Por: Patricia Fachin | 23 Outubro 2017
Para pensar e propor alternativas à esquerda, é preciso fazer um balanço de, um lado, da experiência soviética, especialmente neste ano em que se comemora o centenário da Revolução Russa e, de outro, das estratégias adotadas pela esquerda brasileira durante os governos petistas, diz o professor Fábio Luís Barbosa à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Isso significa, resume, “que é preciso de uma esquerda que vá além das práticas convencionais da esquerda do século XX e começo do século XXI”.
Segundo Barbosa, três aspectos fundamentais devem ser revistos pela esquerda: o desenvolvimento das forças produtivas, a relação do Estado com o povo e o padrão de consumo. “Será que a modernização dos padrões de consumo é uma referência necessária? Tendo a entender que o desenvolvimento das forças produtivas é fundamental, mas não é o imperativo absoluto. Abundância social, política e cultural é mais importante do que o desenvolvimento econômico, caso contrário, podemos ter até uma modernização socialista, mas é uma modernização, não é uma revolução. A outra questão que evidenciei é o dilema do Estado, ou seja, como ter um Estado forte que não me coma? Esse é um dilema difícil e que acredito que só tem um caminho: uma aposta radical em uma democracia dos processos de mudanças, como as socialistas. E a terceira questão que expus é sobre a modernização dos padrões de consumo: será que essa é uma referência para o século XXI?. (...) Ou, para colocar de forma bem simples, será que o nosso horizonte da Revolução é “espalhar Miami”? Isto é, é fazer com que todos os brasileiros e latino-americanos tenham o padrão de consumo de Miami?”, questiona. E sugere: “Esses são três pontos fundamentais que devem ser considerados para pensarmos uma esquerda que vá além das experiências ou dos paradigmas da esquerda do século XX”.
Ao analisar a trajetória da esquerda no Brasil, especialmente nos governos petistas, Barbosa enfatiza que “para mudar o Brasil, precisamos de outro projeto, de outros instrumentos e de outra teoria”. Essa teoria, diz, é a da “revolução brasileira, porque sem guerra civil não se muda o país; o país não muda sem conflito”. E adverte: “A ideia da conciliação de opostos, que foi a ideia do petismo, encarnada na figura do Lula, mostrou no que dá. Na teoria, por exemplo, Florestan Fernandes constatou isso há muito tempo; na prática as experiências históricas latino-americanas e a onda progressista constatam isso de novo: não tem espaço para reforma dentro da ordem. Portanto, se queremos mudar, não vai dar para mudar pelas beiradas, teremos que comprar essa briga, porque as classes dominantes brasileiras não toleram qualquer mudança. (...) A classe dominante — como fiz o Florestan — não tem nada a ceder e só cede a medo, portanto, terá que ser na ‘marra’, não será na conversa e na negociação. Na ‘marra’ significa que tem se preparar para uma guerra civil. Isso não está colocado no horizonte imediato, na pauta da eleição de 2018. Mas uma esquerda que vá além da esquerda e do PT, nesse contexto, no meu entender, tem como tarefa primordial recolocar a revolução na pauta política”.
Fabio dos Santos | Foto: Ricardo Machado - IHU
Fabio Luis Barbosa dos Santos é professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp e pesquisador colaborador do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo - USP. Tem doutorado em História Econômica pela USP. É autor dos livros Além do PT. A crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana (Editora Elefante, 2016) e Origens do pensamento e da política radical na América Latina (Unicamp, 2016).
Fábio Luís Barbosa estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na próxima quarta-feira, 25-10-2017, participando do 2º Ciclo de Estudos A reinvenção política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas, onde ministrará a palestra A necessidade da esquerda para além da esquerda.
IHU On-Line — O que significa dizer que é preciso de uma esquerda para além da esquerda e, no caso brasileiro, de uma esquerda para além do PT?
