"A pirâmide econômica também esconde uma pirâmide de injustiças sociais", diz o biólogo
"Só construindo uma economia de partilha, mais atenta ao homem do que ao dinheiro, se lançam as bases para a construção de um mundo menos desequilibrado e menos exposto a tensões, conflitos e guerras." As palavras de Dom Domenico Sorrentino, bispo de Assis e presidente da comissão promotora de "A Economia de Francisco", no evento realizado no ano passado, de modo on-line devido à pandemia de Covid-19, resume o espírito que anima o Papa Francisco a desafiar os jovens a prospectar não somente o futuro, mas o presente. Tanto é assim que, ao se dirigir à juventude, o pontífice declarou: “Vocês não são o futuro: vocês são o presente.”
Nessa perspectiva, o biólogo e pesquisador Róber Freitas Bachinski, que participará do evento “Economia de Francisco” entre 22 e 24 de setembro deste ano, em Assis, na Itália, sugere que a adesão ao veganismo pode ser uma alternativa para o desenvolvimento de uma ecoagricultura que vise a produção de alimentos e a justiça social, tal como manifesto em carta enviada ao Papa Francisco recentemente. [1]
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Bachinski enfatiza que o chamado de Francisco para a construção de outro modelo econômico "pulsa no coração de todos". "Não há como ignorar a necessidade de criar uma nova estrutura social que faça a ponte entre o nosso desenvolvimento científico, econômico e tecnológico, com uma perspectiva de igualdade universal, que transcenda todas as barreiras criadas pelas relações de poderes, inclusive a própria barreira cultural. Vejo esse chamado descrito na Laudato si’ como uma voz universal por essa mudança de paradigma social, não vindo do papa, nem da Igreja Católica, nem da sociedade cristã, mas um chamado que já vem transcendendo essas barreiras, e isso se manifesta também no Encontro Economia de Francisco", afirma.
Róber Freitas Bachinski
Foto: Arquivo pessoal
Róber Freitas Bachinski é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências, com ênfase em Toxicologia Ambiental, pela Escola Nacional de Saúde Pública e doutor pelo programa de pós-graduação em Ciências e Biotecnologia da Universidade Federal Fluminense - UFF.
Tem experiência na área de Morfologia, com ênfase em interações celulares; em Neurociência, com ênfase em Neurotoxicologia e Neurofarmacologia, e em Métodos Alternativos ao Uso de Animais. É membro fundador e diretor do Instituto 1R - Instituto de Promoção e Pesquisa para Substituição da Experimentação Animal.
Desenvolvedor da Rede Brasileira de Educação Humanitária - RedEH, membro fundador e diretor da Caravana Contraponto - Projetos de desenvolvimentos sustentáveis, com o Santuário Natural Vale do Sol em Colinas do Sul. É presidente da Associação de Guias em Ecoturismo no Desenvolvimento Ambiental e Sustentável - AGENDAS, de Colinas do Sul, Chapada dos Veadeiros, Goiás.
Pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Róber Freitas Bachinski publicou o artigo "Quando o mito se torna verdade e a ciência, religião", em Cadernos IHU ideias, no. 117. A edição pode ser acessada aqui.
IHU - O que lhe fez despertar para o chamado do Papa para discutir a “Economia de Francisco”? Como você compreende os princípios dessa Economia?
Róber Freitas Bachinski - Acredito que todo chamado parte de um interesse real daquilo que deve ser feito, daquilo que realmente pulsa no querer a necessidade de fazer, especialmente quando esse chamado vem de Sua Santidade, o Papa Francisco. Eu realmente acredito que o propósito desse chamado é unir jovens ideologicamente revolucionários para dar forma a um sonho do Santo Papa Francisco, descrito na Carta Encíclica Laudato Si’, de 2015, para despertar no coração das pessoas, inclusive dos jovens que estarão no encontro, esse futuro solidário, e na busca por essa economia justa, chamada de Economia de Francisco, que representa um modelo de economia do futuro.
Da mesma forma que o chamado para criar essa rede de economia veio através do Papa Francisco, esse chamado pulsa no coração de todos, seja de forma consciente, seja ainda encoberto por interesses. Não há como ignorar a necessidade de criar uma nova estrutura social que faça a ponte entre o nosso desenvolvimento científico, econômico e tecnológico com uma perspectiva de igualdade universal, que transcenda todas as barreiras criadas pelas relações de poderes, inclusive a própria barreira cultural. Vejo esse chamado descrito na Laudato si’ como uma voz universal por essa mudança de paradigma social, não vindo do papa, nem da Igreja Católica, nem da sociedade cristã, mas um chamado que já vem transcendendo essas barreiras, e isso se manifesta também no Encontro Economia de Francisco.
Soube desse encontro em 2019 através da professora Rita de Cássia Maria Garcia, da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Trabalhamos juntos na Rede Brasileira de Educação Humanitária – REDEH, em ações para implementar um ensino superior no Brasil que seja humanitário, ou seja, além das fronteiras que separam os humanos, mas também das fronteiras que separam os humanos dos outros animais. Nesse sentido, proponho problematizar as relações de poder e a separatividade social de forma transversal e pontuar o especismo como uma relação de poder tão importante de ser discutida como todas as outras que envolvem os seres humanos, como o racismo, o machismo, a homofobia, o capacitismo, e todas as separações colonizantes que, de certa forma, limitam a expressão da vida do outro através do julgamento social de alguém com mais poder de força econômica ou social. O entendimento de como essas relações de poder criam a separatividade social é importante para criar essa nova economia e chegar ao sonho de uma Casa Comum, como descrita na Laudato si’, e avançar de forma sustentável, orgânica e justa.
Esse entendimento faz com que lutemos para fora, para um mundo mais justo, mas também traz a consciência das relações que nós internamente sustentamos. Essa revolução social do Papa Francisco é também uma revolução interna de cada um, para entender também o que nos separa do outro, sendo o outro a outra raça, o outro gênero, a outra espécie. Ou seja, o que faz com que nós não consigamos ver o outro como um irmão, limitando o outro pelos nossos julgamentos, mas entendendo que todos nós vivemos na mesma casa e que, como uma parte inseparável dela, somos também essa Casa Comum.
Semana Laudato si' 2022
IHU - Por que uma perspectiva de um frade que viveu na Idade Média ainda é capaz de nos indicar caminhos para a concepção de uma economia pela vida, que leva em conta toda e qualquer forma de vida do planeta?
Róber Freitas Bachinski - Eu acredito que quando falamos de Francisco de Assis, não falamos de um frade ou de um humano, mas de uma “ideia original”, que transcende o homem no espaço-tempo. Essa é a ideia da não-separatividade, daquele que se vê parte do mundo, que consegue realmente ver no outro o irmão porque já desconstruiu em si mesmo a barreira do outro, da espécie, para uma real igualdade da conectividade dentro dessa Casa Comum. Da mesma forma que ele transcende essa barreira entre as espécies, ele transcende também as barreiras do espaço-tempo, trazendo hoje essa relação de igualdade necessária para pensar essa nova economia, essas novas relações sociais.
Esse amor genuíno que Francisco representa só foi possível na Idade Média através da compreensão do mundo como apenas um, sem o julgamento sobre a Natureza, abrindo uma luz dentro da sociedade para o amor incondicional e para o perdão global. Mas não o perdão da Igreja ou do outro, e sim o perdão de si mesmos por serem parte da Natureza. Quando alguém chama um animal de irmão, não significa que ele está se colocando no mesmo nível social do animal, pois isso seria especismo, seria separatividade. Mas ele está se permitindo ser natural como um animal, está se permitindo entrar no reino da natureza, de ser apenas um dentro do todo. São Francisco foi tão revolucionário que permitiu ao homem se aceitar como natural e realmente filho de Deus em um momento de extremo julgamento social, a ponto de séculos mais tarde influenciar a criação do Humanismo.
IHU - A própria narrativa bíblica coloca o humano como o centro da Criação. Em que medida a própria religião constituiu esse lugar do humano como o dominador da natureza? Como, na experiência e narrativa de Francisco de Assis, essa lógica é descontruída?
Róber Freitas Bachinski - A natureza na narrativa bíblica é feita para um humano experimental, que tinha uma relação de separação, de ingenuidade, com princípios para serem seguidos. O humanismo, no século XV, entendeu essa relação de poder com a economia e, de certa forma, conseguiu a independência social da separação Deus-humanos. Assim os humanos passaram a viver nessa separação, criando um humano modelo, que é representado no centro do Homem Vitruviano, por Leonardo Da Vinci. Esse humano é o humano que realmente assumiu socialmente o centro da criação após a passagem da Idade Média. Essa permissão aos humanos de caminharem sozinhos pela autoaceitação teve a influência da não-dualidade de São Francisco de Assis, alguns séculos antes na Idade Média.
Homem Vitruviano (Foto: Reprodução)
Novamente, o ideal de igualdade e justiça de Francisco de Assis é convocado para agora vencer outra separatividade e criar novamente uma revolução. Enquanto o humano do humanismo se viu livre para dominar – e naquele momento talvez até fosse necessário para vencer outras relações de poderes da época –, hoje esse chamado busca a geração de um novo modelo econômico que parte de um novo humanismo, ou de um pós-humanismo. Enquanto aquele humano tinha como um dos pilares o antropocentrismo, justamente para ser independente de um Deus central, mas assumir algum poder social, o pós-humanismo vem quebrar essa separatividade para incluir o humano como parte da casa comum. Então eu vejo essa revolução como um amadurecimento da nossa autonomia enquanto criação, para que possamos viver em harmonia com o todo.
O antropocentrismo do humanismo do século XV foi como uma antítese para a tese do teocentrismo da Idade Média, mas nessa nova construção que se apresenta, o próprio centro é questionado. Quando vejo São Francisco de Assis, imagino alguém que, já naquela época, questionou o seu centro em relação ao mundo, algo que talvez apenas agora nós estejamos preparados para questionar enquanto humanidade. Ao dissolver o seu centro e se permitir ser igual ao mais diferente, ser naturalmente igual, livre da separatividade, São Francisco também dissolveu as barreiras que o limitavam àquele espaço-tempo.
IHU - Em que medida a ciência moderna nos distanciou dessas perspectivas de Francisco de Assis? O que há de questões de fundo sobre a ideia de dissecar animais e plantas para compreender o mundo?
Róber Freitas Bachinski - Essa conquista dos humanos de saírem dos braços de Deus, fruto do humanismo, deslocou o teocentrismo para o antropocentrismo, mantendo a relação de separatividade. Agora, o homem ocupa o centro do mundo, que outrora era de Deus. Ele conquista independência pela economia, pois foram as navegações que passaram a patrocinar o centro do mundo. O humano foi criado então em três pilares: o antropocentrismo, a racionalidade e o cientificismo.
O antropocentrismo desloca o centro do mundo para os humanos, mas para um humano em especial, o homem vitruviano, o homem grego patrocinado pelo burguês italiano. Esse é o centro do humanismo e também o centro da racionalidade e do cientificismo. Enquanto esse homem, que em parte está na formação social de todos nós, não largar a posição de centro do mundo, as relações de poder continuarão. O antropocentrismo gera a ideia de que o mundo está a serviço desse homem, que não se aceita igual ao todo. A ciência e a razão estão a serviço desse homem, mas ele próprio se limita dentro do antropocentrismo, deixando de vivenciar a experiência do outro exatamente por julgar que o outro existe.
O Papa aos jovens da "Economia de Francisco": não tenham medo, ninguém se salva sozinho
O pós-humanismo filosófico vem questionar essas relações de poder, de separatividade, e criar uma nova estrutura. Eu vejo esses últimos cinco séculos como um movimento de um humano buscando independência, mas sem saber ainda qual seu papel dentro da natureza – por isso todos os conflitos, brigas e tentativas de conquistas.
O pensamento antropocêntrico limita o nosso desenvolvimento a experiências individuais, e isso é resultado da nossa construção social, que gera a perspectiva do mundo a partir de um humano central. O mundo todo deve servir a esse humano, a ciência e a razão devem servir a esse humano. Essa perspectiva está sendo questionada hoje, com vários movimentos de independência social, com as diversas descentralizações e por uma tecnologia que nos leva a uma globalização intensa. A conexão virtual do mundo mostra como nós não somos indivíduos, ou centros, mas somos pontos de uma grande rede. Cada ponto com a sua referência, mas totalmente conectados. Enquanto podemos observar isso com maior intensidade para os pontos socialmente próximos de nós, como dentro da nossa cultura, família, também podemos perceber que esses pontos se ligam nessa rede pelas comunidades das redes sociais e interesses.
O desafio é expandir essa rede para aqueles que nós não vemos, pois eles também fazem parte desse mundo e também possuem suas perspectivas, os seus centros de suas vidas, seus métodos e suas ciências. O que vejo nesse movimento é uma evolução da forma de ver o mundo, livre de julgamento do outro, aceitando o outro como a nós mesmos, como a parte inconsciente que forma a nossa vida, e assim realmente construindo o mundo para todos.
IHU - Hoje, essa visão de ciência que disseca a natureza para a conquistar já é superada? Por quê?
Róber Freitas Bachinski - A mudança de paradigma na ciência é social: primeiro a sociedade muda e, a partir da mudança da perspectiva social, a ciência muda, os interesses científicos mudam e a forma como se veem as anomalias científicas dos paradigmas dominantes mudam, mudando os paradigmas. Assim é a evolução científica, como mostra “A estrutura das revoluções científicas”, de Thomas Kuhn.
Nós ainda vivemos em um paradigma antropocêntrico do humanismo (com o borrão de um burguês homem italiano do século XV no centro), porém essa revolução já está em andamento, desconstruindo esse humano e conquistando espaços para outras representatividades, através do entendimento e clareza sobre as relações de poder que esse humano representa. Outros paradigmas sociais são levantados para substituir o humanismo, como no Oriente, com o neo-humanismo do filósofo indiano Prabhat Ranjan Sarkar e, recentemente, na filosofia ocidental, com o desenvolvimento do pós-humanismo filosófico. Esses paradigmas vêm mostrar que a nossa condição de humano não é real; ela foi conquistada economicamente e mantém relações de poder através dessa conquista. Esse modelo artificial e imposto de humano gera conflitos nas configurações sociais, na atitude imperialista e colonizadora, a nível de nações, etnias, gêneros, classes sociais e espécies. A ciência humana, o racionalismo científico, quando fruto do antropocentrismo, é uma ferramenta utilizada de forma vantajosa para os humanos em detrimento daqueles que nós não consideramos humanos. Porém, além das vantagens e interesses serem escravizados por uma categoria limitada de humanos, também limita o potencial de conhecimento a um determinado interesse, limitando a própria ciência. Uma ciência pós-humanista, que abre o conceito de humanismo e suas considerações morais para além do humano central, irá considerar as necessidades de forma universal, valorizando e percebendo outros saberes e linhas de conhecimentos que talvez hoje ainda sejam invisíveis socialmente.
IHU - Como essa ciência pode contribuir para redescobrirmos um caminho de convivialidade e justiça socioambiental, aos moldes da experiência de Francisco de Assis?
Róber Freitas Bachinski - O que busquei mostrar até aqui é que São Francisco de Assis, ao olhar nos olhos de um animal e se considerar irmão dele, não estava fazendo uma comparação de igualdade ao animal, mas estava fundindo a sua alma à natureza, tendo o autoconhecimento de que os animais, a natureza e ele, enquanto humano, são fruto da mesma realidade em uma relação de empatia que transcende o “eu” e a separatividade do corpo físico. Essa mudança de perspectiva amplia a nossa visão de mundo, amplia o nosso entendimento do que é importante. No momento em que se desconstrói uma relação de poder que separa o eu (sujeito) do outro (objeto), o universo de interesses amplia – e também o universo de considerações morais. Além da comparação da natureza do outro com um “eu”, relativizando as experiências dos outros às experiências individuais do “eu”, o outro, que antes era relativo, se torna o “eu” absoluto, como diferentes perspectivas de um mesmo todo.
IHU - Na carta que enviastes ao pontífice, afirmas que “justiça e a sustentabilidade alimentar partem de uma abdicação pessoal dos privilégios de consumo”. Gostaria que desenvolvesse brevemente essa ideia e destacasse sua concepção de consumo.
Róber Freitas Bachinski - As relações de poder são estruturas sociais que negam direitos sociais ou considerações sociais a alguns (os excluídos) para gerar privilégios para outros (os poderosos ou opressores), conforme indicam os livros “Pedagogia do oprimido”, “Pedagogia da autonomia” e “Educação como prática da liberdade”, de Paulo Freire. Parece que é uma luta do bem contra o mal, mas essa figura de linguagem fala mais sobre a nossa construção individual e aquilo que reproduzimos na sociedade. Todos nós temos algo de excluído e temos algo de poderoso e, ao mesmo tempo, tudo isso é relativo ao espaço-tempo. Uma característica que agrega poder socioeconômico no Brasil de hoje, há cem anos poderia designar uma população oprimida na Europa. Então as relações de poder são extremamente passageiras, mas moldam completamente a nossa visão de mundo. Ter consciência de quais relações de poder nós mantemos no nosso dia a dia é um desafio e um exercício de autoconhecimento, mas é extremamente necessário para a construção de um mundo mais justo. É ter consciência de que nascemos em uma sociedade opressora, com muitas relações de poder, que internalizamos na nossa construção individual. Essas relações de poder geram a separatividade e as relações vantajosas, negando direitos para o outro para gerar privilégio para o “eu”.
IHU - Dentro dessa mesma perspectiva, apontas o veganismo como um caminho. Qual sua concepção de veganismo e como esse modo de vida pode contribuir tanto para a justiça socioambiental como para a segurança alimentar da humanidade?
Róber Freitas Bachinski - Quando identificamos em quais relações de poder estamos como privilegiados ou opressores, podemos trabalhar para desconstruir essa relação de poder internamente e naturalmente mudar a nossa realidade. Assim, a práxis da desconstrução interna do especismo é o veganismo, como a práxis da desconstrução interna do machismo é o feminismo. Não é oposição, mas o resultado de uma desconstrução interna de uma relação de poder internalizada inconscientemente no desenvolvimento individual na sociedade.
A relação de poder é socialmente negativa para o oprimido, pois gera injustiças sociais, mas também é internamente negativa para o opressor, pois forma mecanismos de defesa do ego que gastam energia e geram separatividade, como mostra “O ego e os mecanismos de defesa”, de Anna Freud.
Ser opressor é algo que não é natural. Assim, nós temos que esconder, de forma inconsciente, porém ativa, as nossas ações opressoras ou privilegiadas, inclusive de nós mesmos. Esses conflitos aparecem na nossa práxis, nas nossas escolhas e na nossa relação com o nosso mundo, interno e externo. Isso também se apresenta no nosso prato, nas nossas escolhas de consumo ou de apoio. Além dessa relação psicológica da formação social, ainda há o resultado prático. Quando geramos privilégios, estamos gerando concentração de poder, que representa no mundo uma concentração de renda, com mais gastos ambientais e com uma maior pegada ambiental. A pirâmide econômica também esconde uma pirâmide de injustiças sociais, uso de água e terra. Nessa pirâmide, vendo de uma visão livre do especismo, incluem-se os animais abaixo da base.
IHU - A partir dessa sua perspectiva, podemos compreender que sua proposta é de concepção de uma cosmopolítica dos seres vivos? Do contrário, como evitar que o humano assuma para si esse lugar de dominação sobre as outras espécies mesmo quando conceber caminhos alternativos ao sistema de dominação vigente?
Róber Freitas Bachinski - A mudança política e econômica será naturalmente justa no momento em que nós desconstruirmos a dualidade gerada pela formação do humanismo e representada no antropocentrismo, com o Homem Vitruviano como modelo desse centro. Todo movimento de expansão de considerações morais e sociais é pós-humanista, pois busca ampliar a consideração de direitos humanos. Como meta, o neo-humanismo e o pós-humanismo filosófico visam a não-dualidade ou a pós-dualidade - que, no fim, são a mesma coisa, a desconstrução da relação sujeito-objeto. Assim, ao trazer consciência sobre as relações de opressão que existem internamente e que são inconscientemente reproduzidas socialmente, nós estamos nos libertando dos nossos julgamentos e limitações e assim gerando novas formas de desenvolvimento comunitário, com menos tensões sociais e com uma harmonização natural.
IHU - Em suas pesquisas, o senhor também aponta uma nociva relação de poder dos seres humanos sobre outros seres vivos. Que relação é essa e como ela pode levar a danos para a própria humanidade? Como essa relação de poder e dominação dos humanos sobre os não-humanos se estabelece no contexto das grandes produções agrícolas, nas lógicas do agronegócio? E como conceber alternativas a esses modos?
Róber Freitas Bachinski - Quanto maiores as mudanças geradas no ambiente, maior é a perturbação na vida individual de outros seres autônomos. E essa perturbação se acumula e interage conforme amplia a complexidade dessas mudanças. Por exemplo, ao implementar um pasto para gado, diminui-se a biodiversidade do sistema, os animais daquela região têm seus territórios restritos e, muitas vezes, espécies básicas necessárias para aquele bioma desaparecem, gerando o desaparecimento de uma linha de sucessão ecológica, afetando toda a cadeia trófica. Quando se retira o gado e o substitui por uma monocultura, o impacto ambiental é maior, e a perturbação na autonomia dos outros animais também; isso é feito para gerar privilégio de uma produção intensiva de grãos para os humanos. Ainda no caso da pecuária, tanto de forma intensiva quanto extensiva, utiliza-se rações vegetais. Essas rações são produzidas a partir de grãos que geraram impacto na vida de outros seres através da monocultura. Então o impacto causado pela monocultura é utilizado para alimentar animais. Apenas 10% da energia de um nível trófico se mantém para o outro nível trófico. 90% da energia que os animais consomem da ração é utilizada no metabolismo diário do animal. Assim, além do impacto da produção animal e, claro, da exploração e negação de vida aos animais, 90% dos impactos gerados pelas monoculturas são desperdiçados quando são utilizadas para alimentar animais, com o objetivo de alimentar humanos, seja carne, ovos ou laticínios. Em torno de 79% da soja brasileira é utilizada para produção de ração. E a soja representa 49% da produção de grãos do Brasil. Assim, em torno de 38% da produção de grãos no Brasil é utilizada para alimentar animais. E apenas 10% disso, ou seja, 3,8% realmente contribuirá com a nutrição da população que se alimenta do animal. Indiretamente, no processo de produção de ração animal, a humanidade perde 34,2% da produção de grãos brasileiros que poderiam alimentar diretamente os humanos em uma economia alimentar baseada em plantas.
Considerando que em 2018 o Brasil utilizava 664.784 km² para a agricultura, uma área de 227.356 km² foi utilizada e trabalhada na agricultura apenas para manter o metabolismo dos animais para a alimentação humana. Essa área é maior que o estado de Roraima, por exemplo. Além disso, 70% da produção de soja brasileira é para exportação, considerando também os problemas ambientais e sociais que geram essa complexidade comercial normalizada. Juntamente com essa perda de grãos e exportação vão-se todos os subsídios necessários para a produção, como o desgaste da terra e a perda local de minerais, gasto de água, modificação dos cursos dos rios, diminuição de habitats, queimadas, trabalho humano, uso de implementos agrícolas e sofrimentos envolvidos na negação de direitos básicos aos animais.
Uma relação de igualdade ocorre no momento que se diminui ou se anula a complexidade das relações, e isso ocorre de forma individual a partir da identificação dos privilégios frutos de uma relação de poder. Por exemplo, utilizar produtos de origem animal ou de outros processos exploratórios e abrir mão desse uso, substituindo por algo com menos complexidade, como uma produção local de alimentos, de fácil acesso, com menos níveis tróficos ou econômicos. Essa baixa complexidade também movimenta o mercado local e o pequeno produtor, além de possibilitar uma maior consciência alimentar. Também no autoconhecimento dos nossos privilégios, temos consciência das nossas reais necessidades e muitas vezes torna-se mais fácil simplesmente abandonar o hábito sem uma real necessidade de substituir aquela prática que apenas era alimentada pelo desejo do consumo. Isso em geral ocorre no consumo de produtos animais.
IHU - Outro front de pesquisas em que o senhor atua é sobre o uso de animais em experimentos, os sacrifícios em nome da ciência. Por que, ainda hoje, há muita resistência em abolir todo e qualquer teste e experimento com sacrifício de animais?
Róber Freitas Bachinski - À primeira vista, o animal, no contexto científico, pode ter sido transformado socialmente em um objeto de experimentação científica, com o intuito de conhecer algo ou testar o efeito de um fármaco ou droga, retirando as considerações morais dos animais. Ou seja, não é um rato - diz o mecanismo de defesa do ego -, é um objeto necessário para a saúde humana. Esta é uma racionalização muito utilizada para a exploração do outro: um “mal necessário”. Conforme fui entendendo a história da experimentação animal, fui também entendendo a relação de poder por onde ela se implementa. O animal, na ciência, não configura um objeto de experimentação, pois ele não é um modelo para representação fisiológica do humano e apresenta várias falhas metodológicas e diversas anomalias de previsão do modelo baseado em outras espécies animais para a espécie Homo sapiens. O animal, na ciência, é um objeto de proteção moral aos humanos vulneráveis. Ele foi incluído primeiramente para proteger os humanos vulneráveis dos crimes científicos exatamente pela separatividade. Quando, em uma relação de poder extremamente polarizada, um grupo da espécie Homo sapiens perde socialmente a característica de humano, ou seja, se afasta daquilo que um grupo de mais poder considera como igual, ele também pode ter privilégios retirados e ser transformado em objeto. Isso acontece na escravidão, ou no nazismo, e acontece diariamente sob várias relações de opressão na atualidade.
A obrigatoriedade do uso de animais na ciência vem pelo Código de Nuremberg, de 1947, do Julgamento de Nuremberg, através do artigo III, que diz que antes de testar qualquer substância em um voluntário humano, definido no artigo I, a substância deve ter sua eficácia e segurança assegurada em animais. Ou seja, o animal é colocado como uma barreira para se evitar que o humano seja a primeira cobaia daquela substância ou procedimento.
Porém, o Código de Nuremberg já foi resultado do julgamento de vários crimes científicos do Nazismo, exatamente pela separatividade e pela centralização do poder. Em 1900, o Império da Prússia e, depois, em 1931, a Alemanha havia declarado diretrizes que proibiam usar humanos como objetos de pesquisa, sem consentimento informado e em condições de vulnerabilidade social (DOI: 10.1136/bmj.313.7070.1445). Ou seja, a ciência precisa de uma formação ética e de uma análise ética e social externa, pois a sede de conhecer pode transformar pacientes morais, especialmente socialmente vulneráveis, em objetos, sem a preditividade creditada, apenas como uma barreira para outros erros éticos. São insumos, horas de vidas humanas e vidas de animais desperdiçadas. Sugiro o livro “Ciência com Consciência”, de Edgar Morin.
IHU - Vivemos tempos de aquecimento global com uma série de consequências a humanos e não-humanos. Ainda assim, a necessidade de mudança de paradigmas não é unanimidade. Quais os desafios para abordarmos o tema de uma conversão ecológica plena?
Róber Freitas Bachinski - O grande desafio é olhar para nós mesmos e ver quais relações de poder sustentamos enquanto privilegiados. Largar os privilégios é uma decisão individual. É um desafio também por serem construções inconscientes, escondidas em mecanismos de defesa. Ninguém deseja ser opressor, mas reproduzimos relações de poder através da manutenção de privilégios sociais. Essas relações são uma busca por vantagens em relação à vida, atuações colonizantes do outro, que transformam o outro em objeto. O nosso consumo, a disposição social, a consideração moral, a formação política, tudo passa por uma construção social moldada em relações de poder e, se não observarmos nossa práxis, continuaremos a reproduzir como algo natural, sem conseguir sequer ver a demanda do outro, muitas vezes sem conhecer o outro que oprimimos. Mas o outro só existe quando existe a relação sujeito-objeto, quando existe relação de poder. Desconstruir o outro como objeto e reconhecer ele com seus interesses tão importantes quanto os nossos, é o desafio. É olhar o mundo de frente e ter coragem de largar os privilégios.
Nota:
[1] Texto esclarecendo o pedido ao Santíssimo Papa Francisco e à organização do movimento Economia de Francisco - "Veganismo para uma ecoagricultura: uma carta para o Santíssimo Papa Francisco" (Veganism for ecoagriculture and social justice: a letter for Holy Pope Francis) escrita pelo Dr. Róber Bachinski da Vila Agricultura e Justiça e assinada pela União Vegetariana Internacional and pela Catholic Concern for Animals. Essa solicitação tem recebido crescente apoio popular e está disponível aqui. (Nota do entrevistado)