"Como os peregrinos acolhidos na Casa de Abraão, Jesus e seus discípulos foram recebidos na Casa de Marta e Maria em Betânia, como vemos no Evangelho (Lc 10, 38-42). O que nos traz para essa narrativa evangélica? Marta encontra-se totalmente absorvida no serviço da hospitalidade a Jesus e aos seus discípulos e Maria, diferentemente da irmã, assenta-se aos pés do Senhor para ouvi-lo falar (cf. v. 39) esta dedicava-se à escuta da Palavra do Senhor."
A reflexão é de Cássia Quelho Tavares, leiga. Ela possui graduação em enfermagem pela Universidade Gama Filho (1989), com licenciatura em enfermagem e habilitação em enfermagem obstétrica; possui também graduação em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUCRio (2003) e mestrado e (2006) e doutorado (2011) pela mesma Universidade. Atua como enfermeira assistencial e docente em enfermagem desde 1990, nas disciplinas de Enfermagem em saúde da Mulher, Enfermagem Obstétrica e Neonatal, Saúde Reprodutiva e Bioética; é membro da Comissão de Direitos Humanos e Combate às Violências - UFRJ - 2019 Concentração de Pesquisa nas áreas de Teologia, com ênfase em Teologia Moral, Ética da Sexualidade, Bioética; Bioética Clínica; Humanização da Saúde, Saúde Reprodutiva, Saúde e Espiritualidade. Membro dos Comitês de Ética em Pesquisas em Seres Humanos no HFSE/MS; INTO/MS. Professora Pesquisadora do Grupo Diversidade Sexual, Religião e Cidadania (PUC-Rio). É Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Campus Macaé, Curso de Enfermagem e Obstetrícia. Integra a Rede TeoMulher
Referências bíblicas
1ª Leitura - Gn 18,1-10a
Salmo - Sl 14,2-3a.3cd-4ab.5 (R. 1a)
2ª Leitura - Cl 1,24-28
Evangelho - Lc 10,38-42
Neste 16º domingo do tempo comum, iniciamos com uma inquietação central que norteará nossa reflexão: “A escolha da melhor parte, que não será tirada”, presente na perícope Marta-Maria, no Evangelho Segundo Lc 10, 38-42.
No relato em Gênesis (Gn 18,1-10a), Abraão é visitado pelo Senhor. É uma narrativa de Epifania. Em meio a um forte calor, Abraão descansava à porta de sua tenda, quando vê diante de si três homens desconhecidos de pé. Prontamente colocou-se de pé e prostrou-se por terra. Num gesto profundo de humildade e hospitalidade, os acolhe e os serve. Oferece-lhes a melhor sombra, água e pão, manda seu servo assar um novilho, com manteiga e leite os alimenta. Manteve-se de pé junto deles, sob a sombra enquanto comiam, desejando que descansassem e se recuperassem a fim de continuarem a jornada de peregrinos. Antes de partirem, os peregrinos perguntaram por Sara, mulher de Abraão, e anunciaram que voltariam dentro de um ano. Alguns elementos nos chamam à atenção, Abraão se antecipa, não espera que os peregrinos peçam acolhida. Os vê com fome, sujos, cansados e exaustos pelo forte calor. Os reconhece como superiores, dignos de sua cordialidade, e abre o coração e sua casa/Tenda.
Abraão, com seus gestos, reproduz o que aprendeu da cultura dos povos do Oriente, sobretudo com os nômades. Deus quando chamou Abraão o fez peregrino. Abraão e Sara prepararam um banquete reafirmando que a hospitalidade abarca a partilha do pão e da mesma mesa. Expressão máxima da comunhão, da partilha dos bens e da vida, na antecipação e na gratuidade.
Na Epístola aos Colossenses (Cl 1,24-28) São Paulo fala em alegria no sofrimento suportados pelo serviço aos irmãos, pelo serviço à Igreja. “O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu corpo que é a Igreja” (v. 24b). É um pensamento ousado do Apostolo. A Igreja, no qual Paulo foi constituído Ministro, deve difundir-se, manter-se forte, pura e fiel. E o serviço envolve alegria mas também o sofrimento, a dor e o sacrifício, os mesmos sofrimentos de Cristo. O servo é chamado, no mistério do amor, a enxertar-se dos mesmos pensamentos e sentimentos de Cristo (Fil 2, 5).
Sofrer no serviço de Cristo caracteriza-se como um privilégio e uma honra. É saída de si mesmo, é apelo ao serviço pelo outro. Nesse sentido, do serviço e do sim à amplitude do chamado, encontramos um elo entre a narrativa de Gênesis e a perícope aos Colossenses, ou seja: a natureza da exigência do serviço, que não é tarefa fácil, mas encontra sentido na saída de si mesmo em busca do outro. Pode envolver sofrimento mas resulta em alegria.
Como os peregrinos acolhidos na Casa de Abraão, Jesus e seus discípulos foram recebidos na Casa de Marta e Maria em Betânia, como vemos no Evangelho (Lc 10, 38-42). O que nos traz para essa narrativa evangélica? Marta encontra-se totalmente absorvida no serviço da hospitalidade a Jesus e aos seus discípulos e Maria, diferentemente da irmã, assenta-se aos pés do Senhor para ouvi-lo falar (cf. v. 39) esta dedicava-se à escuta da Palavra do Senhor.
O Papa Francisco (2013) em uma de suas alocuções faz a pergunta: “Quem são estas duas mulheres?” O Evangelista São Lucas destina às mulheres um lugar especial e na perícope Marta-Maria, apresenta um importante e fundamental ensinamento de Jesus. Marta e Maria, irmãs de Lázaro, são parentes e discípulas fiéis do Senhor, que moravam em Betânia. São Lucas descreve-as com atitudes distintas, mas ambas oferecendo hospitalidade ao Senhor, que estava de passagem. Não se trata da oposição entre as duas atitudes, mas são modos diversos, essenciais e inseparáveis para a vida cristã, a escuta da palavra do Senhor, a contemplação, o “colocar-se aos pés do Senhor” e o serviço concreto ao próximo no exercício da caridade.
Porém, Marta, tão envolvida pelos afazeres dirige-se a Jesus dizendo: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe só a servir? Diz-lhe que me ajude” (v. 40). E Jesus repreende-a com docilidade: “Marta, Marta, andas muito inquieta e se preocupa com muitas coisas, no entanto, uma só coisa é necessária” (v. 41-42). Porque Jesus a repreende? Marta entendia que o essencial estava somente naquilo que fazia. Para nós cristãos, as obras de serviço e de caridade nunca estão separadas da fonte principal e primeira de cada uma das nossas ações, que é a escuta da Palavra do Senhor, tal qual como Maria fazia.
Em nossa vida cristã a oração e o serviço devem estar em harmonia, permanecendo profundamente unidas. Uma oração que não leva a práxis solidária e concreta em favor do outro, do irmão pobre, do doente e do necessitado de ajuda, dos mais vulneráveis, dos marcados pela fome, abandono, injustiças e violências, dos refugiados e maltratados pelas guerras, dos feridos pelos preconceitos e discriminações, dos esquecidos das “periferias da existência humana” é uma oração estéril e incompleta. (FRANCISCO, EG 46). E são assustadoras as diversas situações de opressão e angústia que ferem e matam todos os dias.
Do mesmo modo, quando no serviço eclesial voltamos nossas atenções apenas à ação, às funções e às estruturas, nos distanciando da centralidade de Cristo, corremos o risco de servirmos a nós mesmos e ao nosso egoísmo ou às estruturas desumanizantes.
É da nossa oração sincera, da contemplação, de uma forte relação de amor e de amizade com o Senhor que nasce em nós a capacidade de viver e de anunciar o amor de Deus, de superar os percalços e sofrimentos próprios da condição humana. (FRANCISCO, 2013)
Continua o Papa Francisco quando, acerca do sofrimento humano e de seu alívio, recordando-nos que para chegarmos à dor do outro é necessário tocarmos a carne de Cristo: “(...) tocando a carne sofredora de Cristo no povo”. (FRANCISCO, EG 24)
Para concluir nossa reflexão reiteramos a centralidade na intimidade com Deus, fonte da vida cristã, que nos chama a viver nossa vocação no mundo, nos prepara para dar respostas aos inúmeros desafios da sociedade contemporânea, que nos convida ao serviço concreto e generoso pelo outro, que nos ensina que a verdadeira alegria está na abertura de nossas casas/coração à hospitalidade do outro, seja quem for e de onde venha.
“A escolha da melhor parte, que não será tirada”, presente na perícope Marta-Maria, é uma questão contemporânea, uma vez que as divisões, as dicotomias permanecem, no âmbito eclesial e na sociedade de um modo geral. O que escolher? De que lado se colocar? O Papa Francisco, desde o início de seu Pontificado exorta-nos acerca de uma “Igreja em saída” e isso implica profetismo, Missionariedade e diakonia. Nesses contextos, sob a ótica do Reino de Deus, à luz do Evangelho, a prioridade é pela Misericórdia e pela Justiça. Para isso, a harmonização entre contemplação e práxis é uma exigência. Não devemos empreender a missão sem que estejamos aos pés do Senhor da Vida. Nosso primeiro lugar é o da escuta. Assim, devemos nos perguntar: como integrarmos essas dimensões em nossas vidas? Como colocarmos nos diversos cenários que vivemos, as dimensões do discipulado e da missão?
Que o Senhor da Vida, nos abençoe e nos fecunde com uma escuta dócil e uma pronta disponibilidade para os nossos irmãos, especialmente os mais frágeis e vulneráveis.
Amém!
www.vatica.va/angelus/2013
FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual (24.11.2013). São Paulo: Paulinas, 2013 (A Voz do Papa, 198).
MONASTERIO, R. A.; CARMONA, A. R. Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos. São Paulo, Ed. Ave Maria, 1994.
TAVARES, C. Q. “Contornos éticos na Evangelii Gaudium: “Primeirear, Envolver-se, Acompanhar, Frutificar e Festejar” (EG 24). In: PORTELLA AMADO, J. - FERNANDES, L. A. Evangelii Gaudium em questão. Aspectos bíblicos, teológicos e pastorais. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora PUC Rio/Paulinas, 2014.