Reproduzimos, na forma de entrevista, parte da conferência do pesquisador no IHU em que responde a perguntas dos espectadores pontualmente sobre questões contemporâneas como o negacionismo e o Antropoceno
Gilles Deleuze (1925-1995) concebe uma ideia de comunicação que extrapola o enlace com a linguagem, uma característica essencialmente humana. Com isso, coloca as pessoas e todo universo num mesmo patamar comunicacional que escancara a interdependência entre todos os seres do planeta. É nesse sentido que vai a fala do pesquisador André Araujo, doutor em Comunicação, na conferência O problema da Comunicação em Deleuze, realizada há algumas semanas numa promoção do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. “Como diria Deleuze, não estamos o tempo inteiro produzindo um consenso quando conversamos e nos entendemos; na verdade constituímos outras ordens de simpatia e talvez estejamos em dissensos eternos”, aponta.
Ao fim de sua explanação, Araujo ficou cerca de uma hora respondendo a questões propostas pelos espectadores. Reproduzimos a seguir esse debate [a íntegra da conferência pode ser acessada, em vídeo, abaixo], centrado em questões da atualidade, como Antropoceno, entre outras. Para ele, é preciso ter a consciência de que há relações comunicacionais entre todos os seres do planeta. “A comunicação é algo que faz parte de uma constituição própria do modo como o mundo opera, é o estabelecimento de relações. Assim, podemos observar fenômenos comunicacionais entre uma vespa e uma orquídea, entre mim e vocês, entre mim e meu computador, entre uma bicicleta e outras bicicletas ou mesmo entre uma bicicleta e uma tela, tornando essa bicicleta uma obra de arte”, detalha.
O problema, conforme aponta, é que num dado momento concebemos uma ideia moderna de comunicação que compreende apenas a articulação por meio da linguagem entre humanos, esquecendo da interdependência. “Mantemos muitas relações com a natureza o dia inteiro. Nos alimentamos, respiramos, fazemos um conjunto de coisas, mas só que terceirizamos parte dessas relações a ponto de acharmos que somos independentes disso. É como pensar que, na cidade, não temos relações com os campos de criação de gado ou com a indústria de carne de porcos”, exemplifica.
Sua hipótese é a de que teríamos nos cegado para compreender a conexão entre todos e uma ideia de comunicação para além da linguagem. “E a questão é esta: esquecemos em determinado momento que havia essas relações ou essas relações foram invisibilizadas de propósito? É importante também notarmos que essa realização coletiva de que o mundo inteiro está conectado, que meu carro tem necessariamente relação com o furacão no norte da Índia ou que o uso de dados no meu celular tem a ver com a construção da usina de Belo Monte no Pará, ou seja, que essas coisas estão conectadas e que a ação humana produz, invariavelmente, reações violentíssimas no planeta, essa tomada de consciência coletiva precisa ser mapeada”, provoca.
Assim, rompendo com essa barreira e concebendo a ampla ideia de comunicação como propõe Deleuze, há a possibilidade de se compreender e assimilar o Antropoceno, revisando todas as nossas práticas e relações que nos trouxeram até aqui. “Porque se nós somos, na comunicação, uma espécie de ciência ou pensamento sobre a constituição de relações, nós é que vamos observar a passagem desses processos”.
André Corrêa da Silva de Araujo (Foto: Frame do vídeo do Youtube)
André Corrêa da Silva de Araujo é doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e mestre pela mesma instituição, onde também graduou-se em Comunicação Social – Bacharelado em Jornalismo. Integra o Grupo de Pesquisa Semiótica e Culturas da Comunicação – GPESC. É associado da Associação Práticas e Pesquisas em Humanidades – APPH, onde desenvolve práticas de pesquisa, ensino e extensão. Também é membro fundador do Grupo de Pesquisa em Ecologia das Práticas – GPEP.
IHU – Segundo o próprio Deleuze, a filosofia não possui compromisso com o consenso. Você concorda?
André Araujo – Sim, isso é bem importante. Refletia sobre essa ideia da comunicação como consenso, mas preciso também fazer essa observação de que o consenso para Deleuze é a coisa que mais produz ojeriza. Ele é um pensador que tem um paradoxo muito importante que é essa predileção por uma dimensão do conflito como alguma forma de apaziguar qualquer problema. O consenso sempre soa para Deleuze como forma de imposição de uma perspectiva dominante, por isso ele nunca vai buscar em seu pensamento uma forma de ser normativo ou como um mapeamento do modo como uma sociedade se articula e pensa.
Pelo contrário, sempre vai buscar experiências mais marginais, que estão à borda, do modo como vivemos coletivamente e que colocam em xeque os modos de vida mais estabelecidos, porque, para Deleuze, os modos de vida que temos são apenas um hábito. Não há, para ele, razão metafísica alguma para vivermos como vivemos. Há razões políticas para viver como vivemos, mas não há nada próprio no tecido do mundo que impeça que a gente constitua um modo de viver absolutamente distinto do modo como a gente vive agora.
Assim, é um pensador marcado pelo instinto de produzir um dissenso naquilo que parece natural, estabelecido. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, ele é um pensador muito atraído por esses movimentos de simpatia. Numa ideia de simbiose, essas relações precisam ser negociadas em cada detalhe. Por exemplo, não é porque decidi que vou constituir uma relação com alguém que essa relação vai se dar. É preciso fazer um trabalho de simpatia, de sedução para conseguir fazer com que elementos heterogêneos venham a se conectar. Parece paradoxal porque ele tem essa atitude conflituosa por trás, mas também é um pensador muito preocupado com esses minimovimentos de constituição de relações.
Para ele, é nesse plano das microrrelações que o mundo se constitui. É claro que o poder, a política e a marginalização se apresentam para nós como algo gigantesco, como um bloco que bate em nossas cabeças. Mas Deleuze vai dizer que se olharmos com atenção para esse poder que parece um bloco que nos obriga a fazer coisas, perceberemos que ele é tecido por diversas microrrelações que nem percebemos que estão ali. Por isso acho que o pensamento da comunicação em Deleuze é importante, pois mesmo na ordem do poder há essas minirrelações de simpatia.
Então, pensar essa micropolítica – que é uma palavra importante para Deleuze – diz respeito a olhar para esses processos que parecem que são menores ou secundários, mas na verdade são eles os verdadeiros constitutivos. São comunicações estabelecidas sobre coisas que parecem bastante diferentes que são apresentadas como se fosse um bloco. E, assim, tentamos politicamente brigar com isso como se realmente fosse um bloco – como o fascismo e assim por diante –, sendo que é realmente urdida de maneira simpática por diversas microrrelações.
Talvez, o desafio fosse justamente este: produzir um dissenso de bloco em bloco vai nos levar a um determinado lugar, mas é preciso também entender essas micromaquinações, que chamo de comunicantes, as quais constituem essas grandes unidades que nos fazem viver de uma determinada maneira.
IHU – O argumento seria, então, da criação de uma comunicação efetiva?
André Araujo – Há um problema nessa ideia de comunicação efetiva, é algo com o que sempre me debato. É como se essa comunicação criticada por Deleuze não fosse ‘comunicação de fato’. Penso que essa tendência à polarização, às vezes, está no próprio pensamento de Deleuze, que opera por dicotomizações, com maior, menor; molecular, molar; rizoma, árvore, onde haveria um dos termos que seria o correto, o bom, o certo, e o outro lado seria o errado. No caso de duas comunicações, onde haveria uma comunicação que não é de fato efetiva, não opera ou existe, e uma outra que seria verdadeira, não podemos dicotomizar e dizer que essa análise, por exemplo, da troca de mensagens, diálogo irracional não existe no mundo. Isso existe, produz efeitos, é algo que medeia nossa vida todo santo dia. É uma dimensão que merece ser estudada e não é uma ideia de oposição a uma comunicação simbiótica como a ideia da vespa e da orquídea [alusão que Deleuze usa em sua obra Deleuze, G. e Parnet, C. (1977/2002), Dialogues. Londres: Athlone Press], sendo essa a verdadeira comunicação.
O que Deleuze quer dizer é que, dentro dessa comunicação maior, dessa transmissão de mensagens e dos entendimentos mútuos, há processos que são também comunicacionais, mas não são contemplados por essa noção de comunicação. Então, Deleuze quer abrir um outro campo para discutir um conjunto de fenômenos, que também vai chamar de comunicações, para observar como coisas que nem notamos que são comunicação, são também. É nesse sentido que a comunicação aberrante ocorreria. E tem essa dimensão inventiva e criativa que também opera em qualquer forma comunicacional, ainda que não propriamente como imaginamos. Como diria Deleuze, não estamos o tempo inteiro produzindo um consenso quando conversamos e nos entendemos; na verdade constituímos outras ordens de simpatia e talvez estejamos em dissensos eternos.
IHU – Até que ponto a sociedade teria reduzido a comunicação como aquela restrita aos humanos e como isso também impactou ou produziu uma certa surdez sobre o que nos levou ao Antropoceno? Qual pode ser a contribuição de um outro conceito de comunicação para enfrentarmos os desafios contemporâneos, especialmente os relacionados à catástrofe climática?
André Araujo – A ideia fundamental que está colocada de forma mais performativa é o fato de que Deleuze escolhe um modelo para comunicação na sua obra Uma vespa e uma Orquídea. Não é um diálogo, um parlamento, nem pessoas conversando. Já o primeiro movimento de deslocamento para a ideia de comunicação é no sentido de que comunicação não é, em nenhum nível, propriedade de pessoas. Ela é propriedade de pessoas também, mas não só. A comunicação é algo que faz parte de uma constituição própria do modo como o mundo opera, é o estabelecimento de relações. Assim, podemos observar fenômenos comunicacionais entre uma vespa e uma orquídea, entre mim e vocês, entre mim e meu computador, entre uma bicicleta e outras bicicletas ou mesmo entre uma bicicleta e uma tela, tornando essa bicicleta uma obra de arte, por exemplo.
São fenômenos de relações que vão se estabelecendo e que Deleuze vai dizer que são propriamente comunicacionais. O que é posto na pergunta é muito importante pelo fato de ter sido constituído, especialmente a partir do século XVIII, na figura de [John] Locke, por exemplo – que talvez seja um dos primeiros teóricos modernos da ideia de comunicação –, que constitui também uma ideia moderna do que é “ser gente”. Em algum momento podemos dizer “o animal racional”, que pensa, que tem linguagem e assim podemos dizer que foi definido que “os humanos comunicam”, levando essa ideia de que a comunicação seria uma forma de eu ter acesso à consciência de uma outra pessoa através da linguagem.
Isso é um problema fundamental porque, muito provavelmente, às vezes confundimos a ordem dos fatores. Observamos fenômenos no mundo, daí observamos que tais fenômenos operam também em nós e então tomamos esses fenômenos em sua especificidade como se fosse a totalidade do fenômeno. Por exemplo, veremos que bichos mantêm relação de comunicação e pensamos que nós também mantemos relações de comunicação. Assim, supomos que a nossa comunicação é a certa e a dos bichos é só secundária. Ou seja, avaliamos todo o resto depois de observarmos fenômenos em nós mesmos.
O fato de que, em determinado momento, entendemos que a comunicação era uma coisa só, mediada pela linguagem numa questão própria de consciência tal como Locke colocou, trouxe uma redução das formas pelas quais nos relacionamos com o mundo. Parece que só estamos em relação constitutiva, ou comunicacional, com nossos semelhantes, e as outras relações que mantemos com o resto do mundo não são de fato relações tão significativas quanto relações comunicacionais; essas não importam tanto, pois somos de certa forma independentes do mundo que está ao nosso redor.
E constituímos práticas concretas – não que uma seja decorrência da outra, não podemos fazer uma relação causal – que ignoraram o fato de que mantínhamos uma relação constitutiva com aquilo que não seja nós mesmos. Ou de que precisamos manter relações com animais, mesmo vivendo em uma cidade, que precisamos manter uma relação com plantas mesmo num centro urbano. Mas é evidente que mantemos essas relações e é muito curioso essa relação de que o ser humano urbano é desconectado da natureza.
Considero isso muito esquisito, pois mantemos muitas relações com a natureza o dia inteiro. Nos alimentamos, respiramos, fazemos um conjunto de coisas, mas só que terceirizamos parte dessas relações a ponto de acharmos que somos independentes disso. É como pensar que, na cidade, não temos relações com os campos de criação de gado ou com a indústria de carne de porcos, em que esses animais são criados aos milhares dentro de caixas sem que nós nunca os tenhamos visto. Como vamos dizer que não estamos nos comunicando, ou não temos uma relação constitutiva com animais porque eu sou urbano?
Reconstituir esses processos de conexões é muito importante do ponto de vista heurístico e é um problema propriamente comunicacional. Como eu, aqui no meu apartamentinho, em Santa Cecília, em São Paulo, bem hipster, posso compreender como é fundamental para a minha existência aqui que haja 100 mil porcos enjaulados no interior do Mato Grosso, por exemplo? É uma relação imediata que se dá.
E a questão é esta: esquecemos em determinado momento que havia essas relações ou essas relações foram invisibilizadas de propósito? É importante também notarmos que essa realização coletiva de que o mundo inteiro está conectado, que meu carro tem necessariamente relação com o furacão no norte da Índia ou que o uso de dados no meu celular tem a ver com a construção da usina de Belo Monte no Pará, ou seja, que essas coisas estão conectadas e que a ação humana produz, invariavelmente, reações violentíssimas no planeta, essa tomada de consciência coletiva precisa ser mapeada. Isso porque grande parte dessas conexões parece ser inalcançável em algum sentido. Parece tudo muito amplo, mas há um estudo dessas infraestruturas comunicacionais nos quais essas coisas vão se empilhando.
O importante é que o Antropoceno consiste na ideia de que agimos sobre o planeta e ele responde às nossas ações, e essa é uma retórica relativamente recente. O Antropoceno como tal não é, mas a retórica sobre ele sim. O fato de que estamos numa relação constitutiva com nosso ambiente é um fato ontológico fundamental desde sempre. Agora nós temos elementos ou dados científicos que provam algo que sempre foi, sempre é e sempre será. Consiste na descoberta coletiva de que nossas ações implicam necessariamente em comunicações conscientes, mas especialmente inconscientes com o que está ao nosso redor do ponto de vista da natureza, mas também do ponto de vista de redes ou estruturas sociais. Assim, é invariavelmente relacionado o fato de haver pessoas morando na rua ou passando fome e determinados estilos de vida.
Por fim, acho muito importante, numa noção de comunicação que desloque nossa centralidade, deixando claro que fazemos parte de sistemas muito mais amplos que nós, o fato de que quem sofre o efeito da imposição de uma relação somos nós – e quando falo nós, me refiro ao terceiro mundo como um todo. É preciso entender que quem vai sofrer esses impactos ambientais primeiro somos nós, porque aqui as relações são constituídas de maneira mais sutil, mais enjambrada. Há esse grande sistema cujo centro é a Europa, mas que envolve todos nós aqui embaixo. Tudo que se dá lá terá muito mais impacto por aqui.
Não é só pensar uma comunicação para além do humano, mas também uma comunicação que é interessada no modo como nós do terceiro mundo vamos viver nos próximos 10, 15, 20 anos. Aliás, já estamos vivendo aqui agora. É muito evidente a forma como as coisas são organizadas no mundo quando vemos que no Norte global as pessoas estão saindo na rua já sem máscara e eu estou aqui há um ano e meio trancado na minha casa. Isso não é gratuito, acontece de forma proposital. Não tem alguém lá em cima que diz que vai ser assim; é de propósito por causa de um arranjo de coisas que produz isso.
E o modo de agir e pensar politicamente em relação a elas é mapear isso, porque na Europa o simples ato de ligar um carro pode causar um furacão na Índia. A maioria dessas relações é produzida politicamente, não tem nada natural que faz com que isso aconteça e por isso é um importante campo de estudo da comunicação também. Porque se nós somos, na comunicação, uma espécie de ciência ou pensamento sobre a constituição de relações, nós é que vamos observar a passagem desses processos. O sentido de comunicação, para Deleuze, tem esse valor.
IHU – Há alguma associação entre a comunicação simbiótica e a ‘literatura menor’ de Marcel Proust ou Franz Kafka?
André Araujo – É 100% relacionado. Inclusive, Deleuze lança a ideia de comunicação aberrante num congresso sobre Proust, o que é muito curioso porque está falando sobre vespa e orquídea num congresso sobre literatura e isso parece uma coisa esquisita. Mas ele toma a ideia da relação entre vespa e orquídea de dois personagens do romance de Proust Em busca do tempo perdido (Nova Fronteira, 2017), no quarto volume, que se chama Sodoma e Gomorra, onde nas primeiras páginas do volume fala de uma relação homossexual entre dois personagens.
E Proust traduz essa relação entre os dois tal como se dá a relação entre uma vespa e uma orquídea. Então, Deleuze vai tomar essas relações constitutivas que supostamente escapa a uma regra coletivamente acordada, como até mesmo uma lei em determinados momentos, e olhar como são produtivas e merecem ser observadas. Ele vai discutir, muito amplamente, uma ideia de lei, sexualidade e comunicação, usando-se da forma como Proust entende a relação homossexual como uma forma de escape de uma lei social assim como a vespa e a orquídea escapam a uma ‘lei natural’, que seria a lei da evolução. Ou seja, não interessa a lei ou a regra fundamental, mas sim o fato de que sempre temos a possibilidade de romper essas regras ao agir de forma diferente, ao criar uma forma de relação que as coloque em outro nível.
Deleuze sempre fala sobre as núpcias contra a natureza ou como a natureza sempre procede contra a natureza própria. Assim, o que a gente acha que é natural, que é do mundo, na verdade é uma espécie de fotografia do natural em um determinado momento. A natureza se desenvolve sempre derrubando suas próprias regras – como se tivesse regras.
E há um outro sentido que tem diretamente a ver com a ideia de literatura menor, que está relacionada à obra de Kafka, quando Deleuze fala em devir animal, ou seja, vai pensar o que seria um devir animal para ele a partir do que é esse devir animal da literatura kafkaniana. É uma forma pela qual a linguagem de Kafka entra em uma relação de comunicação com um rato, por exemplo, e faz com que a própria linguagem perca um pouco seu caráter de humanidade, indo em direção ao caráter de animalidade.
O resultado da comunicação é o texto de Kafka, porque a relação constitutiva que estabelece com o rato, com um macaco, uma barata, vai abrindo e coloca que para ele virar um pouco barata precisa deixar um pouco de ser gente. E como vai deixar de ser gente? A partir da linguagem. O corpo dele não deixa de ser corpo de gente, mas a linguagem, uma das coisas que nos define como gente, deixa de ser um pouco linguagem humana, começa a gaguejar, a virar uma língua estrangeira dentro da própria língua, como diz Deleuze. E isso se dá, entre as muitas formas, através de uma comunicação aberrante, uma relação evolutiva entre Kafka e o besouro que manipula, porque ele tenta escrever como se fosse esse animal, como se a linguagem deixasse apenas de manifestar a subjetividade do que chamamos de coletivo de humano.
Assim, se está expandindo um pouco a possibilidade de a linguagem falar outras coisas e não necessariamente esse conceito muito fechado de humano. Deleuze vai mapear diversas relações entre gente e bicho em diversas formas, a partir desse devir animal da literatura de Kafka.
IHU – Podemos traçar algum impacto político dessas considerações de Deleuze sobre comunicações neste momento histórico em que o negacionismo determina grande parte do cenário político contemporâneo?
André Araujo – Essa ideia de negacionismo está aí colocada. Agora, se responde ou se pode responder à questão de as pessoas serem negacionistas por serem mal informadas, por exemplo, ou porque nós perdemos a disputa entre uma comunicação efetivamente científica e de acordo com uma série de preceitos e as pessoas estão agora se informando no WhatsApp. Mas acho que o problema do negacionismo não vai ser respondido fazendo checagem de fatos ou fazendo trending no Twitter para explicar às pessoas que é fisicamente impossível ter um chip de bluetooth inserido no corpo quando a pessoa é vacinada. Temos, nesse caso, uma experiência de mundo concreta que justifica o fato de acreditar ou constituir um mundo onde faça sentido se receber um chip através de uma vacina chinesa no braço.
A questão do negacionismo é esse fracionamento do que imaginamos que houvesse, por um período, um mundo comum quando se está jogando na nossa cara que, na verdade, sempre houve diversos mundos que possuem suas próprias regras e que são, muitas vezes, impenetráveis. E não é pela imposição de uma voz exterior, superior ou autorizada e autoritária que vai substituir esse mundo comum para todo mundo. Inclusive, politicamente, nós da esquerda sempre fomos contrários a essas vozes que falassem em nome de todo mundo.
Hoje em dia, com o mundo esfacelado, a gente quer a volta dessa voz, tem um desejo de uma voz que possa trazer um estado de coisas unificado. Tudo isso porque é complicado compartilhar o mesmo espaço com pessoas que não vivem no mesmo mundo. Mas isso sempre foi feito. Essa ideia de um mundo comum é muito recente e moderna.
Aqui mesmo no Brasil, no período pré-invasão dos portugueses, existia uma forma de comunicação entre mundos bastante distintos entre si e que operavam muito bem coletivamente. Não havia a necessidade de imposição de um mundo sobre todos os mundos que estavam ali. É claro que os povos brigavam, uns dominavam os outros, mas não havia esse mal-estar de não vivermos todos no mesmo mundo que estamos vivendo um pouco agora.
Quando a gente não vivia no mesmo mundo do conjunto de pessoas que estavam no interior do continente africano, para nós isso não era um problema. O problema agora é que essa pessoa é meu vizinho. Eu falo isso porque realmente não sei como resolver isso. Não sei se o negacionismo é assim por ele mesmo ou se não é mais como a expressão de uma autonomia de um conjunto de pessoas políticas em relação a uma realidade unificada. Não sei o que Deleuze teria para responder, é preciso pensar com mais calma.
IHU – Há alguma relação ente Deleuze e Ludwig Wittgenstein?
André Araujo – Há uma relação de bastante inimizade entre os dois pela parte de Deleuze. Se quisermos saber os termos pelos quais ele trata Wittgenstein, basta ver um vídeo chamado ABCDário de Deleuze [disponível abaixo, no original em francês]. É uma longa entrevista com Deleuze em que a entrevistadora faz perguntas que na verdade são palavras. Por exemplo: ela fala “A de Animal” e ele fala de animal. Ela diz: “B de bebê” e ele fala sobre bebês e assim segue. E o W, especificamente, é de Wittgenstein e Deleuze vai fazer seus comentários. Ele acha a filosofia de Wittgenstein muito perigosa, não gosta e acha muito problemático o modo como esse autor pensa.
Assista à íntegra da conferência