Fábio Luís Barbosa dos Santos — Significa que é preciso de uma esquerda que vá além das práticas convencionais da esquerda do século XX e começo do século XXI. E, pensando na esquerda em geral, fundamentalmente, significa fazer um balanço da experiência soviética ou das experiências do socialismo real neste ano em que se completam os 100 anos da Revolução Russa, que foi a principal materialização histórica de um projeto de esquerda. Ela pode ter todos os seus problemas e defeitos, mas é uma referência incontornável. Isso envolve repensar, por exemplo, a questão da primazia do desenvolvimento das forças produtivas que, na América Latina, se refletiu como um desenvolvimentismo e que nos anos mais recentes se traduziu como extrativismo. Então, a questão é: será que o desenvolvimento das forças produtivas deve ser uma pauta e um norte para esquerda? Desde o século XIX tem sido — no século XIX associado à noção de progresso e no século XX associado à noção de desenvolvimento. Agora, confrontado essa visão com duas problemáticas fundamentais, a problemática ecológica e, na periferia, a problemática da modernização do consumismo e dos padrões de consumo, será que esse é o caminho? Esse é um ponto que a experiência soviética nos coloca: refletir sobre o desenvolvimento das forças produtivas com o paradigma da Revolução ou da esquerda.
Outra questão importante que se coloca é em relação ao papel do Estado, e até poderíamos colocar a questão como um dilema entre Estado versus democracia. Qual é o dilema? Qual era a ideia inicial do Estado soviético? Era um Estado de transição de uma sociedade capitalista para uma sociedade comunista. Ou seja, a ideia é a de que seria herdada uma sociedade em que as pessoas e as instituições seriam capitalistas e seria necessário construir as condições para uma sociedade comunista, que é uma sociedade sem propriedade privada e sem Estado. Mas, na experiência prática, o Estado soviético acabou sendo um Estado repressor. Então, como que se lida com essa questão? E, na periferia, que é o nosso caso no Brasil, tem um elemento a mais nesse dilema: aqui nós sofremos, de maneira mais direta, a incidência do imperialismo. Então, de um lado, o Estado pode ser forte e abafar as energias criativas de uma revolução, de uma transformação social, mas, de outro lado, o Estado é um instrumento necessário para defender um país do imperialismo. Um intelectual cubano chamado Fernando Martínez Heredia definiu esse dilema com a seguinte pergunta, ao tratar da Revolução Cubana: como fazer um Estado forte que não me coma?
Uma terceira, que é o outro lado da moeda do desenvolvimento das forças produtivas, é a questão do padrão de consumo. O horizonte da mudança, de maneira geral, esteve associado a esse paradigma das forças produtivas, e se dizia que o socialismo e o comunismo seriam mais produtivos e eficientes e, portanto, ultrapassariam o capitalismo desse ponto de vista, mas não sabemos. Provavelmente ele seria mais produtivo, mas como não tivemos experiências do comunismo tal como imaginado — pois o máximo que tivemos foi o socialismo real soviético ou o que outros chamam de capitalismo de Estado —, não sabemos da questão da produtividade. Mas, o ponto é: será que o horizonte da mudança, da Revolução, é aquele dos padrões de consumo das sociedades centrais? Ou, para colocar de forma bem simples, será que o nosso horizonte da Revolução é “espalhar Miami”? Isto é, é fazer com que todos os brasileiros e latino-americanos tenham o padrão de consumo de Miami? Apostar nisso tem dois problemas. O primeiro é de ordem material, porque a base produtiva das sociedades subdesenvolvidas é muito mais estreita do que aquelas que se industrializaram no século XIX e esse é um problema que torna isso inviável. Isso já foi mostrado por Celso Furtado. De outro lado — e aqui está o segundo problema —, será que é desejável que o que se ambiciona como mudança é uma sociedade espelhada nesses padrões de consumo? Porque um padrão de consumo reflete também valores culturais. Dentro desse aspecto, quais são os valores e a cultura que reverencia um projeto de mudança, um projeto de esquerda no século XXI?
Retomando os três pontos colocados, será que a modernização dos padrões de consumo é uma referência necessária? Tendo a entender que o desenvolvimento das forças produtivas é fundamental, mas não é o imperativo absoluto. Abundância social, política e cultural é mais importante do que o desenvolvimento econômico, caso contrário, podemos ter até uma modernização socialista, mas é uma modernização, não é uma revolução. A outra questão que evidenciei é o dilema do Estado, ou seja, como ter um Estado forte que não me coma? Esse é um dilema difícil e que acredito que só tem um caminho: uma aposta radical em uma democracia dos processos de mudanças, como as socialistas — quando falo da democracia eu não estou falando da questão do voto, estou falando da questão de poder popular. E a terceira questão que expus é sobre a modernização dos padrões de consumo: será que essa é uma referência para o século XXI? Acredito que é imperativo rever ou ultrapassar essa referência que esteve muito presente, por exemplo, nos governos petistas, que foi sempre a ideia de resolver os problemas sociais por meio da inclusão pelo consumo para formar a nova classe média e generalizar as políticas assistencialistas, como, o Bolsa Família.
Essa é uma tarefa inadiável. Didaticamente poderíamos dizer que o Brasil da modernização dos padrões de consumo é também o país do privilégio, porque só é possível ter os modernos padrões de consumo se concentrar renda. Se quisermos superar a concentração de renda, o horizonte do padrão de consumo brasileiro tem que ser um horizonte pautado pela igualdade, não pela modernização, não é pelo mais sofisticado. Dito de outra forma, ou alguns têm IPAD e outros não têm sapato, ou todo mundo tem casa para morar. Esses são três pontos fundamentais que devem ser considerados para pensarmos uma esquerda que vá além das experiências ou dos paradigmas da esquerda do século XX.
Quando tratamos mais especificamente da experiência brasileira, uma esquerda para além da esquerda no Brasil é uma esquerda para além das instituições, do diagnóstico da teoria e da prática da esquerda. Qual é a teoria que embasou a prática de esquerda nos últimos 40 anos? É o chamado projeto democrático popular. Qual era a ideia desse projeto? É a ideia de reformar o país, ou seja, a reforma do capitalismo brasileiro, portanto, modificar o país sem mexer nas estruturas. Esse caminho foi pensado pela chamada “estratégia da pinça”: de um lado tem o partido, no caso o Partido dos Trabalhadores, que vai ganhando espaço dentro da institucionalidade e, de outro lado, existem os movimentos do campo popular, os movimentos sociais, que vão pressionando pela mudança e a junção dos dois eventualmente poderia levar a uma sociedade socialista. Esse é o diagnóstico que embasou não só o projeto do PT — quero frisar isso —, mas o conjunto das forças progressistas, o conjunto das forças de esquerda do final dos anos 1970 para cá.
Em 2017 qual é o saldo dessa experiência? É imperativo fazer o balanço dessa experiência. O saldo dessa experiência é que essa estratégia foi suficiente para chegar à presidência, mas foi insuficiente para mudar o país, porque para chegar à presidência foram sendo feitas concessões do ponto de vista programático, ou seja, de um lado foram feitas concessões e, de outro lado, foram se apaziguando as forças populares que poderiam lutar pela mudança. Esse apaziguamento trouxe um rebaixamento das expectavas, isto é, a mudança esperada seria cada vez mais modesta. Então, os motivos que levaram as pessoas de esquerda a votar no PT em cada uma das eleições presidenciais, foram sendo cada vez menores. Se nas eleições de 1989, com o Collor, tinha-se a expectativa de uma mudança radical, em 2002, com aquela Carta aos Brasileiros, havia uma expectativa mais modesta, que era de dar um voto para tirar o PSDB e ver o que dava para melhorar nos marcos dessa ideia de mudar sem mexer nas estruturas.
Há um programa que sintetiza essa percepção: o Fome Zero. A ideia do programa era muito simples, por que quem no Brasil seria contra acabar com a fome? Tanto os pobres quanto os ricos são a favor dessa pauta, assim como todos são a favor da liberdade e da democracia em abstrato. Com isso, foi montado um Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, e colocado, de um lado, o trabalhador e, de outro, os patrões. Esse conselho foi comandado, inclusive, por uma figura vinculada à Igreja, que foi o Frei Betto. Como se sabe, o Frei Betto durou pouco mais de um ano, pois tentou fazer disso um instrumento de organização e mobilização popular e essa expectativa logo se frustrou.
Porém, qual foi o preço para chegar à presidência? Foi, de um lado, “domesticar” o campo popular, rebaixando as expectativas, enquanto os negócios continuaram lucrando. Essa estratégia funcionou relativamente bem no período de crescimento econômico do país, mas na conjunção de crise econômica, com escândalos de corrupção, esse projeto foi colocado na defensiva. Quando se gerou uma conjuntura em que o capital exigiu medidas radicalmente antipopulares, o PT perdeu a sua importância e a sua necessidade do ponto de vista das classes dominantes, porque sua funcionalidade política para as classes dominantes era manter os debaixo aquietados enquanto os de cima ganhavam dinheiro. Em 2013 ficou claro que o partido não tinha mais essa funcionalidade para os de cima, e a Dilma sai da presidência. Ela não saiu por disputa de projeto. O único sentido de afirmar isso é ocultar a corresponsabilidade que o PT tem em relação aos problemas gravíssimos que nós enfrentamos agora, e aos retrocessos que estamos vivendo em ritmo aceleradíssimo.
Essa experiência mostra os limites para a reforma dentro da ordem no Brasil, e se pensarmos no conjunto dos governos da chamada onda progressista, eles revelam os limites para mudança dentro da ordem na América Latina. O PT foi o principal instrumento para um projeto específico; esse projeto era tentar mudar a nossa sociedade, sem mexer nas estruturas. 40 anos depois vemos que ele conseguiu chegar à presidência e não mudou nada no país. Pelo contrário, contribuiu para nos colocar numa situação em que retrocedemos a passos largos à República Velha, ou ao século XIX.
Diante disso, a conclusão é a seguinte: para mudar o Brasil, precisamos de outro projeto, de outros instrumentos e de outra teoria. Qual é essa teoria? É uma teoria da revolução brasileira, porque sem guerra civil não se muda o país; o país não muda sem conflito. A ideia da conciliação de opostos, que foi a ideia do petismo, encarnada na figura do Lula, mostrou no que dá. Na teoria, por exemplo, Florestan Fernandes constatou isso há muito tempo; na prática as experiências históricas latino-americanas e a onda progressista constatam isso de novo: não tem espaço para reforma dentro da ordem. Portanto, se queremos mudar, não vai dar para mudar pelas beiradas, teremos que comprar essa briga, porque as classes dominantes brasileiras não toleram qualquer mudança. Então, para haver mudança é preciso ir contra à classe dominante. A classe dominante — como diz o Florestan — não tem nada a ceder e só cede a medo, portanto, terá que ser na “marra”, não será na conversa e na negociação. Na “marra” significa que tem se preparar para uma guerra civil. Isso não está colocado no horizonte imediato, na pauta da eleição de 2018. Mas uma esquerda que vá além da esquerda e do PT, nesse contexto, no meu entender, tem como tarefa primordial recolocar a revolução na pauta política. Não dá para mudar o Brasil sem comprar briga.
IHU On-Line — Esse enfrentamento não pode se dar de outros modos, via disputas políticas?
