25 Agosto 2016
“Depois da experiência no México e em Cuba, não me sentia mais apto a fazer uma viagem difícil como aquela para a Jornada Mundial da Juventude, em 2013, no Rio de Janeiro. Onde, pela perspectiva dada por João Paulo II, a presença física do Papa era indispensável”. “A obediência ao meu sucessor nunca foi colocada em discussão. A sua benevolência é, para mim, uma graça nesta última fase da minha vida”.
A entrevista é de Elio Guerriero, publicada por La Repubblica, 24-08-2016. A tradução é de Fernanda Pase Casasola. (Nota da IHU On-Line: Elio Guerriero é o editor italiano do próximo livro de Joseph Ratzinger “Ultime Converzazioni”, a ser publicado proximamente).
Em Roma, o céu está carregado de nuvens ameaçadoras, mas quando chego a Mater Ecclesiae, a residência do Papa emérito, um inesperado raio de sol enaltece, abaixo, a harmonia da cúpula de São Pedro e dos jardins do Vaticano. “O meu paraíso”, havia comentado, em uma visita anterior, Bento XVI. Sou levado a sala que é, atualmente, a biblioteca privada e, de forma espontânea, penso no título do livro de Jean Leclercq, O amor às letras e o desejo de Deus, citado por Bento XVI no famoso discurso no Colégio dos Bernadinos em Paris.
O Papa chega depois de alguns minutos, cumprimenta com o sorriso e a cortesia de sempre, e logo me diz: “Estou no quinze”. Não entendo, por isso repete: “Li quinze capítulos”. Estou verdadeiramente surpreso. Alguns meses antes, enviei-lhe boa parte do livro, mas nunca esperaria que o lesse por inteiro. Ofereço-lhe os outros capítulos e lhe digo que agora falta pouco. Ele está contente com aquilo que leu e assim acrescento: “Importa-se se fizer algumas perguntas na forma de entrevista?”. Responde como sempre, gentil e prático: “Me faça as perguntas, depois me mande tudo e veremos”. Obviamente, sigo as instruções. Algum tempo depois, me escreve consentindo com a publicação. Resta-me agradecer novamente pela confiança depositada.
Eis a entrevista.
Santidade, visitando pela última vez a Alemanha, em 2011, o senhor disse: “Não se pode renunciar a Deus”. E ainda: “Onde há Deus, lá há futuro”. Não lhe desagradou ter que sair no ano da fé?
Sem dúvida, tinha em mente concluir o ano da fé e escrever a Encíclica da Fé que deveria finalizar o percurso iniciado com Deus caritas est. Como disse Dante, o amor que move o sol e outras estrelas, nos impulsiona, nos conduz à presença de Deus que nos doa esperança e futuro. Em uma situação de crise, o melhor comportamento é aquele de se colocar frente a Deus com o desejo de encontrar a fé para poder prosseguir no caminho da vida. Da sua parte, o Senhor é feliz de acolher o nosso desejo, de nos dar a luz que nos guia na peregrinação da vida. É a experiência dos santos, de São João da Cruz ou de Santa Terezinha do Menino Jesus. Em 2013, todavia, existiam numerosos compromissos que eu acreditava não mais conseguir finalizar.
Quais eram esses compromissos?
Em especial, já estava definida a data da Jornada Mundial da Juventude que deveria acontecer no verão de 2013, no Rio de Janeiro, Brasil. A respeito disso, tinha duas convicções bem precisas. Depois da experiência de viagem ao México e à Cuba, não me sentia apto a cumprir uma viagem tão desafiadora. Além disso, com a perspectiva dada por João Paulo II a essas jornadas, a presença física do Papa é indispensável. Não se podia pensar em uma transmissão televisiva ou em outras formas de tecnologia. Essa também era uma circunstância pela qual a renúncia era, para mim, um dever. Havia, enfim, a confiança necessária que, mesmo sem a minha presença, o ano da fé seria, de qualquer maneira, um sucesso. A fé, na verdade, é uma graça, uma dádiva generosa de Deus aos fiéis. Eu tinha, portanto, a firme convicção de que o meu sucessor, assim como ocorreu, teria, da mesma forma, o êxito desejado pelo Senhor, na iniciativa por mim iniciada.
Visitando a Basílica de Collemaggio em Áquila, o senhor fez questão de deixar o pálio sobre o altar de São Celestino V. Pode me dizer quando chegou à decisão de dever renunciar ao exercício do ministério petrino para o bem da Igreja?
A viagem ao México e à Cuba foi para mim bela e comovente de muitos pontos de vista. No México fiquei comovido ao encontrar a fé profunda de tantos jovens, experimentando sua alegre paixão por Deus. Da mesma forma, fiquei impressionado com os grandes problemas da sociedade mexicana e com o esforço da Igreja para encontrar, a partir da fé, uma resposta ao desafio da pobreza e da violência. Não há, no entanto, necessidade de recordar especialmente como, em Cuba, me afetou ver o modo como Raul Castro quer conduzir o seu país por um novo caminho sem romper a continuidade com o passado imediato. Mesmo aqui, fiquei muito impressionado com o modo que os meus irmãos de episcopado tentam encontrar a orientação neste difícil processo da fé. Naqueles dias, todavia, experimentei, com grande força, os limites da minha resistência física. Sobretudo, me dei conta de não ser mais capaz de enfrentar, no futuro, voos transoceânicos pelos problemas do fuso horário. Naturalmente, falei desses problemas com o meu médico, o Prof. Dr. Patrizio Polisca. Tornava-se, desta forma, claro que não estaria em condições de participar da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, no verão de 2013, ao qual se opunha evidentemente o problema do fuso horário. A partir desse momento, tive que decidir, em um tempo relativamente breve, a data da minha aposentadoria.
Depois da renúncia, muitos imaginavam cenários medievais com portas batendo e denúncias clamorosas. De tal modo que, os próprios comentaristas ficaram surpresos, quase desiludidos, com a sua decisão de permanecer nos confins de São Pedro, de subir ao Mosteiro Mater Ecclesiae. Como chegou a essa decisão?
Havia visitado muitas vezes o Mosteiro Mater Ecclesiae desde sua origem. Frequentemente, dirigia-me ali para participar das Vésperas, para celebrar a Santa Missa para todas as religiosas que ali estavam. Por último, estive ali por ocasião da ocorrência do aniversário de fundação das Irmãs Visitandinas. No passado, João Paulo II decidiu que a casa, que anteriormente servia de residência ao diretor da Radio Vaticana, devia tornar-se um local de oração contemplativa, como uma fonte de água viva no Vaticano. Sabendo que naquela primavera terminava o triênio das Visitandinas, foi-me proporcionada, quase obviamente, a percepção de que este seria o local onde poderia me recolher para continuar, ao meu modo, o serviço de oração para o qual João Paulo II havia destinado a casa.
Não sei se o senhor também viu uma fotografia de um enviado da BBC que retratava, no dia da sua renúncia, a cúpula de São Pedro ser atingida por um raio (inserir a imagem... procura-la e inseri-la) (Bento faz sinal com a cabeça de haver visto). A muitos, aquela imagem sugeria a ideia da decadência ou mesmo do fim do mundo. Agora, porém, devo dizer: esperavam ter pena de um vencido, um derrotado pela história, mas eu vejo aqui um homem sereno e confiante.
Foto: La Repubblica
Eu concordo totalmente. Eu deveria, realmente, me preocupar se não estivesse convencido, como disse no início do meu pontificado, de ser um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor. Desde o início, estava ciente dos meus limites e eu concordei, como sempre procurei fazer na minha vida, no espírito de obediência. Depois, existiram as dificuldades mais ou menos grandes do pontificado, mas houve também muitas graças. Eu percebi que tudo aquilo que devia fazer não poderia fazer sozinho e, assim, eu era quase obrigado a me colocar nas mãos de Deus, a confiar em Jesus que, conforme escrevia meu livro sobre ele, me sentia ligado por uma antiga amizade, cada vez mais profunda. Em seguida, havia a Mãe de Deus, a mãe da esperança, que era um apoio seguro nas dificuldades e que sentia sempre mais próxima ao recitar o Santo Rosário e nas visitas aos santuários marianos. Por fim, havia os santos, os meus companheiros de viagem de uma vida: Santo Agostinho e São Boaventura, os meus mestres do espírito, mas também São Bento cujo lema “nada antepor a Cristo” me vinha sempre mais familiar e São Francisco, o pobre de Assis, o primeiro a sugerir que o mundo é o espelho do amor criador de Deus, do qual viemos e para o qual estamos a caminho”.
Somente consolações espirituais, então?
Não. O meu caminho não era acompanhado somente de cima. Todos os dias, recebia inúmeras cartas, não apenas dos grandes da Terra, mas também das pessoas humildes e simples que diziam estar perto de mim, que rezavam por mim. Assim, mesmo nos momentos difíceis, tinha a confiança e a certeza de que a Igreja é guiada pelo Senhor e que, portanto, eu podia colocar nas suas mãos o mandato que Ele me havia confiado no dia da eleição. Aliás, esse apoio continuou mesmo depois da minha renúncia, pelo qual só posso ser grato ao Senhor e a todos aqueles que manifestaram e ainda manifestam o seu afeto.
Na sua saudação de despedida dos Cardeais, em 28 de fevereiro de 2013, desde então prometeu obediência ao seu sucessor. Enquanto isso, tenho a impressão que o senhor também garantiu proximidade humana e cordialidade ao Papa Francisco. Como é o relacionamento com o seu sucessor?
A obediência ao meu sucessor nunca foi colocada em discussão. Mas, então, existe o sentimento de comunhão profunda e de amizade. No momento da sua eleição, eu experimentei, como tantos, um espontâneo sentimento de gratidão com relação a Providência. Depois de dois pontífices provenientes da Europa Central, o Senhor lançava seu olhar, por assim dizer, a uma Igreja universal e nos convidava a uma comunhão mais ampla, mais católica. Pessoalmente, eu fiquei profundamente comovido, desde o primeiro momento, com a extraordinária disponibilidade humana do Papa Francisco em nossos diálogos. Logo após sua eleição, tentou telefonar-me. Não conseguindo nessa oportunidade, telefonou-me mais uma vez logo após o encontro com a Igreja universal da sacada de São Pedro e falou comigo com grande cordialidade. Desde então, me concedeu uma relação maravilhosamente paternal-fraternal. Frequentemente, chegam, aqui em cima, pequenos presentes, cartas escritas pessoalmente. Antes de iniciar grandes viagens, o Papa não deixa nunca de me fazer uma visita. A benevolência humana com a qual me trata é, para mim, uma graça particular nessa última fase da minha vida, pela qual somente posso ser grato. Aquilo que diz da disponibilidade com relação a outros homens não são apenas palavras. A coloca em prática comigo. Que o Senhor lhe faça, por sua vez, sentir, todos os dias, a sua benevolência. Por isso, eu oro a Deus por ele.
Os servos infiéis e a traição contra o sucessor de Pedro. Entrevista com Peter Seewald
"Últimas conversas": o livro autobiográfico de Bento XVI
Novo livro-entrevista com Bento XVI é reduzido midiaticamente à questão do "lobby gay"
O que ainda estamos aprendendo com a renúncia de Bento XVI
“O último testamento”. O mais recente livro do Papa Emérito Bento XVI
Economia e finanças: por que Francisco está a anos-luz de Bento XVI
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ratzinger, a confissão: “Muito cansado, por isso deixei o ministério petrino” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU