Para o professor, pesquisador e atual presidente do IBGE, um dos nossos maiores desafios é enfrentar o analfabetismo digital, que atinge 3 a cada 4 brasileiros
A primeira metade do século XX foi marcada por uma transição econômica nacional que tinha como horizonte a mudança de uma matriz meramente agrária para uma sociedade industrial. A síntese desse projeto, de algum modo, cabe no que se chamou “Era Vargas”, em alusão ao presidente Getúlio Vargas. Tratava-se de um projeto que tinha como objetivo a construção de uma sociedade urbana e industrial. Na década de 1960, João Goulart, o Jango, colocou em pauta as reformas de base, que jamais seriam colocadas em prática. O projeto industrial, com os militares, ganhou um contorno mais dependente, com o financiamento do Fundo Monetário Internacional – FMI, mas, ainda assim, comprometido com a indústria nacional. O começo da ruína do projeto industrial viera com a radicalização do neoliberalismo no Brasil nos anos 1990.
“O projeto modernista era um projeto de construção de sociedade urbana e industrial. O que acontece a partir dos anos 1990 é uma interrupção nesse projeto, uma pregação, uma retórica contrária à chamada Era Vargas, ou seja, se passou a defender o fim da Era Vargas. De certa maneira, isso desembocou no declínio das classes sociais e frações de classe que estruturavam o capitalismo industrial no Brasil”, explica Marcio Pochmann em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “O Brasil, nesse sentido, mistura sinais de uma nova modernidade, que seria a sociedade da digitalização, mas com uma ruína da sociedade urbana e industrial que ocorre na virada dos anos 1980 para os anos 1990”, complementa.
De um modo muito particular, revivemos na contemporaneidade a chaga do analfabetismo vivida na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX no Brasil, só que desta vez se trata de um analfabetismo digital. “O problema central do Brasil, ao meu modo de ver, é o analfabetismo digital. Um processo de iletramento digital enorme que ocorre na sociedade brasileira, que faz com que ela tenha dificuldade de reconhecer o que é verdadeiro e o que é falso”, adverte o entrevistado. “Estamos falando que 4/5 da população brasileira não tem o letramento, não sabe identificar o que é verdadeiro e o que é falso e porque quando ela entra em um desses buscadores de informação a informação que lhe chega é com base no perfil que ela tem e, portanto, a mesma pergunta feita por pessoas com perfis diferentes resulta em respostas completamente diferentes”, sublinha.
Pochmann, junto com o professor Luís Fernando Vitagliano, acaba de lançar O atraso do futuro e o “homem cordial” (Hucitec, 2024). O livro será discutido em um minicurso homônimo, com cinco encontros on-line, promovido pelo Instituto de Economia da Unicamp. As aulas acontecem de 18 de novembro a 19 de dezembro, às segundas-feiras. Para saber mais informações, acesse aqui.
Marcio Pochmann (Foto: Audiovisual G20 Brasil)
Marcio Pochmann preside o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE desde 2023 e é professor colaborador voluntário no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. É graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1984), pós-graduado em Ciências Políticas pela Associação de Ensino Superior do Distrito Federal e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (1993). Foi pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (1989) e obteve o título de Livre Docente em 2000 pela Unicamp. Pochmann foi presidente do Instituto Lula de 2020 a 2023, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea de 2007 a 2012 e da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020. Atuou como Consultor Internacional da Organização Internacional do Trabalho – OIT.
IHU – Embora o Brasil tenha tido esteticamente um modernismo muito rico e vanguardista, do ponto de vista social a modernidade continua um projeto inacabado. Como pensar o crepúsculo da modernidade, sendo que ela foi, por diferentes razões, uma construção interrompida?
Marcio Pochmann – O propósito deste livro [O atraso do futuro e o “homem cordial” ] é oferecer uma interpretação da realidade do Brasil nesse primeiro quarto do século XXI, fugindo um pouco das visões do presentismo. O Brasil tem tido contribuições importantes que abordam, basicamente, a interpretação dos fatos do cotidiano. E a nossa preocupação tem sido de oferecer uma interpretação mais estrutural da sociedade brasileira. É justamente nesse sentido que o título destaca o atraso do futuro, partindo do pressuposto que o atraso e a modernidade, no caso dessas especificidades, se combinam ao longo do tempo. Então, não temos só um processo de atraso e depois uma modernidade, na verdade há uma interligação, uma relação dialética se quisermos.
Reprodução da capa do novo livro de Marcio Pochmann (Foto: Divulgação)
O ponto central pelo qual estamos entendendo que há uma situação em que o país viveu uma perspectiva de formação na sociedade urbana e industrial e hoje vive um processo de deformação dessa sociedade urbana e industrial. E o ponto de partida desta mudança, desta inflexão histórica, está relacionada às opções que o Brasil fez, especialmente a partir de 1990, quando ele aderiu a um receituário neoliberal, que de certa maneira interrompeu o projeto modernista que estava em curso desde a década de 1920 (se quisermos ser precisos desde a Semana da Arte Moderna de 1922). O projeto modernista era um projeto de construção de sociedade urbana e industrial, que era o que se tinha na primeira metade do século passado, olhando o centro do capitalismo, a Europa e mesmo os Estados Unidos.
O que acontece a partir dos anos 1990 é uma interrupção nesse projeto, uma pregação, uma retórica contrária à chamada Era Vargas, ou seja, se passou a defender o fim da Era Vargas. De certa maneira, isso desembocou no declínio das classes sociais e frações de classe que estruturavam o capitalismo industrial brasileiro. O que temos são sinais recorrentes do atraso, ou de desmodernização nacional, em meio a uma mudança de época em que se constitui recentemente uma sociedade assentada no processo de digitalização da sociedade. O Brasil, nesse sentido, mistura sinais de uma nova modernidade, que seria a sociedade da digitalização, mas com uma ruína da sociedade urbana e industrial que ocorre na virada dos anos 1980 para os anos 1990.
IHU – Em que sentido o Brasil teve uma formação e uma deformação de um projeto nacional?
Marcio Pochmann – O sentido dessa formação tem como referencial teórico Caio Prado. O sentido da colonização do Brasil marca como ponto de partida de onde nós viemos, uma sociedade atravessada pelo processo de colonização português, um processo que se encaixava perfeitamente dentro do sistema colonial europeu de extração de riqueza através do método da Plantation – plantação em grande escala usando trabalho escravo – e também por meio da extração de minério, como ouro e outras pedras preciosas, que diz respeito ao chamado Ciclo do Ouro. A promessa do capitalismo no Brasil, a transição do capitalismo de uma sociedade fundada na escravidão, basicamente uma sociedade mercantil, era trazer uma modernidade que passava de uma herança que veio do Império. O primeiro censo realizado no Brasil, em 1872, identificava que apenas 15% da população poderia ser considerada alfabetizada. Em 1872 também 1,5 milhão da população era escrava. Essa herança teve como uma resposta a ideia da modernização capitalista.
Ocorre que estamos hoje nesta terceira década do século XXI, os anos 2020, e o nosso problema hoje não é fundamentalmente o analfabetismo analógico da língua pátria, embora isso exista, é uma parcela muito diminuta da população que não sabe ler e escrever. O problema central do Brasil, ao meu modo de ver, é o analfabetismo digital. Um processo de iletramento digital enorme que ocorre na sociedade brasileira, que faz com que ela tenha dificuldade de reconhecer o que é verdadeiro e o que é falso. Ou seja, o agir comunicativo, usando [Jürgen] Habermas, para expressar uma forma de convergência política de ideários que se dá em uma sociedade – guardada as proporções – muito parecida com aquela do final do século XIX, do ponto de vista das dificuldades de ter uma atuação compatível com o que se esperaria de uma sociedade avançada. Um país que se constituiu, o sentido da formação, por uma parcela muito pequena da população. Estamos falando do censo de 1872 em que temos 15% da população brasileira que tem alguma proximidade com a língua pátria, com habilidades de poder utilizar o que a sociedade naquela época oferecia.
Hoje nós estamos na sociedade de transformação digital e temos um percentual, segundo as estimativas do Banco Interamericano de Desenvolvimento e da União Internacional de Comunicação, de que apenas 24% dos brasileiros possuem o letramento digital. Estamos falando que 4/5 da população brasileira não tem o letramento, não sabe identificar o que é verdadeiro e o que é falso e porque quando ela entra em um desses buscadores de informação a informação que lhe chega é com base no perfil que ela tem e, portanto, a mesma pergunta feita por pessoas com perfis diferentes resulta em respostas completamente diferentes. Nós estamos vivendo essa combinação de uma modernidade da transformação digital com um atraso brutal. Sem um programa de letramento digital. O Ministério da Educação atualmente tem um pacto constituído para a superação do analfabetismo básico, tradicional, mas não temos nada com relação ao analfabetismo digital nesse sentido. Essa é uma questão-chave que já foi identificada em 1930 por José Ortega y Gasset, sobre A Rebelião das Massas. Hoje nós temos uma massificação dos brasileiros que opera nas redes sociais, se manifesta de uma forma que nós não sabemos muito bem qual é o sentido dessas expressões, porque elas estão muito contaminadas por uma sociedade com baixo letramento.
Esse é o sentido de uma formação que vem da origem de um país para poucos e que, de certa forma, a promessa capitalista não superou isso. É óbvio que houve avanços, a modernidade se constituiu no Brasil, pois éramos um país agrário anos 1920, com uma expectativa de vida média de 34 anos de idade. Hoje somos um país que passou por uma industrialização, que tem um padrão de consumo e uma sociedade de massa, urbana, mas que tem características ainda muito próprias que se imaginava terem sido superadas pelo desenvolvimento capitalista no país.
IHU – Como o “homem cordial” se articula com a estrutura de poder da modernidade brasileira? Como isso está ligado a uma visão política colonialista?
Marcio Pochmann – Recorremos a esse conceito, sempre muito controverso e com diferentes interpretações, para sublinhar algo que era muito próprio de um sentido da formação – para usar essa expressão – de uma sociedade agrária e analfabeta. Uma sociedade que resistia a aquilo que o Euclides da Cunha distinguia, ao olhar o Brasil no final do século XIX: 1) o país situado na região litorânea, que seria aquela parcela da população com algum acesso à educação e ao padrão de consumo europeu, mais identificada com o projeto da modernidade; 2) e uma parte restante situada no interior do país, uma parte vista inclusive com preconceito do caipira.
Então, a ideia que se expressou é de uma dualidade, de uma dicotomia que Francisco de Oliveira destacou que tem uma relação de funcionalidade entre essa perspectiva. E, portanto, a ideia de cordialidade, que era muito intrínseca a uma sociedade agrária, atrasada se quisermos, ela foi transposta por uma sociedade urbana e industrial, da identificação da dificuldade do nosso povo associar e separar o público do privado, do sistema eleitoral em que as pessoas não votam em instituições e nos partidos, mas votam em pessoas. São traços marcantes de um passado que se mantém presente nesse sentido. Por isso que a ideia do homem cordial que vai superando situações distintas que o país viveu ao longo dos últimos 200 anos.
IHU – Não seria o “homem cordial” uma forma, conquanto contraditória, de fugir da razão técnica própria de uma modernidade que no Brasil nunca se realizou?
Marcio Pochmann – Eu penso que a modernidade se realizou, porém de forma incompleta. Nós temos ilhas de modernidade e de inovação tecnológica de padrão internacional, isso é inegável. Agora isso é marcado por uma profunda heterogeneidade. É como os cepalinos – estudiosos da escola da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal –, na segunda metade dos anos 1950, identificavam na América Latina como uma heterogeneidade estrutural: está na estrutura da sociedade brasileira diferenças e desigualdades que são marcantes, mesmo no setor produtivo, no interior da própria sociedade. Nesse âmbito, o que nós estamos falando, é que a modernidade não se completou e foi interrompida. E, entendemos que interrompida por outro projeto político que ganhou e domina o país desde os anos 1990, que vem com a democracia.
A eleição dos presidentes [Fernando] Collor e Fernando Henrique [Cardoso] foram fundamentais como marcadores de uma mudança de época nesse sentido. Porque o Brasil, que até então tinha uma participação na Divisão Internacional do Trabalho, como um grande país produtor de um sistema industrial complexo, diversificado e integrado, com forte participação das exportações manufaturadas de maior valor agregado foi, a partir dos anos 1990, se especializando em atividades menos complexas, menos integradoras do espaço territorial porque são atividades vinculadas ao comércio externo. Então, vinculam-se mais com o exterior do que a integração regional e territorial do país. Isso significa mecanismos de enclaves da sociedade.
Portanto, tem enclaves de modernidade cada vez mais rodeados por um largo atraso, que vem marcando o Brasil por várias situações que conhecemos, cuja expressão significa uma espécie de retorno ao que era o Brasil na República Velha. Porque se olharmos o período brasileiro do final dos anos 1980 para cá, o crescimento da renda per capita é praticamente igual ao crescimento da renda per capita durante a República Velha, entre 1889 e 1930, em que a média do crescimento é 0,7% ao ano.
Analisando as características do sistema eleitoral, a forte presença de representações vinculadas às atividades mais dinâmicas do país, que atualmente são vinculadas às exportações de produtos primários, como era também na República Velha. Nós estamos com característica que marcam um sistema político e social cada vez mais dependente do chamado “sistema de jagunço”, que prevaleceu na Primeira República, que foi a forte presença entre multidões de sobrantes do campo, a presença do fanatismo religioso e o banditismo social – Virgulino Lampião. O que era Lampião? Ele mobilizava a massa sobrante do campo. E sobre o fanatismo religioso, o que foi a Revolta de Canudos? Um fanático religioso organizava 25 mil pessoas, que era a segunda maior concentração de pessoas, que só perdia para Salvador no estado da Bahia.
Se olharmos para o Brasil de hoje, vamos perceber o crescimento do fanatismo religioso e do banditismo social, seja pela milícia ou pelo crime organizado. Esse sistema jagunço tem seu fermento de expansão associado a um contingente – eu estimo entre 60 e 70 milhões – de brasileiros sobrantes nesse projeto neoliberal que enterrou o Brasil a partir dos anos 1990. Eles são sobrantes e não servem mais para a dinâmica do capital que se instalou no Brasil. E uma parte crescente depende basicamente de programas de gestão dessa massa sobrante, que são os programas sociais, importantíssimos, diga-se de passagem, mas eles não oferecem um horizonte. Na medida em que olhamos, em 1985, o Brasil tinha 2,5% da sua população dependendo de programas sociais de transferência de renda; hoje supera 40% da população. Ou seja, 40% da população não tem como viver a não ser por meio da transferência de renda ou os mecanismos que o sistema jagunço vai criando.
IHU – Quem são as pessoas que estão nesse contingente que o senhor se refere?
Marcio Pochmann – Nós tínhamos uma massa sobrante que resultou justamente da transição da escravidão para o capitalismo no final do século XIX – temos o fim da escravidão em 1888. Aquela massa de pessoas que não eram escravizadas, que eram homens e mulheres brancos pobres que não eram escravizados, tampouco proprietários. Qual era o caminho desse segmento, em que a maior parte estava no campo? Seria o mercado de trabalho como integrador desse contingente de pessoas.
Ocorre que ao longo da Primeira República, o dinamismo voltado basicamente para a exportação do complexo cafeeiro, não tinha condições de absorver aquele contingente de pessoas provenientes da sociedade escravista. Tem a Revolução de 1930, o projeto de modernização de 1922, que foi na verdade uma perspectiva de criação de uma saída para essa massa sobrante no campo através da expansão das cidades, constituindo uma espécie de sociedade salarial. Ou seja, o trabalho assalariado era aquele portador de direitos, ele tinha uma identidade – a Carteira de Trabalho –, que permitia às pessoas alçarem uma condição que jamais tinham conhecido no passado por meio do trabalho. O trabalho dava identidade, pertencimento, permitia às pessoas terem o final de semana sem trabalho, férias e direito aos feriados. Era o projeto iniciado nos anos 1920, mas sobretudo com a Revolução de 1930 com os tenentistas, que teve prosseguimento até o final dos anos 1980.
O que estamos vendo hoje, com a ruína da sociedade urbana e industrial, o desmoronamento das classes sociais básicas desta sociedade, isto é, o desmoronamento da burguesia industrial e sua transformação, em parte, em uma burguesia rentista, que depende de ganhos financeiros através dos juros. E uma outra burguesia comercial, que é uma burguesia importadora, que compra lá fora para vender mais barato e, portanto, depende da taxa de câmbio. Quanto mais valorizada a nossa moeda, mais fácil e mais barato comprar lá fora e vender aqui no Brasil. Houve uma transformação da burguesia brasileira, das classes proprietárias. E, de outro lado, uma reconfiguração da classe trabalhadora. Obviamente que nós temos uma classe trabalhadora, mas ela não é mais aquela classe trabalhadora estruturada pelo capitalismo industrial.
Temos uma classe operária e industrial, mas o que ganha dimensão é uma classe trabalhadora assentada em ocupações gerais, temporárias – que muitos dizem precárias. São ocupações que não dão um sentido, um horizonte do ponto de vista da identidade e do pertencimento, porque hora a pessoa pode ser pintor, hora motorista, hora passeador de cachorro, hora piscineiro ou hora trabalhador no transporte individual etc. Enfim, ele pode ser qualquer coisa. Então, é uma ocupação que não dá sentido de vida, ele está muito vocacionado ao presentismo. É isso que vai desmoronando a relação capital-trabalho constituída a partir dos anos 1930 com o capitalismo industrial. O desmoronamento da sociedade urbana-industrial leva a um outro tipo de relação, que entendemos aqui como sendo “débito e crédito”. Ou seja, cada um sabe mais ou menos quanto custa viver a partir do seu padrão de vida, e ele sabe que o ganho que ele tem não é suficiente para dar cobertura a essa despesa e, portanto, ele vai fazer qualquer atividade laboral, inclusive não legal, para poder sobreviver. Mas vai depender também da filantropia, dos programas sociais, das igrejas e até mesmo do crime para tentar sobreviver.
É um outro tipo de relação que se constitui obviamente em uma classe trabalhadora que persiste no Brasil, e esses sobrantes de que estou falando são pessoas que não têm espaço no capitalismo do país hoje. O capitalismo não os quer e eles estão tentando sobreviver.
Na década de 1980 nós tínhamos quase 70% dos ocupados em atividades tipicamente capitalistas. Uma atividade capitalista é aquela em que o emprego só existe se houver uma receita superior ao custo, ninguém vai empregar outra pessoa se o custo for maior do que a receita que ele pode obter. Então, as atividades tipicamente capitalistas são aquelas que operam em função do lucro.
Atualmente, as ocupações tipicamente capitalistas respondem por 49% do total dos ocupados. Cerca de 11% dos ocupados estão em atividades do setor público, portanto, em atividades que não operam segundo o lucro, e nós temos cerca dos 40% dos ocupados em atividades de subsistência ou economia popular, que não operam pela lógica do lucro, mas visando alguma receita para poder sobreviver e vivendo o presentismo.
A massa sobrante rebelde, os questionadores dessa condição, são geridos através do Estado Policial. Portanto, é a polícia atuando ou é o sistema carcerário os aprisionando. Agora, o restante dessa massa, que não é rebelde ou questionadora, de alguma forma, vai sendo assistida pelo Estado Social brasileiro. O Estado Social oferece condições mínimas para as pessoas sobreviverem que são questões muito importantes. Mas isso tudo à margem do capitalismo; o capitalismo não os quer, não os aceita na lógica atual que estamos operando.
IHU – Quais são e como se caracterizam os principais ciclos históricos do desenvolvimentismo brasileiro?
Marcio Pochmann – O desenvolvimentismo é uma visão, a partir da condição periférica, de uma sociedade que almeja um estágio diferente. Seria justamente o ingresso e consolidação do Brasil na era industrial, porque viemos de um longevo agrarismo, muito precário e atrasado. Mas a ideia do desenvolvimentismo é uma construção histórica do início do século XX, diante o desconforto da promessa que se tinha das elites de dizer o Brasil:
De fato, o país tem um atraso, mas esse atraso é temporal. Porque o Brasil se tornou independente em 1822, tem cem anos de independência, então leva tempo para chegar ao tal do futuro, o futuro está garantido, o Brasil é o país do futuro, mas por uma questão temporal porque é um país novo. De forma que não é possível ser uma Europa, que é uma sociedade antiga que tem muitos anos, mas nosso futuro está garantido porque naturalmente, um país esplêndido pela natureza, pela riqueza e pelo povo, vai alcançar esse desenvolvimento através da questão da evolução temporal.
O que acontece no primeiro quarto do século passado é um questionamento dessa dimensão temporal. O atraso, porém, não é um problema temporal, o atraso resulta da forma com que o Brasil se insere no mundo: o Brasil se insere no mundo como um produtor de mercadorias primárias, assentadas nos recursos naturais e nos baixos salários. Se o Brasil quiser ser moderno, ele precisa mudar sua posição relativa na Divisão Internacional do Trabalho. Nós temos que internalizar a produção que nós importamos. Por isso, o projeto de industrialização de produzir internamente, de gerar valor agregado. É um projeto de substituição de importação que tem início no começo dos anos 1930. Essa é uma fase pela qual há um grande desenvolvimento das forças produtivas, um processo que muda o Brasil drasticamente: o que era o Brasil dos anos 1920 e o que é o Brasil dos anos 1980 é uma mudança da “água para o vinho”.
A partir dos anos 1990 o Brasil regride à condição anterior. Ou seja, tinha-se uma base avançada, moderna e estrutural e se passa a acreditar que o bom é importar, que aqui só se produz o atraso, só se produz carroças e o bom é comprar lá fora. E, de fato, o Brasil passou a comprar lá fora em maior ritmo, tanto é que o acesso à nossa modernização e à digitalização é feito por meio do comércio externo. Como nós não produzimos computadores, celulares, tabletes etc., os equipamentos da modernidade, nós somos importadores e mudamos nossa posição relativa.
Hoje, a Divisão Internacional do Trabalho se dá, de um lado, em países que produzem e geralmente exportam bens e serviços digitais, e, de outro lado, os países que são importadores, porque não produzem totalmente ou produzem parcialmente e dependem da importação. O Brasil é o quarto maior mercado consumidor de bens e serviços digitais. Então, as possibilidades de termos aqui empregos de qualidade são muito difíceis porque dependemos da importação dos produtos de maior qualidade. E só completamos essa equação de comprar lá fora porque tem um setor exportador muito consistente, porque é através das exportações primárias do Brasil – exportações do agronegócio, da mineração etc. – que gera a receita externa para poder pagar essas importações. Se não houvesse esse saldo comercial que vem da exportação de petróleo, minério e de produtos alimentícios, nós não teríamos como pagar pelo custo da importação da modernidade digital.
IHU – Quais os principais dilemas que a Nova República vem enfrentado nesses últimos 36 anos? Parece que o pacto da Constituição Cidadã de 1988 está cada vez mais ameaçado. Faz sentido isso?
Marcio Pochmann – A Constituição foi uma tentativa de dar continuidade ao projeto de 1982 Esperança e Mudança, que era, na verdade, uma perspectiva de transição da ditadura para a democracia através de um conjunto grande de reformas. Reformas que se associavam ao programa de Reformas de Base do início dos anos 1960, no governo do João Goulart. Se olharmos o programa de 1982, Esperança e Mudança, está lá a reforma agrária, do Estado, bancária etc. Esse projeto foi derrotado pela emenda Dante de Oliveira. O projeto Esperança e Mudança prescindia das eleições diretas em 1985. Como sabemos não houve eleição direta, e o resultado foi uma transição, como os cientistas políticos identificam, "pelo alto".
Uma transição que se imaginava que a Constituinte poderia permitir, de alguma forma, que o projeto inicial do começo dos anos 1980, Esperança e Mudança, pudesse avançar. De fato, a constituinte foi muito avançada, mas ela pressupunha ser regulada, ela não é autoaplicável. A regulação dessa Constituição foi derrotada nos anos 1990 quando temos uma espécie de desmonte da Constituição de 1988 pelo lado social e pela ordem econômica. O fim do monopólio da Petrobras, a separação da ideia de Seguridade Social entre Previdência, Assistência e Saúde. Então, ela já foi derrotada nos anos 1990. O que permaneceu foi a ordem jurídica e a ordem democrática – isso é inegável.
O fato é que também essa constituinte que foi regulamentada com essas características sofreu uma série de novas emendas constitucionais, que foi alterando o princípio que os constituintes de 1986/1987 tinham naquele momento.
A Nova República é a mais longeva democracia que temos – maior e melhor experiência democrática –, mas com uma enorme dificuldade de fazer qualquer reforma no capitalismo brasileiro. A maior reforma que nós temos é o Sistema Único de Saúde – SUS, mas não conseguiu mexer em outros setores, não fez as reformas bancária e tributária, por exemplo. É a expressão que permite aos governos democráticos ir gerindo essa massa sobrante, garantindo o ciclo democrático. Mas é o que vem sendo questionado pelo avanço da extrema-direita, pelo questionamento crescente de posições antissistema, anti-Constituição de 1988, questionando a ordem que não transforma a sociedade – é um impasse que estamos vivendo nesse sentido.
IHU – O que explica o fato de que a pauta econômica nacional está cada vez mais capturada pelos discursos e interesses do agronegócio, em contraposição ao interesse da maior parte da população?
Marcio Pochmann – É importante dizer que nós estamos inseridos na modernidade da transformação digital por importância inegável das nossas exportações – o agronegócio. Mas também as exportações de petróleo e outros minérios fazem parte desse pacote que permitem ao Brasil estar inserido na Divisão Internacional do Trabalho como um grande produtor e exportador de produtos, cuja receita garante que possamos adquirir insumos, sem os quais estaríamos muito mais atrasados do que estamos. Hoje, muitas vezes as pessoas não entendem que uma desvalorização da nossa moeda impacta diretamente na inflação porque o Brasil importa trigo, por exemplo. Então, a desvalorização da nossa moeda significa mais reais para comprar o mesmo produto em dólar, o que tem um rebatimento no custo de vida. Nós estamos em uma situação, que o Brasil até desconhecia, que é a ausência de crises no balanço de pagamentos, porque temos uma reserva externa muito grande e isso decorre da capacidade do Brasil produzir e exportar.
Esta capacidade de produzir e exportar, que é um grande ativo brasileiro, não contribui na medida de contribuir em termos de potencial no que diz respeito à geração de valor agregado, que são atividades que exportamos praticamente in natura. Nesse ponto, teria justamente um espaço importante da própria reindustrialização do país, que é a política defendida pelo presidente Lula e que me parece extremamente correta, porque é a possibilidade de gerarmos empregos de qualidade, de fortalecermos os segmentos intermediários da população – classe média assalariada – e depende de ter uma estrutura produtiva superior à que temos hoje.
A tensão que existe hoje nesse sentido é como é possível o que nós temos de ativos, que são voltados para o exterior, como algo compatível e convergente a um projeto nacional que passe por uma estrutura produtiva superior à que temos hoje. Porque ela é de fundamental importância para poder gerar empregos de qualidade e, ao mesmo tempo, garantir um futuro para os brasileiros, especialmente compreendendo que essa massa sobrante não encontra seu futuro em programas sociais. Os programas sociais são necessários, mas deveriam ser, em tese, temporários para uma transição para uma situação melhor.
IHU – No outra ponta do processo, nas cidades, o empreendedorismo neoliberal parece ter se tornado a única alternativa capaz de sensibilizar corações e mentes das populações em vulnerabilidade. Como lidar com esse novo mundo do trabalho e desestruturação social?
Marcio Pochmann – O projeto neoliberal atacou as classes estruturadoras da sociedade passada. Estamos diante de outra burguesia no país, de outra classe trabalhadora. O que acontece é que as instituições foram constituídas, como, sindicatos, partidos políticos, associações de bairros, moradores e estudantis, que nós tínhamos e hoje estão com grande dificuldade de interagir e representar essa sociedade que se estrutura de nova forma no país. Percebemos isso olhando o mundo do trabalho, por exemplo, a dificuldade dos sindicatos de engajarem novos sindicalizados e estamos assistindo a uma queda da sindicalização que não é de hoje. Assistimos também ao descrédito da política. Basta olhar para o resultado das eleições passadas para entender o contingente de pessoas que não vão votar ou que votam em branco. Isso tudo são expressões de que as instituições que nós temos hoje estão incompatíveis com essa sociedade que demanda novas instituições, uma reformulação das instituições e do Estado brasileiro, que também está em desconexão com essa outra sociedade que ganha dimensão no Brasil.
IHU – Em um cenário de crescimento da extrema-direita, como é possível disputar a realidade do presente e do futuro no Brasil?
Marcio Pochmann – Essa visão questionadora da ordem existente, uma posição antissistema, resistente, era algo próprio da esquerda brasileira. Se não formos muito longe no tempo, concentrarmos na transição da ditadura para a democracia, o papel da esquerda ou da oposição de formas mais progressistas, era questionadora da ordem que vinha do regime militar. Então, era uma posição antissistema, tanto é que defendeu uma Constituição, um novo regramento da sociedade. Ocorre que hoje nós temos uma situação inversa, porque quem defende a ordem que está aí são os progressistas do passado. E a direita conservadora do passado hoje se coloca como questionadora da ordem atual, fazendo coro a uma base neoliberal dizendo que o Estado atrapalha, que o Estado impede a meritocracia. O que nós estamos vendo é uma retórica que mudou de lado e, para a população em geral, há uma dúvida sobre quem fala a verdade. Onde está a verdade disso tudo?
Nós estamos com décadas de democracia que têm prometido melhorar a vida dos brasileiros e nós estamos vendo a dificuldade de melhorar a vida dos brasileiros diante dos obstáculos que se apresentam.
IHU – A discussão que realizamos nesta entrevista tem como ponto de partida seu novo livro O atraso do futuro e o “homem cordial”, escrito com Luís Fernando Vitagliano. Pode falar um pouco mais sobre a obra?
Marcio Pochmann – Esse é um trabalho de reflexão mais de fôlego que ocupa quase um vácuo hoje no Brasil, porque estamos muito contaminados por uma literatura e uma interpretação, importante e inegável, mas muito concentrado no presente. Esse trabalho visa fornecer uma interpretação de maior prazo, de um novo prazo. Obviamente que não estamos comparando, mas se pegarmos autores clássicos do Brasil, como Gilberto Freyre, Alberto Torres, quem eram autores conservadores e autoritários, mas tinham uma crítica à deformação da sociedade agrária, do patriarcado. São autores que fazem uma interpretação de longo prazo desse movimento que está em curso, como também Oliveira Viana. Eram autores críticos ao capitalismo liberal e à defesa do Estado, mas do ponto de vista autoritário. Temos também do lado progressista autores como Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado, para citar alguns, que também tinham uma visão de longo prazo para saber onde vem o Brasil e para onde ele está indo, processo de formação e deformação etc.
É esse espírito que nos estimulou a constituir esse trabalho, fugindo um pouco da interpretação do presente, de uma análise da chamada Nova República, que não se caracteriza por presidentes ou períodos, mas uma análise mais ampla, tentando entender onde o Brasil se encontra e para onde pode vir a ir. E razões que tentam explicar a situação tal como hoje nós identificamos nesse primeiro quarto do século XXI.