Fábio Luís Barbosa dos Santos — O problema é que quem não respeita a democracia no Brasil e na América Latina são as classes dominantes. Nos anos 1970 teve um socialista chamado Salvador Allende que apostou no caminho de mudar radicalmente a sociedade chilena por dentro da ordem. Ele disputou quatro eleições, assim como o Lula. A partir disso começou a fazer as mudanças radicais que estavam no programa dele, respeitando a constitucionalidade, isto é, nacionalizou o pobre, o comércio exterior, começou a nacionalizar os bancos, e com isso foi comprando brigas com o imperialismo — os Estados Unidos —, fez a reforma agrária e com isso comprou briga com a classe dominante de dentro. O que aconteceu com o governo de Salvador Allende? Foi sabotado do começo ao fim pelos de dentro e pelos de fora, com o apoio dos Estados Unidos. E, o Salvador Allende, como um “legalista”, apostou até o fim na constitucionalidade que ele endossava. Mas qual é o fim dessa história? Quem virou a mesa foi a burguesia, com o apoio dos EUA, ou seja, houve um golpe de Estado com Pinochet, e o Salvador Allende, pessoa de altíssima dignidade, acabou morto e o Chile embarcou em uma experiência pioneira do neoliberalismo no mundo banhado de sangue.
A guerra civil não é uma escolha dos debaixo, é uma alternativa dos de cima. A lição que podemos tirar da experiência chilena é que um processo de mudança radical tem que saber se defender; é isso que os cubanos fazem. Podemos criticar os cubanos por uma série de aspectos, mas a justificava que eles têm, por exemplo, para ter um partido único é porque eles precisam colocar a unidade em relação ao inimigo — EUA — na frente de qualquer coisa. A guerra civil não é uma escolha dos debaixo, é uma consequência de quem se comprometer com a mudança do país. Eu vou dizer de novo: o que a teoria mostra e o que a experiência constata é que não se muda na conversa, não vamos mudar por dentro.
IHU On-Line — Estamos comemorando 100 anos da Revolução Russa neste ano. Considerando o que o senhor disse até aqui, gostaria de fazer duas questões. O que a esquerda reproduziu da matriz dessa Revolução que não deveria ter reproduzido, além desses três pontos que o senhor já comentou? E, de outro lado, apostar numa guerra civil não seria, em alguma medida, reproduzir o que aconteceu na Revolução Russa, sem garantir os efeitos que se deseja?
Fábio Luís Barbosa dos Santos — Quando a Revolução Russa triunfa em 1917, 11 exércitos de países diferentes se juntaram aos contrarrevolucionários russos no chamado Exército Branco, e com isso tiveram anos de guerra civil em que o Exército Vermelho enfrentou o Exército Branco, apoiado por esses outros países. Esse é o período da guerra civil russa que, na verdade, também é uma guerra civil internacionalizada. Foi um enfrentamento que trouxe consequências muito indesejadas para o processo russo porque, entre outras coisas, precisou fazer uma economia de guerra, que não só cobrou um preço muito alto dos camponeses, por exemplo, como também exigiu a centralização do Estado. Então, muitas das características que o Estado soviético teve depois — centralismo e antidemocracia — nasceram em uma circunstância de emergência e depois não foram refeitas, por vários motivos, inclusive pelas baixas que esse processo trouxe, entre elas, o Lênin, que esgotado morreu logo depois, seguido do Trotsky, que foi alijado do poder rapidamente; temos as baixas de pessoas que morreram e de pessoas que foram escanteadas. Agora, o que foi a União Soviética do Stalin para a frente é outra coisa e os expurgos que houve não foram guerra civil, foram expurgos, ou seja, é outra coisa.
Respondendo a outra parte da questão, diria que a outra lição da Revolução é a do húngaro István Mészáros, que diz que tem uma coisa que é o capital e outra que é o capitalismo. O capital é um tripé formado pela propriedade privada, o Estado e o trabalho assalariado — a hierarquia das relações de trabalho. A União Soviética rompeu com um desses elementos, que foi a propriedade privada, mas o Estado e a hierarquia das relações de trabalho permaneceram. Portanto, tivemos, no máximo, um sociedade pós-capitalista, mas não foi uma sociedade que rompeu e superou o capital e o metabolismo do capital. Com isso a lição que se tirar é que superar o capital — não o capitalismo — exige um processo de transformação ainda mais radical do que a experiência russa. É preciso enfrentar a propriedade privada dos meios de produção — mas isso não significa que as pessoas não poderão ter seu lar; falo da propriedade privada dos meios de produção — , o Estado e, sobretudo, a hierarquia das relações de trabalho, o trabalho assalariado.
Gostaria de enfatizar esse último ponto: a mudança revolucionária no século XXI não tem alternativa a não ser apostar no protagonismo político e econômico dos trabalhadores em oposição à noção do Estado como a centralização estatal. Será preciso ter mais poder concreto — político e econômico — na mão do povo e menos na mão do Estado. O caminho soviético fez o contrário: o planejamento estatal e a produção foram todos centralizados no Estado e isso teve como consequência debilitar e alienar os trabalhadores do processo. A aposta tem que ser ao contrário. Qual é o drama? O trabalhador legado pelo capitalismo é um trabalhador alienado que não tem como horizonte a autogestão; é um trabalhador que está acostumado a ser mandado, não está acostumado a mandar, nem a si próprio e nem em seu trabalho.
Vou dar um exemplo concreto que ilustra isso: quando aconteceu a Revolução Cubana, acabaram com a superexploração do trabalho na monocultura de cana-de-açúcar das fazendas americanas, e o Estado expropriou e começou a consultar os trabalhadores sobre essa ideia, questionando se preferiam formar cooperativas ou se preferiam serem empregados pelo Estado. A maioria massiva dos trabalhadores optou por ser empregado pelo Estado, enquanto a cooperativa é uma forma de produção em que eles seriam responsáveis e teriam muito mais poder sobre as condições de produção e de reprodução da sua própria vida. Mas um cara que vem da escravidão não necessariamente está buscando isso, ele está buscando trabalhar mais sossegado, então se o Estado for um patrão mais “maneiro”, ele estará feliz com isso.
Eu entendo que não tem alternativa e, apesar dos problemas e das dificuldades do que significa a radicalização do poder popular e uma radicalização democrática. Eu lembro do que a Rosa Luxemburgo diz: prefiro errar com o povo do que acertar sem ele.
IHU On-Line — Em que aspecto essa sua proposta se diferencia de uma teoria liberal que defende o Estado mínimo?
Fábio Luís Barbosa dos Santos – O aspecto fundamental é que quando o neoliberalismo fala em Estado mínimo, ele está falando em transferir o poder para o mercado, e quando eu falo em fenecimento do Estado, como trata a tradição comunista, estou falando em transferir o poder para o povo.
IHU On-Line — A matriz marxista continua sendo fundante para se pensar o futuro da esquerda ou ela é insuficiente?
Fábio Luís Barbosa dos Santos — Considero o marxismo imprescindível, indispensável e incontornável pelo seguinte motivo: o marxismo é o instrumento e o arsenal teórico que desmontou o capital, que o colocou na mesa de operação, abriu esse corpo e nos faz entender o funcionamento desse organismo. Enquanto vivermos numa sociedade capitalista, esse continuará sendo um instrumento fundamental. A questão é: quando se aterrissa nas realidades concretas, cada uma tem a sua particularidade, então, é preciso ter um marxismo, mas um marxismo latino-americano, ou um marxismo brasileiro, ou seja, partir das determinações mais gerais, que são iguais, e considerar as particularidades das situações históricas. Essa foi uma herança muito ruim do estalinismo no campo das ideias, porque ele generalizou uma forma vulgar de marxismo, porque pensava as diferentes realidades numa régua comum e, com isso, perdeu eficácia política.
Então, como Michael Löwy diz num ensaio introdutório sobre o marxismo na América Latina, o marxismo na região cometeu dois erros: o primeiro foi o eurocentrismo, ou seja, analisou a região como se ela fosse a Europa; e o segundo foi o que Löwy chamou de excepcionalíssimo indo-americano, isto é, o erro oposto, como se a região não tivesse nada a ver com o que acontece na Europa ou nos EUA e supervaloriza as tradições nativas, como a indígena. Então, eu entendo que o desafio teórico e político do marxismo latino-americano é achar esse meio-termo.
IHU On-Line — A esquerda brasileira tem discutido esses três pontos que o senhor questiona, como rever o desenvolvimento das forças produtiva, rever a centralidade do Estado, e rever o padrão de consumo? Como essa sua proposta é vista pela esquerda brasileira?
Fábio Luís Barbosa dos Santos — A esquerda brasileira tem como desafio urgente, primeiro, “matar o PT” no sentido de fazer o luto e valorizar o significado histórico do partido como a primeira manifestação histórica da classe trabalhadora, mas, de outro lado, reconhecer que esse partido perdeu sua razão de ser a partir do momento em que se converteu num partido da ordem. A política de esquerda hoje paga um preço muito alto pela ambiguidade que seus militantes têm em relação ao PT. Nesse sentido, muitos têm depositado uma esperança na volta do Lula em 2018 como uma alternativa ao Michel Temer, quando o que está claro há muito tempo é que o PT e o Lula se tornaram uma alternativa para 2018, mas não para o povo, mas sim para a classe dominante. E quem diz isso não sou eu, mas o Trabuco, presidente do Bradesco, que já disse que se a situação descambar, o jeito vai ser chamar o Lula. A situação não está descambando. Mas se a panela começar a ferver, o petismo é uma alternativa.
Mas temos que pensar para frente, porque enquanto não tirarmos esse “corpo morto do PT” da estrada da esquerda, enquanto não colocarmos esse corpo à margem, não conseguiremos andar. A esquerda precisa do novo, mas qual é o problema do novo? O problema é que ele é desconhecido, ou seja, não está posto. Vamos ter que começar a construí-lo em algum momento. Vou fazer uma figura de imagem afetiva: é como quando você está num namoro ruim, mas você não quer terminar porque pensa que poderá ficar sozinho, que não vai ter ninguém para te apoiar, e começa a pensar em todas as implicações e incômodos da solidão. Mas se o namoro fica intolerável, não tem saída. Enquanto não se abrir para o novo, você não vai entrar numa relação nova. No caso do PT, quantas vezes a esquerda tem que ver o partido dormindo com o inimigo para entende que o namoro acabou? O PT vai continuar existindo, mas ele não é uma força da esquerda; é o partido do mal pior. Você pode dizer que saiu do PT, mas a cada quatro anos você vota no PT e no Lula novamente, então, você fica com o partido de tempos em tempos.
IHU On-Line — Além de uma parte da esquerda apostar no retorno de Lula na eleição presidencial de 2018, outra parte aposta em Ciro Gomes, e na semana passada o PSOL sinalizou que possivelmente Guilherme Boulos, do MTST, será seu candidato. Como vê essas duas possibilidades? Elas são alternativas à esquerda?
Fábio Luís Barbosa dos Santos — O Ciro Gomes é um político convencional, que se quer vem de uma tradição à esquerda. O Ciro é como se você pensasse o Lula rebaixado. O que o Lula tem a oferecer para o povo? Nada; ele vai se fazer de pelego. O Ciro não tem pelego e lembre-se que ele foi Ministro da Economia do governo FHC, um dos mais neoliberais e agressivos que tivemos. Então, esquece o Ciro Gomes.
O Guilherme Boulos é um quadro importante do movimento popular brasileiro e merece toda a atenção e respeito de quem está no campo da esquerda. Mas além dos nomes, é preciso ver qual é o projeto que essa candidatura abraçaria, porque o próprio PSOL é um partido que esteve dividido na sua trajetória entre aqueles que querem ser um PT dando um passinho para a esquerda, e uma outra turma que está nesse campo que eu estou sugerindo, o campo da Revolução Brasileira, que entende que a política parlamentar é apenas uma das arenas.
