Obra de teologia política e, ao mesmo tempo, reflexão profunda sobre as ideias políticas clássicas da liberdade, igualdade e, sobretudo, a mais difícil de todas em termos de conteúdo concreto: a fraternidade
Francisco, o papa, parafraseia Francisco, o de Assis, no título de sua mais recente encíclica, Fratelli Tutti, em que recupera a fraternidade como valor central das relações não somente entre os humanos, mas entre os humanos, todas as demais espécies e o planeta. Nesse sentido o documento é, ao mesmo tempo, o testemunho de um mundo ferido e uma lúcida proposição de caminhos para enfrentarmos os dilemas contemporâneos a partir de uma visão que tem o amor e o cuidado aos mais vulneráveis como pano de fundo.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Rubens Ricupero faz uma análise da nova encíclica do papa Francisco. “Sentia-se a falta de uma nova grande síntese que refletisse sobre as profundas transformações que ocorreram no contexto social do mundo desde os fins do século XX: o desaparecimento da União Soviética e do comunismo real, a globalização, a revolução digital, o aquecimento global, a crise financeira de 2008, a pandemia”, pondera Rubens Ricupero. “Num mundo órfão de lideranças à altura dos desafios, onde os chefes dos mais poderosos países da terra encarnam o que há de pior na natureza humana, Francisco confirma em definitivo que representa hoje a consciência moral e intelectual da humanidade”, complementa.
Rubens Ricupero na Unisinos (Foto: Rodrigo W. Blum | Unisinos)
Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. Diplomata de carreira desde 1961, exerceu, dentre outras, as funções de assessor internacional do presidente Tancredo Neves (1984/1985), assessor especial do presidente da República José Sarney (1985/1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993). Foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e da Fazenda no governo Itamar Franco. Foi também embaixador do Brasil na Itália e secretário-geral da UNCTAD, órgão da ONU, deixando o cargo em setembro de 2004, quando se aposentou como diplomata. Entre suas obras, destacamos A diplomacia na construção do Brasil. 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017).
***
Para discutir o novo documento papal, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove a palestra virtual Encíclica Fratelli Tutti: uma leitura francisclariana, com Prof. Dr. Ildo Perondi - PUCPR e com o Prof. Dr. Luiz Carlos Susin - PUCRS, na quinta-feira, 08-10-2020.
Na sexta-feira, 09-10-2020, o cardeal português José Tolentino de Mendonça ministrará a conferência virtual Pandemia, um evento global. Repensar o futuro da casa comum a partir da Encíclica Fratelli Tutti.
IHU On-Line – Qual é a mensagem central da Encíclica Fratelli Tutti e que reflexões ela propõe para cristãos e não cristãos? Quais são os três pontos que destacaria do texto?
Rubens Ricupero – Terceira encíclica do Papa Francisco, segunda inteiramente dele (a primeira, Lumen fidei, resultou de colaboração com Bento XVI), a nova encíclica traz como subtítulo Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Tanto no título, extraído de um texto de São Francisco de Assis como o da Laudato si’, quanto no subtítulo, já se revela o tema central do documento, a fraternidade humana.
Há tempos se reclamava uma nova grande encíclica que atualizasse o pensamento social da Igreja tal como expresso nos quatro documentos mais importantes do passado recente: as encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), de João XXIII, a constituição apostólica do concílio Vaticano II, Gaudium et Spes (1965) e a encíclica Populorum Progressio (1967), de Paulo VI. Houve desde então outros documentos do gênero, como a encíclica Centesimus Annus (1991), de João Paulo II, e as encíclicas Deus Caritas Est (2005) e Caritas in Veritate (2009), de Bento XVI. Sentia-se, no entanto, a falta de uma nova grande síntese que refletisse sobre as profundas transformações que ocorreram no contexto social do mundo desde os fins do século XX: o desaparecimento da União Soviética e do comunismo real, a globalização, a revolução digital, o aquecimento global, a crise financeira de 2008, a pandemia.
É esse vazio que o Papa Francisco se propôs a preencher, primeiramente com a Laudato si’ (2015), “sobre o cuidado da casa comum”, quer dizer, sobre o planeta, o meio físico e natural, a ecologia integral. Seu complemento natural é agora a Fratelli Tutti, sobre os problemas da sociedade e dos seres humanos. O próprio autor assinala essa ligação inseparável entre as duas encíclicas ao escrever num bilhete manuscrito enviado a um cardeal: “Compartilho contigo a encíclica Fratelli Tutti, cujo título é a mensagem de Jesus pela qual nos anima a nos reconhecermos todos como irmãos e irmãs e assim viver na casa comum que o Pai nos confiou”.
Chama a atenção no documento sua forma simples, despojada, linguagem direta, sem o ranço eclesiástico das encíclicas do passado. Quem sonharia que um papa tivesse um dia a audácia de citar numa encíclica oficial o nosso Vinicius de Moraes, com um verso do Samba da Bênção, “a vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”, citação retirada do disco Um encontro no Au Bon Gourmet? (parágrafo 215, nota 204, p. 89).
Da mesma forma que a Laudato si’, a nova encíclica é dirigida não apenas aos católicos ou cristãos, mas a todas as pessoas de boa vontade, independente da crença religiosa ou da ausência de crença. Seu espírito é aberto, ecumênico. Logo no início, Francisco confessa que, assim como havia se inspirado no Patriarca ortodoxo Bartolomeu para o documento anterior, neste caso se tinha sentido estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem se encontrara em Abu Dhabi em 2019. Afirma que a encíclica recolhe e desenvolve muitos dos temas da declaração conjunta firmada naquele encontro. No final, declara que foi motivado especialmente por São Francisco de Assis e outros irmãos que não são católicos: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi e muitos outros.
Ao evocar a visita de São Francisco ao Sultão Malik-al-Kamil do Egito, o Papa salienta que o Santo adotava a atitude que recomendava aos discípulos: “quando forem para o meio de sarracenos [...] não promovam disputas nem controvérsias, mas se submetam a toda humana criatura por Deus”. Comenta que São Francisco evitava toda forma de agressão e contenda, não fazia guerra dialética, não impunha doutrinas, mas comunicava o amor de Deus. Esses parágrafos introdutórios fornecem uma das principais chaves para a compreensão da encíclica. Em contraste com os documentos de outrora, empenhados em condenar erros e heresias ou em definir dogmas, o atual busca dar testemunho do amor de Cristo, sem polêmicas, sem condenações, sem o ânimo belicoso do passado ou afirmações dogmáticas.
Francisco rejeita a ênfase quase exclusiva de inúmeros documentos religiosos nas questões de moral individual, os temas que alimentam a guerra cultural dos fundamentalistas religiosos: questões sexuais, aborto, limitação de nascimentos, divórcio. Não que seja indiferente a isso, pois já tratou largamente do assunto em outros pronunciamentos, em especial na exortação Amoris Laetitia (2016). Em sua encíclica atual, o Papa reequilibra o debate, fazendo com que a atenção prioritária volte a se dirigir aos temas vitais de moral social, coletiva, que têm a ver com a injustiça, a marginalização, a exclusão e outros males da sociedade. Obra de teologia política e, ao mesmo tempo, reflexão profunda sobre as ideias políticas clássicas da liberdade, igualdade e, sobretudo, a mais difícil de todas em termos de conteúdo concreto: a fraternidade.
Tratando-se de panorama vastíssimo que abrange praticamente todos os desenvolvimentos que transformaram a vida social dos últimos 30 anos, seria empobrecer o documento apontar apenas três ou quatro pontos principais. Mas, se quisermos ir ao coração da mensagem que Francisco quis transmitir, podemos encontrar sua síntese no § 6º:
“As páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas deter-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos.” Descreve essa encíclica social como “humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, diante de formas diversas e atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e de amizade social que não fique só em palavras”.
IHU On-Line – Que relações o senhor percebe entre a Encíclica Fratelli Tutti, a Laudato Si', o recente discurso do Papa Francisco na ONU e seus pronunciamentos acerca da economia e da justiça social? Nesse sentido, como esta encíclica se insere no pontificado de Francisco?
Rubens Ricupero – A nova encíclica constitui uma espécie de Summa, uma síntese completa, abrangente, do pensamento de Francisco em matéria social. É a mais longa das encíclicas do Papa. Boa parte do texto se articula em torno de abundantes citações de manifestações anteriores do Papa, encíclicas, exortações, homilias nas missas em Santa Marta, discursos durante visitas a países, entrevistas à imprensa, até filmes como o de Wim Wenders, citado repetidas vezes. Incorpora também muita coisa de fontes diferentes: documentos de conferências episcopais nacionais, obras clássicas de doutores da Igreja, de São Tomás, teólogos contemporâneos (Karl Rahner), filósofos como o católico Gabriel Marcel e o protestante Paul Ricoeur, sociólogos como Simmel, frequentes referências a pronunciamentos de seus predecessores.
O documento é o resultado de uma extensa compilação de tudo o que Francisco havia ensinado antes, enriquecido de contribuições de fontes múltiplas, articulado de modo harmonioso num conjunto coerente qualitativamente superior a suas partes.
Atualíssima, a encíclica estava sendo escrita quando o mundo se viu surpreendido pelo advento da pandemia, que “não é um castigo de Deus”, mas a realidade que geme e se rebela pelo dano que causamos à natureza. Vem à mente, lembra o Papa, o verso de Virgílio sobre as lágrimas das coisas. A pandemia evidenciou nossa incapacidade de atuar conjuntamente, mostrou que, apesar de toda a hiperconectividade, estamos tão fragmentados que não conseguimos unir esforços. O mundo avançava rumo a uma economia que pretendia reduzir os “custos humanos”, tentando nos fazer crer que bastava a liberdade de mercado para que tudo ficasse assegurado. De repente, o golpe inesperado da pandemia sem controle forçou-nos a voltar a pensar nos seres humanos, despertando por um tempo a consciência de que somos uma comunidade mundial que navega na mesma barca, onde o mal de um prejudica a todos, onde ninguém pode salvar-se sozinho, que unicamente podemos nos salvar todos juntos.
IHU On-Line – Que saídas a Encíclica Fratelli Tutti aponta para este momento de mudança epocal que vivemos?
Rubens Ricupero – O primeiro capítulo da encíclica, “Sombras de um mundo fechado” (parágrafos 9 a 55 inclusive), oferece um retrato sombrio de algumas tendências desfavoráveis à fraternidade, de uma história que parece estar caminhando para trás. Sonhos de integração que se frustram, conflitos anacrônicos que se reacendem, “ressurgem nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos”, o descarte de seres humanos, a obsessão de cortar custos trabalhistas, a globalização sem rumo humano, a pandemia, a cruel exploração dos migrantes.
O Papa devota várias páginas à “ilusão da comunicação”, os movimentos digitais de ódio e destruição. Sem citar nomes, descreve um comportamento que se aplica a Trump, Bolsonaro e outros: “Aquilo que até poucos anos atrás não podia ser dito por ninguém sem o risco de perder o respeito de todo o mundo, pode hoje ser expresso com toda crueza até por algumas autoridades políticas e permanecer impune”. Retomando o que dissera em ocasião anterior, assinala que “estão em jogo no mundo digital imensos interesses econômicos capazes de realizar formas de controle tão sutis como invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático.
O segundo capítulo, “Um estranho no caminho” (parágrafos 56 a 86), é todo dedicado à Parábola do Bom Samaritano, eixo indispensável para compreender o desenvolvimento do tema da fraternidade. Indo além de mera descrição asséptica da realidade, antes de indicar algumas linhas de ação, o Papa devota parcela considerável da encíclica a uma homilia magistral sobre a parábola. Não como ensinamento de ideais abstratos, mas como uma “pergunta crua, direta, determinante: com quem te identificas (na parábola)?” Diante do sofrimento, há apenas uma saída: ser como o bom samaritano. “Qualquer outra opção termina ou do lado dos salteadores, ou do lado dos que passam ao largo, sem se compadecer da dor do homem ferido no caminho.”
Encontram-se contidos na parábola todos os temas preferidos de Francisco: a exclusão, a marginalidade das periferias da existência, a indiferença da globalização, a insensibilidade perante os migrantes, os refugiados, os vencidos da vida. A questão fundamental é: “Quem é o meu próximo?” Para muitos, no passado e no presente, o próximo é o que está mais perto, o mais semelhante a nós, o parente, o amigo, o da mesma nacionalidade. Jesus inverte os termos: em vez de nos convidar a dizer quem está mais perto de nós, nos interpela para que, nós mesmos, nos aproximemos dos outros. Devemos sair de nós para irmos perto daquele que sofre, que precisa de ajuda, não importa se pertence ou não ao nosso círculo. Aqui, o Papa exclama: “Às vezes me assombra que, com tal tipo de motivação, a Igreja tenha levado tanto tempo para condenar de modo contundente a escravidão e outras formas de violência”. Agora, não temos mais desculpas.
Este capítulo é o mais solidamente bíblico e evangélico do documento, todo ele estruturado por reflexões tiradas da moral de Jesus e da moral dos Evangelhos.
O terceiro capítulo (parágrafos 87 a 127), “Pensar e gerar um mundo aberto”, consiste numa meditação magnífica sobre o amor, a necessidade para o homem de sair de si mesmo, de se realizar na entrega, no encontro com os demais. O amor tende a uma comunhão universal, que deve integrar a todos, a amizade social é a condição de um amor aberto ao mundo inteiro. Uma pessoa que nasce em situação desvantajosa, em família extremamente pobre, necessita muito mais de um Estado ativo do que outros mais favorecidos. Uma sociedade que se rege apenas pelos critérios de mercado e de eficiência não tem lugar para os desavantajados. “Enquanto o nosso sistema econômico e social produzir uma só vítima e haja apenas uma pessoa descartada, não haverá uma festa de fraternidade universal.” Os dois elementos essenciais da construção de uma sociedade fraterna são: a benevolência, querer o bem do outro, promover os valores, não só os bens materiais, também os valores da moral, da bondade, da fé, da honestidade, e a solidariedade, termo que provém de sólido, de nos tornarmos responsáveis da fragilidade dos outros, de cuidar dos frágeis de nossa família, de nossa sociedade, de nosso povo. Para tanto, é preciso repropor a função social da propriedade a fim de que todo ser humano possa viver com um mínimo de dignidade.
Francisco vai buscar nas origens do cristianismo os ensinamentos de São João Crisóstomo, que afirmava: “não partilhar com os pobres os próprios bens é roubar aos pobres e tirar-lhes a vida. Os bens que temos não são nossos, mas deles”. Ou de São Gregório Magno: “Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis, não lhes damos nossas coisas, mas lhes devolvemos o que é deles”. O Papa reafirma com força o princípio do uso comum dos bens criados para todos, lembra que o cristianismo nunca reconheceu o direito de propriedade como absoluto ou intocável, e sim como um direito secundário derivado do destino universal dos bens criados, o que deve ter consequências no funcionamento da sociedade. O desenvolvimento não deve se orientar à acumulação de bens de uns poucos, o direito da liberdade de empresa não pode estar acima dos direitos dos povos, da dignidade dos pobres ou do meio ambiente.
O capítulo quarto (parágrafos 128 a 153), “Um coração aberto ao mundo inteiro”, é praticamente todo dedicado a um dos temas centrais do pontificado de Francisco: as migrações e o dever de acolher migrantes e refugiados. Começa por reconhecer que o ideal seria evitar que as pessoas tivessem de emigrar, por meio da criação de empregos e prosperidade nos países de origem. Ao mesmo tempo, é preciso respeitar o direito de procurar vida melhor em outro lugar. É preciso buscar nos países de destino um equilíbrio entre a tutela dos direitos dos cidadãos e a garantia do acolhimento e assistência aos imigrantes. Para quem foge de crises humanitárias, é indispensável que se adotem certas medidas práticas: facilitar a concessão de vistos, abrir corredores humanitários, assegurar alojamento, possibilidade de trabalho e formação, favorecer a união das famílias, tutelar os menores, promover a inserção social. A sociedade deve adotar o conceito de “cidadania plena” e renunciar ao uso discriminatório da palavra “minoria”. A solução definitiva necessita vir de uma governança global em matéria de migrações que promova a colaboração internacional em torno de projetos de longo prazo, em nome de um desenvolvimento solidário gratuito que permita pensar nos países como formando de fato uma só “família humana”.
O capítulo quinto (parágrafos 154 a 197), “A melhor política”, talvez surpreenda pela ideia elevada que o pontífice faz da verdadeira política, de certo modo retomando a atitude dos filósofos gregos. Perpassa pelo capítulo um sopro de utopia criadora. Começa por colocar no centro da política orientada ao bem comum a ideia de povo. Distingue claramente o populismo que instrumentaliza o povo para fins egoístas de perpetuação no poder do tipo autêntico de liderança capaz de captar os anseios populares genuínos e canalizá-los como força construtiva de desenvolvimento nacional. A melhor política é também a que fomenta o trabalho, que possibilita a cada ser humano a realização de seu potencial e de sua dignidade.
No momento em que o debate público no Brasil é dominado pelo tema da assistência emergencial e da renda cidadã, vale meditar na sabedoria e verdade das palavras do Papa: o trabalho é a melhor ajuda para o pobre, o melhor caminho para uma vida digna. Por isso, insiste em que “ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre uma solução provisória para resolver urgências. O grande objetivo deveria ser sempre garantir-lhes uma existência digna através do trabalho”. Nessa altura, Francisco analisa em várias páginas os “valores e limitações das visões liberais”, concluindo que “o mercado sozinho não é capaz de resolver tudo, embora nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se de um pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas”. Condena a especulação financeira, declara que: “a fragilidade dos sistemas diante da pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado”. É necessário fazer retornar a dignidade humana ao centro das coisas e “sobre esse pilar se deve construir as estruturas sociais alternativas de que precisamos”.
A partir do parágrafo 170, a encíclica se ocupa do poder internacional, lamentando a ocasião desperdiçada da crise financeira de 2007/2008 para “repensar os critérios obsoletos que continuam a reger o mundo”. Considera indispensável o amadurecimento de instituições internacionais mais fortes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria, e a defesa dos direitos humanos elementares. Propugna por uma reforma da ONU e da arquitetura econômica e financeira internacional no sentido de dar conteúdo concreto ao conceito de família de nações. Para tanto, não se pode permitir que essa autoridade seja cooptada por alguns poucos, que haja imposições culturais ou menoscabo das liberdades básicas de nações mais fracas devido a diferenças ideológicas.
Nesses pontos, Francisco toma partido claro em favor do fortalecimento de uma ordem internacional baseada em normas jurídicas, no Direito Internacional, nos direitos humanos, num momento crítico em que se assiste à erosão gradual desses valores, devido às violações frequentes e impunes perpetradas pelas grandes potências. Embora não mencione explicitamente os responsáveis, não é difícil identificar a quem se refere quando diz que temos de evitar “a tentação de apelar ao direito da força mais do que à força do direito”, citação do Papa São João Paulo II. No mundo atual, dos quatro centros de poder internacional, três – os Estados Unidos de Trump, a China do presidente Xi, a Rússia de Putin – são governados por pessoas de vocação autocrática, que se orientam nas relações internacionais sobretudo pelo estreito interesse egoísta nacional, acima de qualquer consideração do direito ou dos interesses dos menos poderosos. Somente a União Europeia adere ainda ao ideal do multilateralismo. Nesse contexto, é mais que bem-vindo o apelo do Papa ao recurso incansável às negociações, aos bons ofícios, ao arbitramento, aos métodos pacíficos da Carta das Nações Unidas, denominada de “verdadeira norma jurídica fundamental”, isto é, de uma espécie de Constituição mundial.
Encerra o capítulo uma inspirada meditação sobre o “amor político”, a política como uma das formas mais preciosas da caridade, atitude necessária para a edificação de uma “civilização do amor”. Encontra-se aqui uma das mais belas e tocantes passagens da encíclica, quando se fala da necessidade de que também haja na política espaço para amar com ternura. “Que é a ternura? É o amor que se faz próximo e concreto. É um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos [...] o caminho que percorreram os homens e mulheres mais valentes e fortes [...] os menores, os mais débeis, os mais pobres, devem nos enternecer” em meio à atividade política.
O capítulo sexto (parágrafos 198 a 224), “Diálogo e Amizade Social”, examina os caminhos, os meios, as maneiras de construir uma nova cultura: o diálogo, o encontro, a busca do consenso fundamentado na verdade, da paz social, que exige um trabalho artesanal, o reconhecimento do outro no seu direito de ser ele mesmo, de ser diferente. Francisco valoriza neste capítulo os aportes de culturas diversas, das culturas dos povos originários, das culturas populares indígenas. Fecha essa parte uma exortação ao retorno à amabilidade, à gentileza. Sobressai um belo elogio às pessoas que cultivam a gentileza: elas se convertem em estrelas em meio à escuridão. Afirma o Papa que “a gentileza é uma libertação da crueldade que penetra às vezes nas relações humanas”. O cultivo da amabilidade não é um detalhe menor, uma atitude superficial, mas facilita a busca de consensos.
O capítulo sétimo (parágrafos 225 a 270), “Caminhos de reencontro”, trata dos caminhos para cicatrizar as feridas e gerar processos de reencontro. Perdão, ensina o Papa, não significa impunidade, mas sim justiça e memória, perdoar não é esquecer, é renunciar à força destrutiva do mal e ao desejo de vingança. Não se deve jamais esquecer a Shoah, os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, as perseguições, o tráfico de escravos, os massacres étnicos. Não se avança sem memória. Francisco toma posição igualmente em duas situações extremas que podem se apresentar como soluções em circunstâncias dramáticas, sem que se perceba que são falsas soluções que não resolvem os problemas e agregam novos fatores de destruição: a guerra e a pena de morte. Rejeita os critérios desenvolvidos em séculos passados para permitir a guerra justa. Exclama: “Guerra nunca mais!” Reafirma com veemência também a condenação da pena de morte como “inadmissível”.
O capítulo oitavo (parágrafos 271 a 287), “As religiões ao serviço da fraternidade no mundo”, dá ênfase à contribuição que as religiões podem trazer à fraternidade humana. Reivindica e reafirma a identidade cristã, exige liberdade religiosa para todos e para os cristãos nas regiões em que se encontram em minoria. Valoriza a ação de Deus nas demais religiões, não rechaça nada do que pode existir nelas de santo e verdadeiro. Condena os fanatismos, todos os tipos de fundamentalismos, não admite violências, discriminações em nome da fé. Reafirma o documento de Abu Dhabi, no qual Francisco e o Grande Imã declaravam que: “as religiões não incitam nunca à guerra, não instigam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo, nem apelam à violência e ao derramamento de sangue. Essas desgraças são fruto do desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões [...] Deus, o Onipotente, não precisa ser defendido por ninguém e não deseja que seu nome seja utilizado para aterrorizar as pessoas”.
A encíclica se fecha com a evocação do Bem-aventurado Charles de Foucauld, que, no coração mais profundo do deserto do Saara, desejando ser o irmão de todos, o “irmão universal”, como dizia, só conseguiu ser o irmão de todos quando se tornou o irmão dos últimos, dos abandonados no deserto. Seguem-se duas orações finais: uma oração ao Criador e uma oração cristã ecumênica.
Depois deste longo resumo comentado, que ainda assim capta ínfima parcela da riqueza de sabedoria da encíclica, cabe apenas uma palavra. Num mundo órfão de lideranças à altura dos desafios, onde os chefes dos mais poderosos países da terra encarnam o que há de pior na natureza humana, Francisco confirma em definitivo que representa hoje a consciência moral e intelectual da humanidade, a última esperança de que se continue a defender a dignidade da pessoa e a fraternidade de todos os seres humanos.