Empreendedorismo popular: os paradoxos na busca do bem-estar social e a fuga da exaustão. Entrevista especial com Henrique Costa

Trabalhadores periféricos, que tentam um lugar ao sol por meio do próprio negócio, lutam contra a burocratização do estado e por condições de seguridade social que o emprego formal tem cada vez mais dificuldades de garantir

Barbearia na zona sul paulistana | Foto: Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

13 Dezembro 2024

O mundo do trabalho no Brasil, especialmente para a população mais marginalizada e com menos formação, tem se deteriorado progressivamente. Enquanto o trabalho formal oferece cada vez menos vagas com direitos trabalhistas garantidos, o empreendedorismo, que virou imperativo no mundo contemporâneo, ganha mais espaço. O pesquisador Henrique Costa, especialista nos temas associados à crise do capitalismo nas periferias, especialmente a paulistana, tem se dedicado a compreender o fenômeno. Diante do cenário, ele traça paralelos e linhas de fuga entre o empreendedorismo da classe média e o que ele denomina “empreendedorismo popular”.

“Não dá para glamourizar o empreendedorismo popular, as pessoas que tentam essas saídas empreendedoras têm sonhos e aspirações, assim como qualquer outras. Não é porque o empreendedorismo de classe média tem menos chances de dar errado que ele é mais legítimo, mas ele também está ancorado em privilégios que os empreendedores populares não têm, o que faz com eles estejam muito mais vulneráveis e sujeitos às incertezas”, afirma Henrique Costa em entrevista por telefone do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Frente a uma população cuja maioria dos micro e pequenos empresários não têm uma formação adequada e, tampouco, acesso às melhores linhas de crédito, o Estado não ocupa um papel de acolhedor das demandas desse grupo social, ao contrário. “A demanda por desburocratização é muito comum – não vou entrar no mérito se estão corretos ou não. Mas isso é um problema de fato, não só para quem tem poucos recursos financeiros, mas pouco recursos educacionais”, explica o entrevistado.

“Essa ideologia [neoliberal] existe, mas o que é mais significativo na explicação é justamente isso que estou chamando de ‘economia moral do empreendedorismo popular’, que é ter condições básicas de bem-estar, que o mercado de trabalho hoje não provê para a grande maioria e que nunca esteve disponível para essa grande massa. Essa economia moral vai estar preocupada com outras coisas além da renda e da segurança do trabalho, é preocupada também a com a família, com a vizinhança, com certo bem-estar, com uma não subordinação e uma fuga da exaustão. É polêmico, mas muita gente que tenta um negócio novo o faz para trabalhar menos”, descreve.

Henrique Costa (Foto: Vitor Necchi | Acervo IHU)

Henrique Costa é pós-doutorando no International Postdoctoral Program do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap, já tendo realizado pós-doutorado também no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Pesquisador visitante no Centre of Latin American Studies (CLAS) da University of Cambridge e pós-doutorando no Departamento de Sociologia da USP. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2022) e mestre em Ciência Política (2015) pela USP. 

Costa é autor de In the remains of progress: utopia and suffering in Brazilian popular entrepreneurship, livro recém-publicado pela editora holandesa Brill

Confira e entrevista.

IHU – O tema do empreendedorismo popular paulistano é objeto de sua de doutorado. Quais as especificidades e contradições mais marcantes do empreendedorismo na cidade mais rica do Brasil?

Henrique Costa – O empreendedorismo de São Paulo é muito dinâmico para os padrões brasileiros, evidentemente, porque São Paulo tem o dinamismo econômico muito destacado. A cidade, desde os anos 1950, tem um poder de atração de migrantes muito forte, há desde populações que migraram do Nordeste e se instalaram nas periferias até migrantes de fora do país. Então, todo esse caldo de uma certa cultura empreendedora, ajudou a formar o empreendedorismo na cidade.

Nos anos recentes, com a mobilidade social de uma população que se convencionou chamar de classes C e D, que ascenderam para uma nova classe média, gerou uma demanda por produtos muito significativa. Essa demanda, necessariamente, cria oportunidades também para que muitas pessoas possam abrir novos negócios, comércios, prover produtos e serviços para essas classes que ascenderam. Isso é um fenômeno mais recente, mas de todo modo São Paulo favorece esse tipo de iniciativa.

Claro que isso traz contradições evidentes. São Paulo tem uma mobilidade de pessoas ao longo da cidade muito grande: os trabalhadores moram na periferia, circulam pelo centro, trabalham muitas vezes com a classe média tradicional e levam isso de volta para seus bairros. Isso significa uma tentativa de adequação das classes mais baixas que tiveram essa mobilidade para um certo consumo de classe média. As pessoas, a partir de que elas conseguem mais recursos, tanto esperam ter produtos e serviços diferenciados, quanto com um aumento da distinção. São pessoas que buscam padrões de consumo que as distinguem dos seus pares, dos seus vizinhos. Então, o consumo obviamente é um meio de distinção social e cria heterogeneidade maior, não só no padrão de consumo, como nos modos de vida também. Por exemplo, a expansão dos condomínios dentro das periferias, viver dentro de um condomínio, que antes era um modo de vida social da classe média tradicional, já não é mais. Então, quem mora em condomínio tem uma diferenciação bastante significativa com relação às outras pessoas que moram na periferia. Essa pluralidade nas periferias é muito resultado disso.

É um círculo virtuoso por um lado, de criação de oportunidades, e, por outro, de criação de heterogeneidade, mas também de conflitos que são renovados ou criados mesmo a partir dessa pluralidade. E, evidentemente, que a manutenção de um negócio implica vários capitais que são necessários para isso. Não só capital econômico, mas também capital social e capital cultural, o que não está disponível para todos. Mesmo que a pessoa tenha dinheiro para abrir um negócio, são outros meios que são necessários para que isso funcione. Obviamente que não funciona para todos e isso traz consequências imediatas.

IHU – Como se caracteriza o empreendedorismo popular e quais suas diferenças para o empreendedorismo em sentido amplo?

Henrique Costa – Também como parte das contradições que cercam a ideia de empreendedorismo nas periferias de São Paulo, o empreendedorismo é muito diferente daquele mais glamourizado que vemos nas classes médias e nos bairros centrais das grandes cidades, em especial em São Paulo, onde tem uma classe média que sempre foi muito empreendedora.

Temos hoje, o que é muito comum, desde os restaurantes com perfil “globalizado”, que encontramos em Berlim, São Paulo, Nova Iorque, as startups e o empreendedorismo tradicional, que também é muito dinâmico na cidade e resultado de condições prévias muito privilegiadas. Inclusive, essas pessoas de classe média têm muito mais condições de arriscar em um negócio, porque se o negócio eventualmente não dá certo, geralmente elas têm um colchão para se apoiar para poder começar de novo e até começar outro negócio.

O que não é permitido para as classes populares, mais baixas, que estão sempre andando no “fio da navalha”. Então, qualquer erro de estratégia ou passo dado sem muita reflexão pode gerar consequências muito graves. Não só endividamento, que é o mais comum, que as pessoas passam muito tempo sem conseguir crédito ou com o nome sujo. Mas também consequências para família, consequências sociais, às vezes perder a casa por dívida, e usar familiares para ficar renovando o cadastro de Pessoa Jurídica – PJ. Um exemplo muito comum é a empresa quebrar, para ter um novo CNPJ a pessoa vai lá e usa o nome de familiares e vira uma bola de neve.

Não dá para glamourizar o empreendedorismo popular, as pessoas que tentam essas saídas empreendedoras têm sonhos e aspirações, assim como qualquer outras. Não é porque o empreendedorismo de classe média tem menos chances de dar errado que ele é mais legítimo, mas ele também está ancorado em privilégios que os empreendedores populares não têm, o que faz com eles estejam muito mais vulneráveis e sujeitos às incertezas.

IHU – Quais são as principais dificuldades e os principais conflitos que os empreendedores populares enfrentam no dia a dia?

Henrique Costa – Encaixa um pouco com que eu vinha dizendo na resposta anterior. Além disso, podemos acrescentar o fato de que a tal “educação financeira”, que muita gente reivindica e muita gente condena, é algo fundamental ao empreendedor. Tem várias dificuldades que são criadas justamente pela falta de conhecimentos básicos sobre a manutenção de um negócio. Por exemplo: é muito comum que um empreendedor popular misture as contas de casa com as contas do negócio. Isto é, usa o que arrecadou na empresa para pagar dúvidas pessoais, como no cartão crédito. Isso qualquer consultor de empresa sabe, mas o empreendedor popular não necessariamente. A pessoa abre um negócio na garagem, paga uma conta com o dinheiro da outra, o que é uma receita para dar errado, mas é muito comum.

Claro que tem outras coisas que estão para além das boas intenções do empreendedor, como conseguir financiamento. Geralmente os bancos são muito rigorosos e preconceituosos com relação aos pequenos comerciantes que precisam de crédito para expandir seu negócio e não veem apoio estatal, nem meios de financiar.

Uma reclamação que ouço bastante é justamente o fato de que tem muita burocracia. É muito comum o empreendedor popular se referir ao Estado como aquele que não ajuda e ainda coloca obstáculos. Então, a demanda por desburocratização é muito comum – não vou entrar no mérito se estão corretos ou não. Mas isso é um problema de fato, não só para quem tem poucos recursos financeiros, mas pouco recursos educacionais. Tem um nível de burocracia que se exige deles e que, de fato, são muito difíceis de serem cumpridos. Claro que o Estado precisa regular isso de alguma forma, mas é uma queixa constante.

IHU – Até que ponto o empreendedorismo no contexto popular exprime uma ideologia neoliberal individualista e a partir de que momento se converte em economia moral?

Henrique Costa – Existe uma ideologia, é inegável. Temos isso difundido a olhos vistos na mídia, pelos governos – políticos falam disso. Então, é inegável que existe um incentivo por parte dessas instituições em direção ao empreendedorismo. Não acho que isso resolve tudo e que fica só nisso. Boa parte da produção acadêmica contemporânea, principalmente mais sociológica, tende a ver esse apelo ao empreendedorismo só como uma tentativa de manipulação. Eu discordo.

Muitas pessoas que buscam esses negócios próprios têm consciência dos riscos, de que não é fácil e das incertezas associadas ao empreendedorismo, mas está em busca de autonomia. Isso é um direito humano básico: buscar sua autonomia, não querer ter patrão e nem ficar subordinado a ninguém. Claro que a chance de dar errado é muito grande e que existe um certo interesse dos governos em um cenário de pós-reestruturação produtiva, onde a economia patina, e vive muito a base dos serviços e do agronegócio. Não tem mais aquela industrialização prometida, a criação de bons empregos e qualificados. Nesse cenário de desilusão, essas pessoas preferem estar comprometidas com projeto de autonomia. Tem dimensões diferentes.

A minha intenção com a pesquisa de doutorado, que vai virar livro em breve, é tentar criar nuances. Eu comecei a pesquisa com esse viés de pensar o empreendedorismo como uma ideologia que manipulava e criava falsa consciência. Eu fui vendo ao longo dos anos que isso existe, mas em recortes muito específicos. Um deles, por exemplo, é o do empreendedorismo periférico, onde tem organizações sociais, ONGs e fundações sociais que atuam na periferia criando esse estímulo. Muitas dessas pessoas, principalmente jovens, compram esse discurso mais globalizado de empreendedorismo com muito afinco, passando por que pequenos comerciantes, pessoas mais velhas e de meia idade, que eventualmente abrem um negócio, um boteco ou restaurante e não têm um discurso pronto sobre isso. As pessoas sabem o que é empreendedorismo, mas não têm uma narrativa para explicar.

Essa ideologia existe, mas o que é mais significativo na explicação é justamente isso que estou chamando de “economia moral do empreendedorismo popular”, que é ter condições básicas de bem-estar, que o mercado de trabalho hoje não provê para a grande maioria e que nunca esteve disponível para essa grande massa. Essa economia moral vai estar preocupada com outras coisas além da renda e da segurança do trabalho, é preocupada também a com a família, com a vizinhança, com certo bem-estar, com uma não subordinação e uma fuga da exaustão. É polêmico, mas muita gente que tenta um negócio novo o faz para trabalhar menos. Muitos do que resolvem empreender é porque querem trabalhar menos, mesmo que isso implique em ter menos renda e não ter direitos trabalhistas. Essas nuances e heterogeneidade das experiências que me moveu a fazer essa pesquisa.

IHU – Quais são as ocupações e os trabalhos mais comuns entre os empreendedores populares na periferia da cidade de São Paulo?

Henrique Costa – O que posso dizer, a partir do ponto de vista da minha pesquisa, para além desses comércios que são tradicionais, esse perfil que chamo de “empreendedorismo periférico”, que é uma espécie de subcategoria do empreendedorismo popular, uma categoria que está dentro desse guarda-chuva, geralmente está muito vinculada à etnia. Costumam ser negócios de gastronomia e de moda que estão muito ligados à identidade periférica ou afro-brasileira. Isso é muito comum de se encontrar na periferia, principalmente nesse empreendedorismo que se denomina periférico. É importante salientar: o empreendedorismo periférico é feito por pessoas que se identificam como periféricas e se veem nesse lugar e empreendem a partir desse lugar de identidade. Mas do ponto de vista quantitativo, não tenho como dizer com precisão, pois não é parte daminha pesquisa.

IHU – Eu gostaria que você explicasse como a economia moral se converte num mecanismo de sociabilidade importante aos moradores da periferia?

Henrique Costa – É uma pergunta interessante. Uma coisa que acontece muito em comunidades menos ligadas ao centro, que estão um pouco mais isoladas, no caso que eu menciono na minha pesquisa, que é Vargem Grande, que fica no extremo da Zona Sul da cidade, dentro do Distrito de Parelheiros, os comerciantes se apoiam muito. Eles dizem com frequência que não têm clientes, mas amigos, um consome do outro. Então, tem uma relação muito mais orgânica entre as pessoas que moram e as que empreendem no bairro.

Essa inspiração vem de uma pesquisa clássica: Richard Hoggart, sociólogo britânico, escreveu nos anos 1950 sobre a classe operária inglesa e dizia que um comerciante que estivesse trabalhando no seu próprio bairro era visto de maneira respeitável, muito diferente de um comerciante que tinha que abrir um negócio em um bairro de classe média, onde seria visto como um subordinado, alguém inferior. Essa virtuosidade do comércio local e da relação que se estabelece entre eles, é muito interessante de ver.

É claro que quanto mais se caminha em direção ao centro, quanto mais esses lugares de comércios se tornam impessoais, menos essa relação de sociabilidade se estabelece, ela fica cada vez mais interessada no negócio, no lucro. Por isso que o “fiado” é muito comum ainda nas regiões mais afastadas, de comércio mais endógeno, porque se pressupõe uma relação de confiança. Quanto mais impessoais se tornam essas ruas de comércio, menos esse tipo de relação de confiança existe, então tem uma impessoalidade e um individualismo muito maior e também um ceticismo maior, as pessoas são menos afeitas a confiar não só em outras pessoas individualmente, mas nas instituições, bancos, prefeituras, governos do estado e governo federal.

IHU – Qual é a relação desses empreendedores das periferias com a Polícia Militar, seja no contexto do comércio, seja no contexto familiar?

Henrique Costa – É claro que a questão da criminalidade está presente praticamente em todo o território brasileiro e em São Paulo não deixa ser o caso. Várias dessas regiões são dominadas pelo Primeiro Comando da Capital – PCC, por exemplo. Isso gera nessas pessoas um sentimento de insegurança que também faz com que elas assumam discursos mais securitários de defesa da polícia, por mais policiamento.

O exemplo mais contundente da minha pesquisa é Paraisópolis, que temos os “fluxos”, os bailes funk que atraem milhares de jovens da cidade toda e que geram contrariedades com os moradores. Muitos moradores são a favor do policiamento, são a favor que polícia impeça os bailes funks de acontecer. Eu não diria que tem uma relação mais formal, mas tem uma expectativa de que a Polícia Militar resolva certos conflitos que são endógenos.

O baile funk, apesar de gerar muita controvérsia entre os próprios moradores, também tem o lado econômico. É curioso porque muitos moradores vivem do comércio no baile funk. Às vezes o sujeito aluga sua laje que vira uma espécie do camarote do baile, o pessoal que é ambulante vende comida, bebida, cigarro. Para o interlocutor que está ali, vendo tudo isso acontecer, ao mesmo tempo que entende que isso traz uma atividade econômica virtuosa para o bairro, traz também muitos transtornos para os moradores, principalmente para quem tem filhos e para os mais idosos.

Apesar do dinamismo econômico que está associado à festa, o discurso securitário predomina e, nesse sentido, a polícia é muito requisitada. Não diria respeitada, porque todo mundo tem certo receio da polícia, mas entre a polícia, o baile funk e o PCC, provavelmente a polícia seria mais bem-vinda.

IHU – Como os conflitos de classe se expressam na relação entre os empreendedores populares da periferia e os moradores de outras regiões?

Henrique Costa – Hoje não é possível dizer que na periferia só tem precariedade. Além dessa questão do empreendedorismo, os serviços públicos melhoraram. Em São Paulo, o metrô chegou a Campo Limpo, a Capão Redondo, o que foi uma mudança muito significativa na vida das pessoas. Tem ainda o Minha Casa, Minha Vida.

No Campo Limpo, por exemplo, vemos a expansão desses condomínios, isso gera modos de vida renovados, não necessariamente para melhor, mas são novas formas de viver suas vidas. Então, muitas pessoas que têm comércio na periferia e conseguiu prosperar por meio da consolidação desses negócios, acaba preferindo ir morar em condomínios, onde supostamente tem mais segurança. Ter filhos também é um apelo, pois muitos interlocutores me falam que quando eram jovens podiam brincar na rua e a saída é ir morar nesses condomínios, pois possibilita a criança brincar na “rua”. É um arremedo desse modo de vida que deixou de existir, pelo menos na memória das pessoas.

Tem uma interlocutora do Campo Limpo que tem três filhos e se ressente muito porque as filhas não podem brincar na rua como ela fez. Mas a juventude dela foi justamente nos anos 1990, onde, por outro lado, havia os Racionais MC’s dizendo que existia um "Holocausto Urbano" acontecendo. É muito curioso avaliar esses pontos de vista que parte da experiência que são muito diferentes. Ela trabalhou em um salão de cabelereiro e hoje trabalha nesse ramo da beleza. Ela tentou fazer um negócio na Chácara de Santo Antônio, que é um bairro de classe média alta. Arrendou um salão lá e teve muitas dificuldades, porque o salão na periferia está sempre cheio, mas na Chácara de Santo Antônio só tem movimento durante a semana. Para ela foi bem difícil, porque ainda pegou o período da pandemia, que foi outra dificuldade imensa. Ela fez isso movida por uma expectativa de mobilidade social, que não era só uma mobilidade de padrão de consumo, mas uma mobilidade de status. Ela se via entre a sua clientela de classe média como uma pessoa maior, mais reconhecida, porque fez vários cursos de especialização, então ela entendia que tinha esse mérito.

Esse é outro ponto importante entre os empreendedores populares: as pessoas acreditam muito no mérito, que vem tanto da experiência quanto das qualificações. As pessoas estão indo atrás de qualificação para poder acreditar que isso, por si só, vai trazer um retorno para o negócio. Isso é um conflito de classe, como você mencionou. São muito complexas essas situações, não necessariamente têm resultado positivo, pelo contrário, não só em questão de quanto consegue prosperar economicamente, mas isso tem mudanças muito significativas em relação aos modos de vida, sociabilidade e maneira com que se relaciona com os vizinhos e outras classes sociais também.

IHU – Como a verticalização das periferias, a construção de torres e condomínios, tem alterado a sociabilidade comunitária nestas regiões?

Henrique Costa – Eu já adiantei essa resposta. Isso é muito significativo, não é um detalhe. Para exemplificar, durante a pandemia, esses negócios se multiplicaram; os dados oficiais corroboram isso. Na prática se via muita gente perdendo emprego em restaurantes que fecharam, e começaram a fazer comida em casa ara vender por delivery. Por meio do WhatsApp e do Instagram anunciavam esses negócios e muitos desses clientes eram do próprio condomínio.

Então, o sujeito abria um serviço de marmita, por exemplo, em casa, negócios totalmente familiares com o marido cozinhando, a esposa administrando e a filha realizando as entregas – esse é um exemplo real que estou mencionando. Inclusive um casal gaúcho que conheci, migraram para São Paulo, trabalhavam em restaurante e passaram por essa situação de perder o emprego. O condomínio no fim das contas acabou sendo o esteio da prosperidade deles. Estava dando razoavelmente certo, o marido tinha uma experiência grande com comida italiana e o próprio condomínio acabou sendo o espaço do êxito desse negócio totalmente familiar. A verticalização da periferia é central para esse processo.

IHU – Guilherme Boulos publicou, antes do segundo turno, uma “Carta ao Povo de São Paulo” na qual faz um mea culpa da esquerda em relação aos empreendedores das periferias. O que significa esse movimento político?

Henrique Costa – Sobre essa questão política de como os candidatos tentaram lidar foi muito por conta do resultado bastante significativo do Pablo Marçal nas eleições municipais. Essas iniciativas, como abrir linha de crédito, não conseguem fugir de um perfil muito eleitoreiro. E o que o Pablo Marçal propõe é algo muito mais profundo, ele entende o empreendedorismo como modo de vida. Claro que a interpretação de empreendedorismo dele é muito mais de um individualismo muito pouco solidário e que não está nenhum pouco preocupado com a sociabilidade ou com criação de redes de solidariedade, mas com um estímulo ao “cada um por si”. Esse tipo de discurso tem tido muita repercussão e adesão, é inegável, ele fez 1,5 milhão de votos.

O que Guilherme Boulos tentou fazer foi um arremedo disso. Como que tentar dar uma resposta a essa demanda, que é real. Não é uma questão inventada, as pessoas estão de fato se interessando por isso e estão buscando essas alternativas e como se responde a isso? Não creio que a esquerda teve condições de dar essa resposta e também não acho que vai ter, é algo que vai contra os princípios básicos do que é uma sociedade fundada nos valores de esquerda. O que o Boulos fez foi o que era possível, ao mesmo tempo em que não consegue disfarçar muito o caráter eleitoreiro.

IHU – Como avalia o resultado das eleições municipais de São Paulo?

Henrique Costa – O resultado em si não foi grande surpresa, pois o Ricardo Nunes era o favorito, é o atual prefeito e tem a máquina pública ao seu favor. Além disso, criou um arco amplo de alianças, que o permitiu ter muito tempo de TV. Era um resultado esperado, o próprio Guilherme Boulos vinha de uma rejeição alta desde a eleição passada e isso nunca se alterou. Todos sabiam que seria muito difícil reverter essas condições.

Apesar disso havia uma expectativa alta por conta da presença do presidente Lula na campanha dele, teve muito mais recursos financeiros, foi uma candidatura prioritária para esses partidos. Apesar de ele não ser o favorito e ter que lidar com essas adversidades, não deixa de ser um resultado decepcionante. A diferença de votos entre eles foi muito grande, o Boulos praticamente não conseguiu mais votos do que teve na última eleição, mesmo com todos esses pontos a favor.

A presença do Lula não foi a que ele esperava, mas ele contou mais do que deveria com isso. Claro que não podemos atribuir o resultado das eleições a influência dos padrinhos – o Bolsonaro mesmo não teve grande influência no processo. O Guilherme Boulos ficou muito dividido, foi muito difícil fazer certas escolhas em relação à adequação do discurso. Apesar de ser visto como radical para muita gente, isso não o impediu de ter a votação que teve nas eleições passadas, onde era muito mais “azarão”. A tentativa de moderar também não deu grande resultado.

O efeito Marçal

O mais importante a pensar a respeito das eleições, primeiro, foi o êxito do Marçal, pois por pouco não foi ao segundo turno. Ele praticamente não tinha partido, era um candidato que era ele mesmo, um fenômeno inédito no Brasil: um candidato com nenhuma estrutura partidária tradicional, com nenhum tempo de TV, ter alcançado o resultado que ele teve basicamente apoiado por sua expertise no mundo digital, que está muito além da compreensão tradicional de política e processo eleitoral que estamos acostumados. Ele trouxe instrumentos novos, que não têm nada de positivo porque beiram à ilegalidade, mas ficam naquela fronteira. Essa expertise o ajuda a driblar inclusive a legislação, como aconteceu quando ele teve as redes sociais fechadas pela justiça, conseguiu criar um canal novo e praticamente não teve interrompida a atividade dele. Esse é um fenômeno mais relevante e o que mais se destaca do pós-processo eleitoral.

O lugar comum da esquerda

Quanto à esquerda, virou um lugar comum dizer que ela tem que fazer autocrítica, reflexão etc. A esquerda fez o que era possível, o problema do Boulos está além da figura dele e do presidente Lula. Trata-se de entender os tempos que vivermos, as consequências das próprias políticas que o PT implementou nas últimas décadas. Já vínhamos falando do Minha Casa, Minha Vida, ProUni, que tiveram impacto muito grande na vida dos brasileiros, mas é um impacto não previsto. Um impacto que talvez não tenha sido mais favorável ao lulismo. Hoje o Brasil não tem crédito para criar novos programas – o Lula cobra muito isso, de o governo trazer resultados e mostrar novas ideias, mas não tem. Talvez a resposta seja outra; já é mais complicado porque entra nos próprios fundamentos da esquerda histórica.

Leia mais