Como dizia o Florestan Fernandes, a democracia aqui é como um biombo, ou seja, se elegermos um Salvador Allende, como elegeram no Chile, vão virar o jogo e colocar os militares no governo. Então, é preciso ver qual é o projeto que o Boulos encampará, porque se for uma reciclagem de um projeto democrático popular dando um passinho à esquerda, arriscamos reeditar a tragédia como farsa. Se for uma candidatura que se propõe a contribuir para entender o que aconteceu, entender a anatomia o poder burguês no Brasil, e entender o que é preciso para mudar o país, “estamos juntos”, como se diz por aí.
Vou dar um exemplo considerando a própria história do PSOL: O Plínio de Arruda Sampaio foi candidato à presidência pelo PSOL em 2010 e fez o que se chamou de candidatura testemunho, ou seja, não fez uma candidatura para ganhar, mas uma candidatura com o objetivo de dizer as coisas que o povo precisa saber sobre o Brasil do ponto de vista de quem quer mudar o país. Eu lembro que num dos debates a Dilma perguntou ao Plínio quantas casas ele iria construir e ele respondeu que nenhuma. A Dilma, como queria falar do Minha Casa Minha Vida, fez aquela cara de espanto, mas o Plínio falou sobre os números – possivelmente municiado pelo Boulos – da especulação imobiliária no Brasil e sobre os números de quantos imóveis estavam desocupados, ou seja, demonstrando que o país não precisava de uma “bolsa empreiteira”, como foi o Minha Casa Minha Vida, mas de reforma urbana.
Agora, tem outro lado do PSOL que tem medo de falar esse tipo de coisa, e argumenta que discursos desse tipo assustariam os eleitores, ou seja, é gente que sai a candidato a prefeito ou a governador para se fazer conhecido e depois se eleger como deputado, ou seja, fica fazendo esse papel de PT com um passinho à esquerda, mas desse papel, nós não precisamos.
IHU On-Line — Muitos dizem que a esquerda política, os partidos, é incapaz de impulsionar um novo programa para a esquerda mundial e que essa tarefa caberá à esquerda social, ou seja, aos movimentos sociais. O que você pensa sobre isso?
Fábio Luís Barbosa dos Santos — Eu sou da velha guarda que ainda acredita na forma partido, porque o partido é aquela organização para onde conflui a diversidade das forças sociais que, no caso da esquerda, milita pela mudança. O sindicato vai brigar pelas condições da categoria, o movimento de moradia vai brigar pela reforma urbana, o movimento dos camponeses vai brigar pela reforma agrária, mas todos esses são aspectos de um desafio mais geral que é mudar o país. O partido seria aquela organização onde confluem todas essas organizações, e o PT fez esse papel. Para ele confluíram a CUT, os movimentos populares, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra — MST. Desse ponto de vista tendo a achar que o partido ainda é um instrumento.
Por outro lado, não é a política institucional, nem no Brasil nem no mundo, que fará a mudança. Então, não vai ser via Brasília que vamos mudar a situação, mas isso pode contribuir e é necessário contribuir para acumular forças e generalizar uma consciência do tamanho dos problemas do país. Nesse sentido, o motor da mudança vem das ruas.
IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?
Fábio Luís Barbosa dos Santos — Precisamos ter coragem nas pequenas e grandes coisas, porque o mundo conspira para o acovardamento das pessoas e para um individualismo, que é uma outra forma de acovardamento. Precisamos ter coragem e ousar nas ideias e nas práticas. Espero que este evento que irá ocorrer no IHU reúna pessoas corajosas.
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"Não tem espaço para reforma dentro da ordem, porque as classes dominantes brasileiras não toleram qualquer mudança". Entrevista especial com Fábio Luís Barbosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU