28 Julho 2016
“Durante estes três anos e meio, ficou claro que o processo de recepção do pontificado de Francisco está relacionado com o processo de avaliação do período pontifício e pré-pontifício de seu antecessor – mesmo que este antecessor ainda esteja vivo”, escreve Massimo Faggioli, professor da Villanova University, publicado por Commonweal, 26-07-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ele, “o processo de acolhida de um novo papa normalmente acontece depois do enterro do predecessor. A situação atual é obviamente diferente. O interessante é que, para uns, a ligação emocional e intelectual a Bento XVI parece ser incompatível com a acolhida do novo papa, enquanto outros parecem estar mais à vontade com a situação”.
Eis o artigo.
Transferências de poder podem ser algo confuso, talvez ainda mais quando se estendem ao longo do tempo. O Papa Bento XVI renunciou a mais de três anos atrás e Francisco é, inegavelmente, o único papa. No entanto, de certo modo a transição está em curso ainda e continua a influenciar a Igreja.
Isso acontece porque, em parte, a própria renúncia não está de fato consumada. Com Bento XVI vivendo o seu retiro quase monástico no Vaticano, aqueles que podemos considerar como estando entre os mais próximos à pauta teológica, espiritual e cultural de seu pontificado ainda parecem sentir os seus efeitos. Naquele dia inesquecível de fevereiro de 2013, claro ficou que as pessoas mais chocadas com a decisão anunciada eram os maiores fãs do papa teólogo Joseph Ratzinger.
Para alguns, esse choque se desenvolveu muito claramente como uma oposição ao Papa Francisco (oposição que durou um ano inteiro antes dos debates iniciais que levaram aos Sínodos dos Bispos de outubro de 2014 e 2015 e, finalmente, à exortação Amoris Laetitia).
Mas, aos demais prelados e “criaturas” eclesiásticas de Bento XVI, tal choque inicial deu-se por vencido à percepção de que Francisco era o sucessor legítimo de Bento XVI e que tudo estava indo segundo os planos de Deus. Isso pode ser visto entre certos cardeais, bispos e intelectuais leigos, entre eles Rocco Buttiglione, filósofo italiano e político democrata cristão conservador, pessoa que esteve bastante próxima de João Paulo II e que escreveu uma defesa extensa sobre Amoris Laetitia publicada semana passada no L’Osservatore Romano.
Essa publicação é válida de nota, pois é o primeiro sinal significativo do realinhamento leal à Igreja de Francisco por parte de muitos que foram, durante um longo período, identificados como “os bispos JP2” [João Paulo II] ou “ratzingerianos”. Não podemos simplesmente – ou cinicamente – pensar que alguém a agir desse modo esteja tão somente se acomodando de acordo com a direção dos ventos.
Um outro elemento interessante é que, durante estes três anos e meio, ficou claro que o processo de recepção do pontificado de Francisco está relacionado com o processo de avaliação do período pontifício e pré-pontifício de seu antecessor – mesmo que este antecessor ainda esteja vivo. O processo de acolhida de um novo papa normalmente acontece depois do enterro do predecessor. A situação atual é obviamente diferente. O interessante é que, para uns, a ligação emocional e intelectual a Bento XVI parece ser incompatível com a acolhida do novo papa, enquanto outros parecem estar mais à vontade com a situação.
Existem recepções claramente diferentes decorrentes da renúncia do Papa Bento. Podemos ver uma lacuna não só entre os que “gostam” do Papa Francisco e os que “não gostam” dele, mas também uma lacuna entre os que consideraram a decisão de Bento XVI como uma boa decisão para a Igreja (isto é, para a Igreja que eles têm em mente) e outros que simplesmente não a aceitaram ainda. Poder-se-ia dizer que os dois campos são quase idênticos (de um lado, os pró-Francisco e pró-renúncia e, do outro, os céticos de Francisco e os que se sentem abandonados com a renúncia papal). Mas o quadro geral é um pouco mais complicado dentro dos círculos católicos que se sentem atraídos por uma ideia ratzingeriana de catolicismo.
Dois exemplos recentes são um artigo publicado pelo Cardeal Walter Brandmüller e uma entrevista concedida pelo secretário pessoal de Bento XVI, o Monsenhor Georg Gänswein (que atualmente tem dado entrevista quase toda semana). Ambos são pessoal e teologicamente próximos a Ratzinger-Bento XVI, mas há diferenças.
Brandmüller é um historiador da Igreja alemão, ex-presidente do Pontifício Comitê das Ciências Históricas (de 1998 a 2009, período em que membros da Cúria Romana engajaram-se ativamente contra a historiografia do Vaticano II) e estudioso do conciliarismo, aquele período do século XV da Igreja em que a coexistência do papa e do antipapa aumentou o poder dos bispos e dos concílios. Brandmüller não só é cético em se tratando de uma interpretação progressista do Vaticano II como também o é sobre a renúncia de Bento XVI. Num artigo escrito por Sandro Magister, Brandmüller diz que a Igreja necessita de normas e procedimentos mais claros para lidar com uma renúncia do papa e com a situação do ex-papa após a renúncia. Mas ele também diz que a renúncia de Bento XVI é algo que não foi bom para a Igreja; aconteceu, mas será muito melhor se não acontecer novamente.
Quanto a Gänswein, as suas entrevistas e os seus comentários sobre a situação de Bento XVI desde a renúncia são demais numerosos para listá-los, e não está claro se ele mudou a sua postura após a reação negativa contra as declarações feitas em maio a respeito da existência de um “ministério de fato ampliado, com um membro ativo e outro contemplativo”. Ele não mais repetiu a sua teoria do papado duplo, mas também não cessou em suas tentativas de minar o Papa Francisco. Mais recentemente, o Gänswein, que ainda é (inacreditavelmente) o prefeito da residência papal, contou a um jornal alemão: “A certeza de que o papa era considerado um pilar de força, a última âncora, na realidade começou a esmaecer. Se essa percepção corresponde à realidade e reproduz corretamente a imagem do Papa Francisco, ou se se trata mais de uma representação da mídia, eu não posso julgar. As incertezas, confusões e o caos, no entanto, aumentaram”.
Brandmüller e Gänswein encarnam duas reações diversas à renúncia de Bento. Brandmüller enxerga na renúncia a criação de uma situação complicada e potencialmente perigosa, porém aceita a decisão como legítima e criadora de uma situação nova na qual há um papa, Francisco, e um ex-papa, Bento XVI. A observação mais interessante feita por Brandmüller é sobre a necessidade de regular “os seus possíveis contatos sociais e midiáticos, de tal modo que a sua dignidade pessoal seja respeitada, por um lado, enquanto que, por outro lado, toda a ameaça à unidade da Igreja esteja excluída”.
Gänswein (cuja função oficial na Cúria Romana deveria ser a de assistir o “Sumo Pontífice, quer no Palácio Apostólico quer quando realiza visitas em Roma ou na Itália” – João Paulo II, constituição Pastor Bonus, 1998, Art. 181) tomou a renúncia de Bento XVI de um jeito tal que vem resultando em tentativas constantes de desacreditar o pontificado de Francisco – situação difícil de crer, mas que vem acontecendo. Quase poderíamos pensar que, quando o Cardeal Brandmüller escreveu as suas sugestões, tinha em mente a presença midiática e as tentativas constantes de Gänswein de interferência no pontificado de Francisco.
Isso me leva a três considerações:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O que ainda estamos aprendendo com a renúncia de Bento XVI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU