14 Julho 2014
O Papa Francisco está no bom caminho para conseguir uma reforma total e radical das finanças do Vaticano. Isso ficou abundantemente claro no dia 9 de julho, quando o cardeal australiano George Pell, o homem que ele nomeou para liderar essa reforma, apresentou o novo quadro econômico da Santa Sé, em uma lotada coletiva de imprensa no Vaticano.
Falando em inglês, ele anunciou uma reestruturação e um downsizing do escandaloso banco vaticano, cujo nome próprio é Instituto para as Obras de Religião (IOR), a substituição de todo o seu conselho de administração e a nomeação de um executivo francês, Jean-Baptiste de Franssu, como novo presidente do banco. Uma unidade de gestão de ativos do Vaticano será estabelecida, disse ele, e o Fundo de Pensões será revisto para garantir um futuro seguro para os cerca de 5.000 empregados do Vaticano.
O cardeal Pell, a quem o papa nomeou como prefeito da recém-criada Secretaria da Economia no início deste ano, também anunciou uma reestruturação da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, que coloca toda essa operação sob o controle de sua Secretaria.
Embora progressos significativos já tenham sido feitos nas finanças do Vaticano, eles ainda são um trabalho em andamento. Dessa forma, por exemplo, as contas da Santa Sé de 2014, como as de 2013, estão sendo preparadas de acordo com as velhas normas ainda pela Prefeitura dos Assuntos Econômicos da Santa Sé, um organismo que está destinado a desaparecer, enquanto as de 2015 serão feitas pela nova Secretaria.
Na coletiva de imprensa, o cardeal também anunciou a criação de um comitê que estará sob a liderança do lorde britânico Christopher Patten, ex-presidente do BBC Trust, para propor estratégias para a Comunicação Social do Vaticano.
Um dia depois, em 10 de julho, o cardeal Pell concedeu a seguinte entrevista exclusiva para a revista America, em seu escritório na Torre de São João na colina do Vaticano. Ele falou livremente sobre o que já foi alcançado e o que ainda precisa ser feito antes que ele possa afirmar que a reforma esteja concluída.
A reportagem é de Gerard O'Connell, publicada na revista America, 11-07-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Ontem o senhor apresentou o novo quadro econômico para a Santa Sé e falou sobre essas mudanças de longo prazo como um divisor de águas na história das finanças do Vaticano. O senhor disse: "A nossa ambição é a de que nos tornemos uma espécie de modelo de gestão financeira, em vez de ser ocasião de escândalo". O senhor poderia identificar qual é a verdadeira novidade aqui, onde é a ruptura com o passado?
Em primeiro lugar, há um significativo envolvimento leigo, de pessoas de diferentes países, com alto nível de conhecimento e com direito a voto. Isso é um novo desenvolvimento muito significativo. Outro objetivo bastante explícito é ter não apenas pesos e contrapesos, mas vários focos de autoridade. Assim, a Secretaria da Economia não está mais sob a Secretaria de Estado. Essa é a primeira grande mudança. O Conselho da Economia está a cargo da Secretaria da Economia, não é um órgão consultivo. Isso representa uma mudança também. E haverá grupos mistos significativos de cardeais e leigos responsáveis pelas diferentes entidades do Vaticano, e substancialmente não haverá a mesma sobreposição - embora possa haver alguma sobreposição de pertença -, mas não vão ser as mesmas três ou quatro pessoas administrando cada instituição diferente. Nem qualquer pessoa em particular!
A criação da Secretaria da Economia é efetivamente uma mudança estrutural na Cúria Romana, porque até agora existiam o banco vaticano (IOR), a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA) e a Prefeitura para Assuntos Econômicos da Santa Sé.
Sim, e muito importante também, agora existe o Conselho de Economia, que tem a supervisão e poderes significativos para agir e dirigir, bem como para supervisionar por meio da Secretaria da Economia. Isso também faz parte da mudança estrutural.
O senhor responde diretamente ao Conselho ou ao papa?
Não, eu respondo ao Conselho. Eles fazem as recomendações políticas.
É o senhor quem escolhe as pessoas que são nomeadas para as diferentes comissões?
Eu dou a minha opinião, mas outras entidades também. A Comissão Pontifícia para a Organização da Estrutura Econômica-Administrativa da Santa Sé (COSEA, recentemente dissolvida) deu uma contribuição significativa, a Secretaria de Estado tem participação significativa, e nas diferentes áreas nós temos opiniões de especialistas. Assim, por exemplo, na área da previdência, ouvimos alguns especialistas. Quanto à mídia, nós trabalhamos em estreita colaboração com o Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais para organizar o comitê. Então, muitas dessas pessoas eu não conheço pessoalmente.
Quem dá as cartas no fim das contas?
Nós fazemos recomendações ao Santo Padre e, em alguns casos, podemos colocar dois ou três candidatos alternativos em uma determinada categoria. O Santo Padre aprova todos eles. Às vezes, ele escolhe um entre alternativas e às vezes sugere um novo.
É o senhor quem controla agora o orçamento da Secretaria de Estado?
No fim, seremos nós. A forma como vamos fazer isso é trabalhando com a Secretaria de Estado e com todos os outros dicastérios (escritórios) no Vaticano. Eles vão fazer o trabalho básico preliminar, organizando seus orçamentos. Será um pouco como em um governo, alguém tem que dizer no fim quanto dinheiro podemos gastar e então vamos distribuir o dinheiro disponível com os diferentes departamentos. Vamos controlar os gastos dentro do orçamento de cada dicastério durante o ano, e eles deverão permanecer dentro de seu orçamento.
No passado - e isso tem sido um ponto de discórdia - nos diversos dicastérios do Vaticano, havia um prefeito ou um presidente que tinha alguns projetos favoritos e que podia encontrar alguns bons patrocinadores, fossem eles ligados à Igreja Católica ou não, e que deram a esses organismos uma certa influência no Vaticano. Esse tipo de coisa vai continuar?
Vamos ter que ver isso com muito cuidado. Nós não tomamos nenhuma posição oficial sobre isso ainda. Estou aberto a que os dicastérios recebam doações, mas teremos que ter regras para isso e teremos que ter claro que tais doações não vêm de partes interessadas e não podem ser usadas como um instrumento de influência para projetos ou para quaisquer outros fins.
Então, as doações não podem ser usadas para influenciar os projetos, as nomeações ou coisas semelhantes?
Sim, é isso mesmo.
A seção ordinária da APSA está agora sob o controle da Secretaria da Economia. O que exatamente está envolvido aqui?
A administração do dia a dia da Santa Sé, e não do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano e das propriedades da Santa Sé.
Isso inclui as propriedades da Propaganda Fide (Congregação para a Evangelização dos Povos)?
Não, eles agora vão fazer a sua própria administração. Prevejo que vai continuar, mas eu também antecipo que, assim como com todos os nossos dicastérios, se eles tiverem investimentos, eles terão que cumprir determinados critérios. E se eles têm portfólios de propriedades eles deverão trabalhar dentro de certos parâmetros, e se eles não estão recebendo os aluguéis comerciais reconhecidos para as propriedades, vamos querer saber o porquê.
A seção extraordinária da APSA se tornará como um Tesouro. O que isso significa?
Ela terá algumas das funções de um banco central. Os institutos do Vaticano terão a sua riqueza com a APSA. Mesmo agora muitas das propriedades dos institutos já estão com a APSA e não com o IOR.
No que diz respeito à política de emprego no Vaticano, o senhor estará envolvido no recrutamento de pessoal?
Não muito no recrutamento, e em algumas áreas, certamente não. O que quero dizer é que a Secretaria da Economia não tem competência ou capacidade de dizer quais os especialistas teológicos ou peritos litúrgicos que deveriam trabalham nas diferentes congregações. Mas eu acho que é altamente provável que vamos sugerir o que seria um número adequado de trabalhadores em uma determinada área, e também é possível que venhamos a dizer: "Vocês tem um orçamento, recomendamos este número de trabalhadores, mas se vocês desejam reorganizar os projetos e dizer, por exemplo, que querem ter um membro a menos na equipe e liberar os fundos, então, vamos olhar para isso". Dessa forma, tentaremos através da colaboração e discussão mútua chegar a um acordo sobre o valor adequado para o ano, e, em seguida, esse dicastério em particular terá de gerir o seu programa dentro desse montante específico. Então, valha-me Deus, eles não vão ter que esperar três semanas para comprar uma dúzia de canetas!
O senhor está introduzindo o que no mundo anglo-saxão seria considerado normal em uma contabilidade e procedimentos administrativos em todos os escritórios do Vaticano.
Eu não gostaria de dizer que são padrões anglo-saxões, prefiro chamá-los de práticas internacionais de negócios.
O senhor terá um escritório de Recursos Humanos?
Haverá um escritório de Recursos Humanos mais adiante. Obviamente, parte de seu trabalho estará muito relacionado com as finanças.
Vamos falar sobre o banco vaticano, o IOR. O senhor disse que a fase 1 da reforma foi alcançada com sucesso.
De um modo geral, sim.
Por que foi necessário, então, mudar a cabeça do IOR após apenas 17 meses e trazer um novo chefe?
Eu não sabia que era necessário, mas considerou-se adequado, e Ernst Von Freyberg (o chefe desde fevereiro de 2013) estava totalmente de acordo com isso. Ele deu dois motivos: um, ele não poderia dedicar-se em tempo integral ao trabalho e, outro, parte do futuro (do IOR) será tratar da gestão de ativos, e ele não é um especialista nessa área.
O senhor quis propor o novo chefe da IOR?
Eu não sei se eu o havia proposto, mas certamente apoiei sua nomeação. Jean-Baptiste de Franssu foi recomendado por uma empresa de recrutamento e ele tinha trabalhado com o COSEA.
Ele estará envolvido na gestão de ativos. O que isto significa?
Significa obter o melhor rendimento possível em seus ativos - ou seja, em suas propriedades, ações e investimentos - de acordo com normas éticas. Dentro desses princípios gerais, as verbas que pertencem a essas entidades diferentes serão colocadas todas juntas, porque eu acredito que, com uma soma maior, elas vão obter um retorno melhor.
No que se refere às normas éticas, eu entendo que o Vaticano vai garantir que ele não estará investindo em armas ou em áreas onde o trabalho infantil é utilizado.
É isso mesmo. Nós já estamos fazendo isso, mas, nessa área, vamos ter certeza de que tudo estará sendo feito de forma correta.
No passado, o Vaticano teve um conselho de cardeais e um conselho de leigos que fiscalizavam o IOR (o banco vaticano), e tivemos muitos desastres. O que será feito para evitar que essa nova combinação de prelados e leigos vá por essa mesma estrada?
Ninguém pode dar garantias absolutas, mas, desde a nomeação de Von Freyberg a situação tem mudado basicamente bem. A relação exata entre os peritos leigos internacionais e os cardeais nessa área ainda não foi completamente trabalhada. Mas podemos ter certeza de duas coisas: um grupo de cardeais com um conhecimento muito limitado na área bancária não vai estar administrando o banco, e um grupo exclusivamente de leigos não estará dirigindo a Igreja, de modo que haverá algumas formas eficazes de cooperação . Estaremos tentando conceber um sistema de forma a não cair nos velhos modos.
Há outra consideração muito importante aqui também: é o escritório da Autoridade de Informação Financeira (AIF). A AIF investiga a fundo todo o clero e os leigos que são nomeados para cargos financeiros superiores, de modo que ninguém será nomeado se não conseguir uma autorização da AIF. Esse é um grande seguro contra a introdução de pessoas como (Roberto) Calvi e (Michele) Sindona (Nota Editorial: dois banqueiros italianos, cujo envolvimento com o banco do Vaticano levou a grandes problemas financeiros e escândalo).
Então, é muito improvável que o caso do Monsenhor Scarano aconteça de novo? (Nota Editorial:. Mons. Nunzio Scarano, ex-empregado e contador da APSA, foi acusado pelas autoridades italianas de lavagem de dinheiro e conspiração de contrabando de dinheiro para a Itália.)
Quem sabe? Em qualquer caso, eu estou falando sobre os níveis superiores em termos de formulação de políticas. A AIF está lá para controlar e garantir que não haja reciclagem. E com um auditor geral a ambição é que nunca mais aconteça um caso Scarano.
Qual será o papel do auditor geral? Ele vai ser como um solucionador de problemas? Como o senhor o descreveria?
Nós estamos avaliando uma série de modelos de diferentes países, e entendo que ele é visto de forma ligeiramente diferente em lugares diferentes. O auditor geral visitará ou vai se aproximar dos diferentes dicastérios inesperadamente e auditar o seu trabalho de forma totalmente independente dos auditores normais. Se eu ou o Conselho da Economia ou um membro do pessoal sentir que algo está seriamente errado em um dicastério, então podemos ir ao auditor geral, e se ele descobrir que há um caso prima-facie, então, ele irá investigar e, se necessário, denunciar às autoridades judiciais.
O auditor geral estará vinculado ao senhor?
Não! O auditor geral será uma figura independente e não estará vinculado ao Secretário de Estado ou a mim, mas vai ter a capacidade de ir diretamente para o Santo Padre.
O senhor nomeou uma comissão para estudar o Fundo de Pensões. Por quê?
O Conselho reconheceu que as pensões em pagamento hoje e aquelas da próxima geração estão garantidas, mas é preciso garantir que haja fundos suficientes para as gerações futuras em um ambiente econômico em mudança. E isso terá consequências financeiras.
O senhor trouxe Lord Christopher Patten para dirigir uma comissão para propor reformas para a mídia do Vaticano. Mas o senhor originalmente tinha recebido um relatório de consultoria da COSEA sobre esse assunto. Por que o relatório não foi suficiente?
Bem, suponho eu, porque foi patrocinado e envolveu a COSEA. Eu não tenho certeza de quanta informação inicial havia do Vaticano e dos diferentes organismos nesse relatório, e, além disso, qualquer relatório que vai adiante tem de gerar um nível de apoio. Uma coisa é ter um relatório de um grupo de negócios, mas uma coisa bem diferente é ter um conjunto de propostas de altos empregados do Vaticano e um organismo internacional de especialistas que tem peso real. É muito mais difícil ignorar propostas de tal corpo.
A Comissão, liderada por Lord Patten, foi convidada a desenvolver um plano de reforma para os meios de comunicação do Vaticano dentro de 12 meses, tendo em conta o relatório da COSEA. Seu objetivo é adaptar os meios de comunicação da Santa Sé às mudanças nas tendências de consumo de mídia, melhorar a coordenação e obter, de forma progressiva e com sensibilidade, substanciais economias financeiras.
Sim. O objetivo é manter e melhorar a cobertura, coordenar melhor a mídia do Vaticano, assegurar que sejam colocados recursos suficientes nas novas mídias digitais e também de forma gradual, com sensibilidade, economizar dinheiro e reduzir despesas. No momento, na minha humilde opinião, uma quantidade desproporcional de dinheiro está indo para formas de mídia que estão sendo usadas por um número decrescente de pessoas.
Onde o senhor espera estar em dois ou três anos?
Bem, espero que em dois ou três anos tenhamos a nossa organização básica no lugar na área financeira, com certeza, e espero que na área da comunicação também. Espero que até lá estejamos gerando não apenas eficiência e coordenação, mas também transparência e seguindo as melhores práticas de normas internacionais em nossa administração.
Muitas pessoas me disseram: é ótimo que tenhamos essa reforma, mas sem identificar os erros do passado, e que pode ser uma operação dolorosa. Como podemos ter confiança de que esses erros não vão se repetir?
Bem, dois "erros" muito graves são indicados no relatório do IOR: os investimentos do Lux Vide e do Optimum ad majorem (200 milhões de euros). Eles estão lá no relatório. A outra coisa a ser dita é que a AIF está investigando cerca de 200 infrações. Isso deve proporcionar uma segurança significativa de que nós estamos levando isso a sério.
Quão de perto o Papa Francisco está rastreando tudo isso?
Ele está muito interessado nessas reformas. Ele está comprometido com as melhores práticas. Ele explicitamente aprovou o pacote de reformas e quer que eu as implemente. Sei que temos o seu apoio total. Eu o vejo uma vez a cada 15 dias. Eu posso abordá-lo a qualquer hora que eu precisar. Eu acho que ele tem uma boa compreensão de economia e acho que a sua atividade com os bancos em Buenos Aires mostra que ele sabe qual caminho é o melhor.
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Uma análise da reforma financeira no Vaticano. Entrevista com o cardeal George Pell - Instituto Humanitas Unisinos - IHU