponeses e camponesas decidissem formar as proto Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), teve a aprovada dos Estados Unidos. Meio século depois, o delegado pelos Estados Unidos que participa dos diálogos de paz, Berni Aronson, reconheceu que “foi um equívoco político”, disse ao Página/12 o chefe das FARC, Rodrigo Londoño, que se rebatizou como Timochenko há 40 anos, quando entrou na guerrilha camponesa.
Esse “equívoco” custou à Colômbia 60 mil desaparecidos, mais de 200 mil mortos – dos quais somente 12% são de responsabilidade das FARC, segundo a ONU –, sete milhões de camponeses deslocados e cerca de quatro milhões de colombianos exilados. Foi também uma jogada que lubrificou a criação de grupos paramilitares financiados pelos setores econômicos mais concentrados da Colômbia, que em base a essa crise acumularam vastas extensões de terra e se beneficiaram com a indústria da guerra. Ali se cruza também o desenvolvimento do narcotráfico e sua relação com as FARC.
Tudo isso foi posto em discussão durante os últimos seis anos. Foi um processo complexo, que incluiu o assassinato do dirigente máximo das FARC antes de Londoño, Guillermo León Sáenz Vargas, codinome Alfonso Cano. Essa morte não frustrou a negociação, iniciada pelo presidente Juan Manuel Santos. Dessa maneira, chegou-se a um primeiro Acordo de Paz, mas que foi rejeitado em um plebiscito: teve uma abstenção superior a 60% e reprovou a negociação por menos de meio ponto de diferença (50,21% contra 49,78%).
Isso também dinamitou a mesa: sentaram-se novamente para negociar, incorporaram alguns dos questionamentos daqueles que militaram contra o acordo e assinaram um novo compromisso de paz, que, no dia 1º de dezembro, foi referendado pelo Congresso. Agora, abre-se, concordam os diferentes setores da negociação, a etapa mais difícil: a implementação do acordo, que deve incluir uma lei de anistia, uma reforma agrária, a volta à vida civil dos guerrilheiros e o funcionamento de um foro judicial especial que julgará as responsabilidades de guerrilheiros, paramilitares e membros do Exército.
Houve várias tentativas para conseguir a paz, mas todas fracassaram. Como começou esta última negociação?
[O presidente Juan Manuel] Santos mandou uma “carta razão”. Disse ao intermediário “diga-lhes isto e isto” e o homem escreveu textualmente, entre aspas. A carta foi enviada pelo facilitador, mas colocou entre aspas o que Santos queria dizer. O primeiro foi uma reunião na Colômbia, secreta e na fronteira com a Venezuela. Os delegados do governo entraram pela Venezuela.
O que se conversou ali?
Foram definidos os parâmetros: onde seria feita, quantas pessoas e quem negociaria. E isso foi difícil. Nós propusemos que fosse na Colômbia. O governo propôs a Suíça ou o Brasil. Nós cedemos e dissemos Venezuela. E eles disseram que não. E, tipo quatro horas da tarde, o helicóptero tinha que deixar o local, porque começava a escurecer. Nós tínhamos nos colocado de acordo em tudo, menos em relação ao local da negociação. E tínhamos como última carta Cuba. E quando o soltamos, os caras pegaram o brinco de felicidade e pronto (risos).
O governo preferia Cuba antes que a Venezuela?
Sim. Acontece que a Venezuela serviu de apoio. Porque estávamos em pleno confronto e havia muita desconfiança. E aí Cuba e Noruega se oferecem como avalistas. Depois se fazem duas ou três reuniões a mais na Ilha La Orchila, na Venezuela.
Ainda estava tudo em segredo?
Sim. Estávamos criando as condições para iniciar a etapa exploratória. Depois, avançamos com os levantamentos das ordens de prisão para que os quadros pudessem se deslocar. E nesse meio tempo acontece o assassinato de Alfonso Cano (chefe das FARC, morto no dia 4 de dezembro de 2011). Isso nos deixou paralisados. Mas reiniciamos. É quando Santos pede a Hugo Chávez para que falasse comigo. Viajei à Venezuela e passei uma noite inteira, das 20h às 4h, falando com Chávez, buscando fórmulas e o compromisso dele de trabalhar pela paz.
E por que acreditam que assassinaram Alfonso em meio às conversações?
Isso Santos deverá explicar à história. Há pouco, em Cartagena, lembro que falamos um momento com ele e não sei como surgiu o tema do Alfonso, e ele me disse: “algum dia nos sentamos e contamos algumas verdades”. Não sei o que ele quis me dizer com isso, mas é uma pergunta que temos e esperamos alguma resposta. Se este processo tivesse contado com a participação de Alfonso teria sido muito mais enriquecedor.
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Antes de se chamar Timochenko, Rodrigo Londoño era um menino camponês. Vivia em La Tebaida, um povoado que na década de 60 tinha cerca de 5 mil habitantes. Seu pai, Arturo, era um camponês semi-analfabeto, que tinha aprendido a ler sozinho. Tinha sido liberal e se tornou comunista. Nas primeiras imagens que esse menino tem de seu pai, o vê junto com outros homens, em torno de um rádio de válvulas e escutando atentamente a Rádio Havana. Primeiro acompanhavam o noticiário e depois “Vozes da Revolução”. Rodrigo lamenta que nunca tenha perguntado ao seu pai como se tornou comunista, mas ainda recorda – sorri quando o faz – que memorizava os discursos que Fidel Castro fazia em 1964, quando se consolidava a revolução cubana e ele tinha 7 anos.
“Eu memorizava trechos do discurso e parava na porta de casa e repetia os discursos de Fidel às pessoas que passavam”, disse Timochenko e ri, sentado em um hotel de Havana, tomando um “tinto”, como chamam ao café preto, que é uma das coisas que procurou que nunca faltasse no meio da selva. Tomará mais três cafés durante a entrevista. E quando pede cada um, o faz com um sorriso: parece que só de pensar no café já sente prazer.
Essa foi a gênese do seu comunismo?
Vários fatores confluíram para isso. Um era esse. No primário, comecei a interagir com um grupo social maior. Comecei a ir às casas dos meus companheiros. Nós éramos pobres, mas as necessidades básicas estavam resolvidas. Mas, eu ia às casas onde via que não se almoçava ou não se tomava café da manhã, companheiros que vinham com a mesma roupa ou com roupa remendada. E via que havia outros que se encontravam numa situação muito mais confortável. Isso me impactava. Vou crescendo nesse ambiente.
Aos 12 ou 13 anos, entrei na Juventude Comunista. E a militância implica em adquirir consciência, estudar, entender o porquê das coisas. Eu gostava muito de ler. Quando entrei na escola eu já sabia ler. Minha mãe me ensinou. Desde muito jovem li todas as obras de Marx, Lênin e Engels. Imagino que entendi muito pouco (ri), mas a explicação do que é a exploração.
Nesse momento, as FARC já eram uma organização em pleno funcionamento.
Eu já ouvia falar de Marulanda. E nunca esqueci que meu pai me fazia ler o jornal El Tiempo e lembro que uma vez li a história de um combate que era narrado pelo Exército. O título era “Mi cabo se batió como un tigre” e era um cara contando como tinham lutado contra a guerrilha. Era na época do governo de Salvador Allende, no Chile, que encorajou muito a luta popular. Mas, depois veio o golpe e veio a decepção. E eu já começava a estar nas campanhas eleitorais do Partido. E já tinha saído de casa. Considerava que devia me dedicar a lutar por essas ideias, mas não tinha claro como. Já ouvia falar sobre os desaparecidos. Um dia escutei um companheiro dizendo a outro que “as eleições não serviam para nada, que tinha que entrar na luta armada”. Tiveram uma discussão. Eu estava ao lado, mas escutei o que lhe disse: “bom, mas se quer jogar chumbo diga, que vamos mandá-lo para lá”. Isso me chamou a atenção. Então, eu disse a ele que queria ir.
O PC fazia parte das FARC?
Tinha os contatos. Sabiam com quem tinha que falar. Não eram a mesma coisa, mas o PC colombiano apoiou os primórdios da luta guerrilheira.
E o que aconteceu?
Isso provocou inquietação (no Partido). Eu já era membro da Direção Regional da Juventude Comunista de El Quintío. Tinha 17 anos. Estava no segundo ano da faculdade. Foi quando tomei a decisão. E me mandaram um guerrilheiro de uns 30 anos para falar comigo. Ele tentou me convencer para não ir: “isso é muito difícil, vai passar fome, precisa esquecer a família”. Eu disse: “a decisão já está tomada; eu vou”. Assim cheguei à guerrilha.
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Quarenta anos depois que entrou na selva, Timochenko tem a possibilidade de voltar a se chamar Rodrigo Londoño. O mesmo acontece com outros 7 mil guerrilheiros, com um número indefinido de militantes do Partido Comunista Clandestino da Colômbia (a organização política das FARC criaram há alguns anos) e outros tantos grupos de apoio. “Nenhuma guerrilha pode sustentar-se sem o apoio de massas”, disse Timochenko para deixar claro que sua sobrevivência não foi obra do destino, mas do fato de “fazer política e utilizar as armas”.
Mas, o que pode mudar nos próximos anos é a realidade colombiana. Por isso, há tantos atores lutando pela paz. E, pelos mesmos motivos, há outros que trabalham contra.
A Igreja colombiana participou?
Um dos fatores que me chamou a atenção foi o pouco compromisso da Igreja ao longo do processo. Agora, depois do plebiscito, veio a Cuba a alta cúpula da Igreja. Dom Luis Augusto Castro Quiroga veio acompanhado de outros bispos. Foi uma conversa importante, interessante.
Mas, já com o projeto bem avançado.
Sim, mas é preciso. E asseguraram que vão se empenhar em função da implementação. E é preciso, porque a Colômbia é de tradição católica e em todo o povoado há um padre e seu papel é muito importante.
Na Colômbia, teve força o Movimento de Padres do Terceiro Mundo. Ali aconteceu a Conferência de Medellín.
Há diversas tendências. O bispo de Cali, Rubén Darío Monsalve, esteve comprometido.
E o Papa Francisco?
Ele nos apoiou. Houve uma relação mais ou menos fluida com o Vaticano. Cartas foram enviadas e ele mandou o apoio em diferentes momentos. Entendemos inclusive que, apesar de ter sido convidado por Santos, disse que o compromisso de ir à Colômbia está vinculado à obtenção da paz. E agora Santos ia passar por Roma voltando de Oslo.
Depois de receber o Prêmio Nobel da Paz.
Sim.
Deram o prêmio apenas a Santos, mas há duas partes na negociação.
(Risos.) Isso deveria ser explicado por aqueles que o fizeram. Isso não nos motiva. O melhor prêmio que alguém, como revolucionário, pode receber é alcançar os objetivos que nos propusemos: se conseguirmos consolidar este processo, se conseguirmos a implementação dos acordos e se produzirem as condições para erradicar a violência da vida política do país, esse é o melhor prêmio que podemos deixar para as futuras gerações.
Quem se opõe a esse acordo?
Aqueles que viveram da guerra. A guerra é um negócio que produz muito dinheiro, permitiu manter o domínio e impediu o surgimento de movimentos sociais e populares. E como se beneficiaram tanto da guerra é normal que não queiram que isso venha à tona. Há pessoas que se enriqueceram. Eles se apropriaram de vastas extensões de terras, a indústria armamentista. Esses setores estão resistindo ao processo.
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Durante as negociações, o ex-presidente Uribe foi o principal crítico do acordo. Fez uma campanha forte contra o processo que iniciou o seu ex-funcionário e atual presidente, Santos. Ele se negou inclusive a sentar-se à mesa de negociações para propor suas críticas e buscar caminhos de consenso.
O que está em jogo nestes dias não é apenas a paz; é a possibilidade de as FARC entrarem no sistema político e disputarem o poder nas próximas eleições de 2018. Para isso, falta ainda pouco mais de um ano, o que será um período de tempo bastante longo, mas esse tempo permitiria também organizar algum tipo de força eleitoral.
Quando será o momento para retomar o diálogo com Uribe?
Isso está no campo da especulação. De qualquer forma, depende dele mesmo. Desde o início do processo, através de terceiros, insistimos em que participasse, mas sempre se negou. Até o último momento fez-se a ele um apelo público. Inclusive depois do plebiscito ele disse que não tinha nada a fazer em Havana. Mas, depois, começou a nos pedir para que o recebêssemos, mas aí dissemos que não. Não havia nada a dizer. As coisas têm seu momento, mas não descarto que na dinâmica da política busquemos acordos baseados em levar adiante este processo.
A que se refere com uma “paz verdadeira com justiça social”?
Por exemplo, o desenvolvimento do campo. Temos um potencial agrícola de 14 milhões de hectares, mas apenas quatro milhões são usados. E um potencial pecuário de 19 milhões de hectares e estão sendo utilizados 30 milhões, e isso deve mudar. Estão usando a terra que é para a agricultura para a pecuária extensiva. Estamos importando 50% da alimentação quando nos anos 1980 não necessitávamos importar um único quilo de alimento. Isso foi um debate, porque o governo falava de “segurança alimentar” e nós falávamos de “soberania alimentar”: uma coisa é tirar os alimentos de onde se quer e outra, muito diferente, é produzir a própria alimentação.
Os partidários do “Não” queriam impedir vocês de chegar a cargos eletivos.
(Risos.) Não faz sentido. Vamos deixar as armas de lado para nos dedicar à política.
Vocês vão ter cinco lugares na Câmara de Representantes e cinco no Senado. Isso é automático?
Sim, um mínimo de cinco e cinco.
Para 2018, vocês propõem um “governo de transição”.
É uma ideia que lançamos para a discussão, porque os do “Não” já estão fazendo campanha. Álvaro Uribe está nos Estados Unidos pressionando e buscando apoios. Por isso, aqueles que querem a paz devem começar já. E um dos grandes problemas que temos no movimento popular é que estamos muito dispersos. Mas, além disso, nesta confluência pela paz há muitos setores que convergem, mas têm interesses diferentes ou versões diferentes. Devemos nos unir em função deste objetivo.
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“Os opositores ao acordo de paz são os mesmos que viveram da guerra”. Entrevista com Rodrigo Londoño - Instituto Humanitas Unisinos - IHU