“A Agência Nacional de Mineração terá capacidade de resistir ao lobby do setor mineral?” Entrevista especial com Bruno Milanez

Vista área do desastre de Brumadinho | Foto: Ibama

Por: Patricia Fachin | 07 Junho 2019

O rompimento das barragens de rejeitos em Brumadinho e em Mariana e o risco de rompimento imediato da barragem de Gongo Soco, todas localizadas no estado de Minas Gerais, suscitam ao menos dois questionamentos: qual é o nível de segurança dessas barragens e como são realizadas as auditorias que atestam a segurança? Ao responder a essas questões, o engenheiro Bruno Milanez é categórico: “Não existem barragens 100% seguras. Todas as barragens correm risco de cair. Barragens caem em países ricos e pobres” e “o automonitoramento continua sendo ineficiente”.

Apesar de as barragens não serem totalmente seguras, adverte, não devemos naturalizar os riscos envolvidos neste tipo de atividade. “Alguém pode dizer que infelizmente a mineração irá causar danos, mas nós temos que fazer a leitura exatamente oposta: se é impossível minerar sem causar dano ao meio ambiente, tem que minerar o mínimo possível, minerar o necessário e não naturalizar o dano”, afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, o engenheiro defende que o processo de monitoramento das barragens seja fiscalizado pela Agência Nacional de Mineração – ANM e que as empresas de auditoria contratadas pelas mineradoras não prestem consultoria para as contratantes. “Desde 2015, não só eu, mas várias pessoas estão questionando o automonitoramento, porque ele confunde os interesses das auditoras e das mineradoras”. Segundo ele, técnicos da ANM e do Ministério de Minas e Energia “olham com bons olhos” a possibilidade de mudar a atual forma de monitoramento. “Existem pessoas na ANM que, felizmente, perceberam que no contexto cultural e legal do Brasil o sistema de monitoramento que foi importado de outros países não funciona. Podem alegar que funciona no Canadá, na Austrália e nos Estados Unidos, mas no Brasil não funciona. Herculano, Brumadinho, Fundão, Córrego do Feijão e agora Gongo Soco mostram isso. Então, existem técnicos dentro do Ministério de Minas e Energia e da ANM que querem romper com isso. A pergunta é: eles terão força suficiente para fazer essa mudança?”

Bruno Milanez (Foto: Poemas)

Bruno Milanez é graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos e doutor em Política Ambiental pela Lincoln University. Leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.


Confira a entrevista.

IHU On-Line – Recentemente, ao participar da Comissão de Meio Ambiente do Senado sobre segurança de barragens, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afirmou que não existe barragem segura no Brasil. Como interpreta essa declaração? Ela atesta o que os pesquisadores já sabiam?

Bruno Milanez – Assisti à audiência do ministro na Comissão de Meio Ambiente do Senado e, por mais que discorde de parte do que ele diz, percebi que é uma pessoa competente para o cargo. Fiquei surpreso com a fala dele na Comissão, porque ele foi convidado para ir ao Senado na véspera da audiência, e mesmo assim foi e levou com ele parte da diretoria da Agência Nacional de Mineração - ANM, da diretoria do Ministério de Minas e Energia - MME e mais técnicos de Brumadinho para lá para estarem ao lado dele. Isso mostra uma humildade quando não se tem todas as respostas. Então, vendo como ele se manifestou, isso me passou uma imagem positiva. Ele parece ser um ministro que se pauta pela visão técnica.

Durante a sessão, na discussão sobre barragens a montante e a jusante, um senador perguntou ao ministro se a maior parte das barragens a montante é insegura e se existe barragem segura, dizendo ainda que barragem segura é aquela que não precisa de monitoramento e fiscalização. Em resposta a essa colocação do senador, o ministro disse que não existe barragem segura, não existe barragem que não tenha que cumprir protocolo, que não tenha que ser fiscalizada. Ou seja, a resposta dele foi no sentido de dizer que não se pode deixar as barragens sem controle, elas precisam ser vistoriadas pelo Estado e não se pode simplesmente demandar a fiscalização às empresas.

IHU On-Line – A resposta do ministro sinaliza alguma mudança na postura do Estado ou de algum dos Ministérios na condução da fiscalização das barragens?

Bruno Milanez – Considerando a fala do ministro e a minha participação na audiência pública de terça-feira [28-05-2019], na qual participou um diretor da ANM, avalio que mais do que o Ministério de Minas e Energia, a própria ANM está muito preocupada com a fiscalização das barragens. Entendendo que a função da ANM é garantir o funcionamento, o crescimento e promover a mineração no país, rompimentos de barragens como o que aconteceu em Brumadinho somente jogam contra e tornam cada vez mais difícil o licenciamento de operação de mineração e os investimentos, seja de investidores nacionais ou internacionais, em projetos de mineração. A Agência em si, dentro da missão que se coloca, percebe essa falta de controle em relação às barragens como sendo negativa. Vejo essa preocupação mais claramente na Agência do que no Ministério, porque tenho visto as normas que a Agência publicou e não vi as ações concretas do Ministério.

IHU On-Line – Nos últimos anos há uma intenção de flexibilizar o Código Nacional da Mineração. A partir da declaração do ministro sobre a insegurança das barragens e do caso de Brumadinho, vê a possibilidade de se fazerem alterações mais rígidas no Código ou dificultar o licenciamento de barragens?

Mapa dos recursos minerais do quadrilátero ferrífero
Fonte: João Suassuna

Bruno Milanez – Vou responder a sua pergunta em duas partes: uma sobre barragens e outra sobre o Código da Mineração. Sobre as barragens, acredito que existe a possibilidade da ANM tornar o controle da segurança das barragens mais restrito. A questão básica é se, para fazer isso, a agência vai ter que obrigar as mineradoras a mudarem as suas práticas. Muitas mineradoras não vão querer isso. A pergunta é: será que a ANM terá capacidade de resistir ao lobby do setor? Por que estou dizendo isso? Porque a Resolução 04/2019 da ANM colocou prazos para descomissionarem (ou descaracterizarem) barragens a montante. Parece que essa resolução foi posta em consulta pública, recebeu centenas de sugestões e, pelo que ouvi de uma pessoa da ANM, a maior parte dessas contribuições pedia para postergar o prazo para descomissionamento e descaracterização. Então, considerando que no Brasil uma série de leis não são cumpridas, até que ponto a ANM terá força política para implementar a resolução que ela propôs? Não tem como prever; a disputa está na mesa.

A título de comparação, estou lendo uma matéria que saiu há alguns dias, intitulada “Desativação de 39 barragens em Minas Gerais ainda não começou”, seguida do lead: “Há 39 barragens localizadas em Minas Gerais, do tipo a montante, mesmo método utilizado na barragem que se rompeu em Brumadinho (MG), que ainda não têm planos de descaracterização das estruturas. E faltam apenas cinco dias para o fim do prazo dado pelo governo do Estado para que seja apresentado documento com a proposta de descomissionamento”. Então, o governo de Minas Gerais também criou um instrumento legal que obrigava as mineradoras descomissionadas a descaracterizarem as minas das barragens a montante e deu um prazo para que isso fosse feito, mas algumas dezenas de mineradoras não cumpriram esse prazo. De novo: até que ponto o governo de Minas Gerais terá força para fazer cumprir essa norma e até que ponto a ANM vai ter força para fazer cumprir essa norma? Isso está em aberto. Nós vivemos agora a possibilidade real de tornar o controle mais efetivo. Vai acontecer? Depende da correlação de forças.

IHU On-Line – A ANM tem força para isso?

Bruno Milanez – Não sei. A ANM é uma instituição muito jovem e começou muito precarizada. Quando foi criada a Agência, previa-se uma série de concursos e ampliação dos quadros, mas isso não foi aprovado. Além disso, em março, Bolsonaro fez um contingenciamento de 22% dos recursos da ANM. Na audiência da Comissão do Senado, o ministro de Minas e Energia disse que apesar do contingenciamento houve remanejamento interno dentro do Ministério para que não faltasse dinheiro à Agência, mas “ela ainda está se acertando”. Tem ainda uma mensagem, que para mim é completamente truncada, a qual não sei ler: poucos dias depois da publicação da Resolução 04/2019 da ANM, o Ministério publicou a Portaria 40/2019 que estabelece que a agência deverá encaminhar ao Ministério todos os atos normativos para serem avaliadas sua adequação e pertinência. Não sei se isso é de praxe ou se é uma tentativa de evitar decisões muito rigorosas. Me soa estranho a temporalidade dessas duas decisões. Então, não tenho condições de avaliar qual é a capacidade real de “mordedura” da ANM. O quadro está muito incerto e vai depender muito da correlação de forças não apenas das empresas, mas também, por exemplo, do governo de Minas Gerais, que está vendo uma série de minas sem operar e o caixa sendo esvaziado.

IHU On-Line – O governo seria mais favorável a uma fiscalização mais branda?

Bruno Milanez – Do ponto de vista das ações concretas, o governo estadual dá indícios — ainda é muito cedo para afirmar categoricamente — de que é mais permeável à pressão econômica. Mas ele é refém da mineração. Então, no que diz respeito ao caixa, para o estado, quanto antes as mineradoras voltarem a operar, particularmente a Vale, melhor. Junte-se a isso a pressão e o lobby que o estado sofre: ele seria mais vulnerável do que a ANM a ser compelido a tomar decisões favoráveis a uma rápida retomada das atividades de mineração. A ANM, pela própria estrutura que tem, pelo posicionamento que tem e por não depender tanto de recursos da mineração, pareceria estar, a princípio, mais blindada ou menos suscetível a essa questão.

IHU On-Line – Voltando à segunda parte da questão anterior, é possível que haja uma flexibilização do Código Nacional da Mineração?

Bruno Milanez – Ouvi, tanto na audiência pública na Câmara quanto no Senado, que estão voltando a falar da necessidade de rever o Código. Mas as preocupações em relação ao Código Mineral, neste momento, são mais vinculadas ao decreto de 2018 do Temer. São aspectos mais operacionais pertinentes ao dia a dia e não há nada muito explícito sobre a questão ambiental. O mais preocupante é a lei do licenciamento ambiental, que também está tramitando, pois ali tem mais espaço para coisas como, por exemplo, prazo para emitir licenças. Se o processo de aceleração do licenciamento for aprovado, incluindo o sistema de barragens, haverá muito mais riscos e muito mais oportunidades para deixarmos as barragens menos seguras.

IHU On-Line – Que avaliação faz da Comissão de Meio Ambiente do Senado sobre segurança de barragens? De que pontos discorda em relação ao que o ministro disse na comissão?

Bruno Milanez – Fiquei bem atento à fala do ministro. Ele abriu a seção informando o que o governo está tentando fazer, mas ficou muito aquém. Ele mencionou ações bem pontuais, mas sem visão: que o governo montou um comitê de crise, que está fazendo o monitoramento da água etc. De todo modo, a discussão que estamos vendo não apenas no Ministério, mas também no Senado e na Câmara sobre o problema das barragens e das barragens a montante é muito relevante.

Vou recapitular um pouco o ponto de partida dessa discussão: como foi dito na comissão do Senado, não existem barragens seguras. Todas as barragens correm risco de cair. Barragens caem em países ricos e pobres. Peguei um levantamento de um banco de dados compilado por uma ONG internacional sobre as barragens, o qual informa que nos últimos cem anos, de 1915 até 2019, houve 358 falhas de barragens, equivalente a 3,6 por ano no mundo. Se essas falhas forem do tamanho das que aconteceram no Brasil nos últimos anos, é muito. De todo modo, qualquer falha de barragem, pelo tamanho delas, é desastrosa. No mundo ideal esse índice teria que ser zero.

Já ouvi várias pessoas falando que não existem barragens 100% seguras, mas temos que cuidar para que uma fala dessas não naturalize o risco. É como falar que é impossível minerar sem causar dano ao meio ambiente. Então, alguém pode dizer que infelizmente a mineração irá causar danos, mas nós temos que fazer a leitura exatamente oposta: se é impossível minerar sem causar dano ao meio ambiente, tem que minerar o mínimo possível, minerar o necessário e não naturalizar o dano. Se todas as barragens têm risco, a técnica de barragens não deveria ser uma tecnologia aceita; deveríamos trabalhar e caminhar para um mundo sem barragens, porque o dano que elas podem causar é desproporcional. Não é, no mundo que eu gostaria de viver, justo expor as pessoas a esse tipo de risco, principalmente se temos tecnologias que permitem fazer a mesma atividade sem gerar esse risco.

Voltando para os dados, desses 358 rompimentos em cem anos, só foi possível mapear o tipo de tecnologia de 139 barragens. Dessas, 71% eram tecnologia a montante, 11% na linha de centro e 19% a jusante. A partir desses dados, é possível dizer que a barragem a montante rompe mais? Não, porque não sei dizer quantas a montante existem, se existem mais a montante do que de centro.

Voltando à tua pergunta: se o avanço legal for proibir barragens a montante no Brasil, será um grande ganho, não tenho a menor dúvida. Mas será suficiente? Não, porque barragens linha de centro e a jusante também caem. Portanto, continuamos tendo populações sob um risco desproporcional.

Temos ainda outro problema: o que acontece quando se fecha uma barragem? Existe uma série de barragens abandonadas pelo país, a respeito das quais pelo menos a ANM não se manifestou até agora. Vou mencionar um caso que conheço, mas não é difícil imaginar que outros existam: a Vale Manganês S.A operava na cidade de Nazareno, em Minas Gerais, onde tinha cerca de quatro barragens na região. Duas dessas barragens foram, recorrentemente — apesar de todas as falhas que existem no automonitoramento feito no Brasil, de todos os conflitos de interesse, de chegar em qualquer empresa e escolher a auditora que vai avaliar a barragem e ter a pressão do contratante sobre o contratado —, consideradas não estáveis pelo auditor em 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016 — estou me baseando no inventário de barragens de Minas Gerais feito pela Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEAM.

Em 2017, essa barragem sumiu do inventário e eu perguntei: como assim? Não tinha condições para fazer uma pesquisa sobre a situação e uma repórter do Estadão se interessou pelo caso. Ela ligou para a FEAM, perguntando sobre a barragem de Nazareno, e foi informada de que a barragem havia sido desativada e por isso havia saído do inventário. Isso é um problema. Com essa informação, a repórter ligou para a Secretaria do Meio Ambiente do município, que disse que a barragem estava lá, desativada, mas que desde a desativação nunca apareceu ninguém para fazer o monitoramento. A Secretária de Meio Ambiente estava tentando entrar em contato com a Vale Manganês para ver se essa barragem estava segura ou não — isso aconteceu depois de Brumadinho —, porque não é pelo fato de a barragem estar desativada que tem que deixar de monitorá-la. 

Mas existe um debate sobre isso: a resolução da ANM define tanto a descaracterização da barragem — que é a retirada de todo o material depositado na barragem incluindo diques e maciços — quanto o descomissionamento, em que se desativa a barragem, é feito o fechamento definitivo, mas o material permanece no local. Então, se a opção for pelo descomissionamento — considerando a fala do ministro de que as barragens têm que ser permanentemente fiscalizadas e não podem deixar de ser fiscalizadas —, teríamos que prever que as mineradoras voltassem a essas barragens descomissionadas e ficassem monitorando as barragens anos e anos após o fechamento. A título de ilustração, quando estive no Canadá, visitei uma barragem de cobre em que a mineradora afirmava que iria monitorar a barragem por cem anos depois do fechamento. Obviamente que as pessoas se perguntavam se a mineradora continuaria operando na região. Quem garante que ela não poderia decretar a falência em 15 anos?

É esta uma das soluções que está sendo aceita para as barragens no momento, conforme a ANM define:  

VII - barragem de mineração em processo de fechamento ou descomissionamento: estrutura criada com a finalidade de contenção de sedimentos ou rejeitos, que não mais os recebe, mas ainda mantém características de barragem de mineração, considerando a paralisação das atividades operacionais da barragem que entra em processo de fechamento definitivo, sem a emissão de efluentes para a barragem e o material já depositado permanece no reservatório.

Ou seja, depois de fechada, a barragem continua sendo uma barragem. Se considerarmos a fala do ministro, de que barragens não podem ficar sem fiscalização, essas barragens descomissionadas poderiam ficar sob fiscalização do governo federal e sob o monitoramento das mineradoras; isso é imperativo.

IHU On-Line – Na outra entrevista que nos concedeu, o senhor mencionou a ineficiência das auditorias feitas em barragens que romperam meses depois da realização das auditorias. Que critérios deveriam fazer parte de um sistema de monitoramento?

Bruno Milanez – Repito: o automonitoramento continua sendo ineficiente e isso parece ser um ponto pacífico. Desde 2015, não só eu, mas várias pessoas estão questionando o automonitoramento, porque ele confunde os interesses das auditoras e das mineradoras. Essa questão não foi tratada ainda na resolução da ANM, assim como não foi tratada no projeto de Minas Gerais. Com isso, coloco novamente a questão: qual será a força que a ANM terá? Uma matéria da revista Exame, de 20 de março, intitulada “Os sete pecados da Vale”, diz o seguinte: “Em outra frente, Alexandre Vidigal de Oliveira, secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia, quer desvincular a relação entre auditorias e mineradoras. Para isso propõe que a ANM abra edital para licitar interessados em prestar serviços de fiscalização. As companhias aprovadas entrariam para um sistema que escolheria de forma aleatória as mineradoras a serem visitadas”.

Isso mostra que existem pessoas que olham com bons olhos essa transferência da responsabilidade do monitoramento. Existem pessoas na ANM que perceberam que no contexto cultural e legal do Brasil o sistema de monitoramento que foi importado de outros países não funciona. Podem alegar que funciona no Canadá, na Austrália e nos Estados Unidos, mas no Brasil não funciona. Herculano, Fundão, Córrego do Feijão e agora Gongo Soco mostram isso. Então, existem técnicos dentro do Ministério de Minas e Energia e da ANM que querem romper com isso. A pergunta é: eles terão força suficiente para fazer essa mudança?

Minas na região do Quadrilátero Ferrífero. (Imagem: DNPM)

IHU On-Line – Tecnicamente, qual a solução mais adequada para a fiscalização das barragens?

Bruno Milanez – Idealmente, que tivéssemos um órgão que atuasse como se fosse um fiscal da Receita, que fiscalizasse as empresas, com acesso direto a todas as suas informações, mas duvido que isso seja implementado, até por conta do momento que vivemos. Eu ficaria satisfeito, momentaneamente, se a auditoria fosse promovida nestes moldes: as empresas seriam remuneradas pelas mineradoras, mas escolhidas pela ANM. Se adotássemos esse modelo para as barragens e para o licenciamento ambiental, não seria o mundo ideal, mas muita coisa já seria melhorada. Entendo que em política pública, às vezes, temos que dar pequenos passos mesmo, porque se ficarmos esperando o mundo ideal, não conseguiremos nada. Desde que se caminhe na direção correta, estou aceitando.

No entanto, nesse modelo é preciso ter o cuidado para que a empresa auditora não tenha contratos de consultoria com a mineradora. Então, se a ANM propuser um sistema de auditoria por sorteio, as empresas que forem auditoras terão que atuar somente como auditoras, não poderão ser consultoras, caso contrário não resolve nada. Se essa reforma ocorrer de fato, é preciso ver se a ANM e o MME terão força política para fazer essa mudança. Não sei se há consenso no Ministério e na Agência sobre isso, mas percebo que existem pessoas simpáticas a essa proposta.

IHU On-Line – A imprensa tem noticiado que a mina de Gongo Soco, em Barão de Cocais, em Minas Gerais, está em alerta máximo, com risco de rompimento a qualquer momento. Que informações o senhor tem sobre essa mina?

Bruno Milanez – Esse é mais um exemplo de que o automonitoramento não funciona. Além de Gongo Soco, outras barragens estão em risco, como Forquilha I e III, que ficam em Ouro Preto, e B3/B4, que fica em Nova Lima, além da barragem Sul Superior que fica na mina de Gongo Soco, no município de Barão dos Cocais. A informação que se tem é que a barragem pode romper a qualquer momento, mas não temos clareza do que se passa, porque existe um problema sério em relação à falta de informação sobre o que as mineradoras e o Estado estão fazendo em relação a isso. Acompanho essas notícias pela mídia e por isso não tenho nenhuma informação mais precisa, mas a barragem mais preocupante é a de Barão de Cocais, por conta da questão do talude e dessa solução surreal da Vale de construir um muro em razão da possibilidade do rompimento. O rompimento já deveria ter acontecido, mas agora resolveram construir um muro que levará meses para ser feito. 

Tenho escutado, em relação às outras barragens, a sugestão de se construir um muro, de começar a descaracterização, esvaziar a barragem e depois destruir o muro. Porém, não se conhecem os projetos, não se tem o cronograma preciso. Também é importante frisar que, no caso da descaracterização, a lei pressupõe retirar o rejeito e essa é uma atividade de alto risco: é preciso retirar o rejeito de dentro de uma barragem que está instável e colocá-lo em outro lugar. Claro que a retirada de rejeitos teria que passar por todos os trâmites do licenciamento ambiental, mas para onde vai esse rejeito? Vai para outra barragem? Vai para uma mina desativada? Ele vai virar tijolo? Tudo isso tem impacto ambiental e é passível de licenciamento ambiental.

 Mapa do rompimento da Barragem de Brumadinho (Fonte do mapa: BBC Brasil)

IHU On-Line – Há um tratamento indicado para os rejeitos?

Bruno Milanez – Sim. Não sou a melhor pessoa para falar disso, pois há pessoas que são especialistas nessa questão. A princípio existe tratamento adequado dos rejeitos. Mas há um problema básico. O volume. Há pesquisas sérias para desenvolver diferentes produtos a partir de rejeitos da mineração de ferro: ladrilho, lajota, tijolos. Elas mostram que é possível fazer coisas maravilhosas com o rejeito, mas existe um problema: ninguém implementa esses produtos. Ninguém implementa porque já existe um setor de tijolo, lajota e ladrilho com linhas de produção prontas. 

Se produzíssemos tijolo, ladrilho e lajota com a quantidade de rejeito que temos, como escoaríamos essa produção? Essa é uma proposta interessante do ponto de vista tecnológico, mas falta uma leitura econômica. Talvez poderia ser interessante se fosse viável no Brasil fazermos algo gradual para o rejeito que está sendo gerado atualmente, mas com o estoque que temos de rejeitos, não tem fábrica de tijolo que dê conta da produção. Essa solução pode ser interessante para desviar parte do rejeito gerado, mas não dá conta de resolver 100% o problema. Tudo isso que estou falando diz respeito apenas ao minério de ferro. Se falarmos de ouro, que tem uma série de químicos, a história é outra. Tudo isso quer dizer que a produção de rejeitos é uma tecnologia sem destino adequado. Volto a dizer: temos que caminhar para soluções que não gerem rejeitos, para a produção a seco, ou depois da produção a úmido — me refiro à produção de minério de ferro —, é preciso fazer um processo de deslamagem e empilhar o rejeito prensado. Não dá para fazer uma barragem, depois esvaziar a barragem e transformar o rejeito em tijolo; isso não parece real.

Quando se fala em alternativas às barragens de rejeitos, é comum ouvir as pessoas argumentarem que algumas alternativas tornarão o minério de ferro muito caro, porque o processo vai encarecer a produção e o produto não vai ser competitivo. Acredito que não se trata de encarecer o processo, mas de dar ao processo o seu custo real, porque quando se cria uma barragem de rejeitos, a redução de custo é transformada em risco, o qual é externalizado para a sociedade em forma de adoecimento, perda de casas, de vidas e de meio ambiente.

IHU On-Line – Como a população de Minas Gerais tem reagido à situação das barragens na região? Tem pressão sobre o governo ou sobre a Vale?

Bruno Milanez – A situação é mista. Há uma mudança de perspectiva significativa sobre o risco da mineração a partir da experiência das localidades onde as barragens estão em nível três, onde já se ouviu falar sobre a evacuação de uma série de pessoas. Pintaram as calçadas de laranja, sinalizando rotas de fuga, mas as pessoas estão internalizando que vivem em situação de risco. Antes o risco era naturalizado, agora está se tornando real. Isso tudo tem gerado uma pressão, mas ela é bem localizada nas regiões que já vivem esses problemas ou em situações muito gritantes, como Congonhas e Itabira, onde a barragem está lá para quem quiser vê-la, quase dentro da cidade. Por outro lado, numa série de localidades onde as barragens não tiveram seus atestados de estabilidade concedidos, as atividades das minas foram interrompidas e a população está vivendo uma situação de crise econômica e, com isso, há pressão para reabrirem as minas. 

Dependendo da forma como as pessoas estão sendo impactadas, a combinação de sentimentos é mista. Mas, de todo modo, a ideia de que a mineração é uma atividade exclusivamente benéfica está sendo enfraquecida. As pessoas estão percebendo que existem lados contrários, inclusive em relação à dependência econômica que esse tipo de atividade gera. Agora o desafio, tanto para os movimentos sociais quanto para a academia, é como transformar isso num movimento que leve Minas Gerais a diminuir essa dependência econômica.

Depois de tudo o que aconteceu em Mariana, depois de todo o movimento “justiça, sim”, “desemprego, não”, “volta Samarco”, se a Samarco voltar a operar como se nada tivesse acontecido, perderemos muito. Se isso acontecer, o orçamento da prefeitura vai subir, a prefeitura vai voltar a contratar e grande parte do orçamento municipal vai voltar a depender 50, 60% ou exclusivamente da mineração, e a cidade terá perdido uma grande oportunidade de aprender alguma coisa. É importante levar em consideração que, para além do rompimento de barragem, o preço do minério sobe e desce. Em 2015, quando o preço do minério despencou, várias cidades entraram em crise econômica porque não tinham dinheiro.

Ainda há um sentimento muito tênue, mas está se iniciando uma perspectiva de mudança sobre o papel da mineração no desenvolvimento mais amplo, tanto econômico quanto social e ambiental de Minas Gerais. Agora, se vamos conseguir aprender alguma coisa a partir disso, ainda está em aberto.

 

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