Por: Patricia Fachin | 21 Setembro 2016
Em meio à atual crise política do país, há uma “disputa” sobre qual será o perfil da esquerda brasileira daqui para frente. A tensão se dá entre dois opostos: de um lado, “uma hegemonia em declínio” e, de outro, “uma composição multitudinária, em que poderá haver uma unidade de ação, mas um novo projeto demorará a ser construído, e só poderá sê-lo levando em conta as diferentes perspectivas que compõem este novo cenário”, constata Rodrigo Nunes em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, a esquerda brasileira está passando por um momento de transição, no qual “ou será multitudinária ou não será”, porque “tentar hegemonizá-la” novamente “equivale a matá-la, o que implica solapar a capacidade de resistir às reformas”, diz.
Ele argumenta que “a razão de ser da esquerda não é unificar a esquerda, mas transformar a sociedade” e, para isso, “é preciso criar os espaços onde uma nova sensibilidade possa surgir”. Isso significa que “é hora de toda a esquerda, especialmente aqueles com pretensões hegemônicas dentro dela, ‘tirar o pé’: deixar de afirmar a própria identidade para tonar possível o espaço onde algo novo possa surgir, (...) o que não significa capitulação ao senso comum, mas entender que, se nós pretendemos definir unilateralmente os termos do diálogo, não devemos nos espantar que as pessoas nos deixem falando sozinhos”.
Nunes explica que o sentido de “multitudinário” “não supõe adesão às teses de Antonio Negri, mas é antes um esforço para descrever a forma dos protestos que estão ocorrendo, ou poderiam ocorrer”, ou seja, “aquela forma que existe quando não há uma única força hegemônica, mas uma série de ‘micro-hegemonias’ e uma grande massa de indivíduos ‘soltos, não necessariamente arregimentados por nenhuma delas. Novamente, trata-se de um problema de mão dupla: quem exige diversidade de um lado não pode exigir exclusividade do outro”.
Manifestações que se pretendem “multitudinárias”, frisa, não devem expressar “incômodo” com o fato de uma manifestação de 100 mil pessoas ser descrita como “cheia de famílias, crianças, idosos”, porque “ter uma manifestação assim é ótimo”. O erro, explica, “está sempre em querer absolutizar um padrão: que todo protesto, todo manifestante, toda ação, seja assim ou assado”. E acrescenta: “Não se faz um movimento potente sem a adesão de gente de todo tipo, e para que as pessoas possam aderir, é preciso que haja espaços em que elas possam participar e formas de ação em que se sintam à vontade”.
Para ele, se a “esquerda” se propõe a “construir uma sensibilidade comum e um consenso social em torno de certas ideias, é preciso primeiro saber respeitar a sensibilidade destas pessoas para ser capaz de modulá-la”. Para isso, adverte, “não acredito que se deva ficar apenas na questão das eleições diretas — e menos ainda só no ‘Fora Temer’”; “é preciso partir da realidade das pessoas, daquilo que elas estão experimentando: incerteza, má qualidade dos serviços públicos, perda de oportunidades” e é “preciso dizer: a crise é um problema real”. A diferença, sugere, é usar o discurso de urgência “com o sinal invertido” para “resistir às reformas propostas” e construir um programa alternativo que consiste em “taxação de grandes fortunas e lucros e dividendos, reforma tributária progressiva, reforma política, desmilitarização da polícia, qualificação dos serviços”.
Rodrigo Nunes | Foto: Acervo pessoal
Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É colaborador de diversas publicações nacionais e internacionais, como Radical Philosophy, Mute, Le Monde Diplomatique, Serrote, The Guardian e Al Jazeera.
Como organizador e educador popular, participou de diferentes iniciativas ativistas, como as primeiras edições do Fórum Social Mundial e a campanha Justice for Cleaners, em Londres. Além disso, foi membro do coletivo editorial Turbulence, uma revista influente entre os movimentos sociais da Europa e da América do Norte na segunda metade da década passada. Nunes tem pesquisado e estudado os modos de organização política, o que já resultou em diversos artigos e no livro Organisation of the Organisationless (2014). No momento, ele também está trabalhando em dois projetos de livro: uma edição brasileira, reunindo artigos até hoje não disponíveis em português, e uma tentativa de renovar o debate sobre a organização política a partir do diálogo entre diferentes tradições, como marxismo, pós-estruturalismo e cibernética.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Durante o processo de impeachment, não houve grandes manifestações nas ruas. Elas se intensificaram mais após a decisão final do Senado. Como você avalia este esvaziamento das ruas num primeiro momento e, posteriormente, o retorno das manifestações?
Rodrigo Nunes - Na reta final do processo no Senado, o esvaziamento era previsível porque o jogo já era visto como jogado. O esvaziamento mais interessante de entender ocorre antes, a partir da aprovação do processo de impeachment na Câmara. O “Não Vai Ter Golpe” havia até ali organizado manifestações maiores e mais diversas do que apenas a base social petista; a partir dali, porém, estas minguam. Como interpretar isto?
Minha hipótese é que isto resulta de um erro estratégico e de uma questão de composição política. O erro estratégico foi que, assim que o impeachment passou na Câmara, ficou claro que ele havia se tornado imparável; aquele teria sido o momento de começar a mobilizar por eleições, uma campanha que poderia estar chegando ao auge agora, quando finalmente está começando. Incapazes de se decidir por este passo, as organizações que convocavam os atos seguiram agitando por uma causa que era ao mesmo tempo altamente improvável e de baixo apelo popular: o retorno de Dilma. As bases sentiram este beco sem saída, por isso se desmobilizaram.
Aí entra a composição política. O PT, a CUT e os movimentos sociais tradicionais já não possuem a mesma hegemonia sobre a esquerda brasileira. Embora ainda tenham a maior base social orgânica, tanto esta base quanto sua influência sobre os não-orgânicos encolheram, e portanto encolheu sua capacidade de mobilização. Por um lado, ainda são eles os que, sozinhos, conseguem convocar as maiores ações; por outro lado, eles sozinhos não têm mais força suficiente. O acirramento da crise política e o poder afetivo da ideia de “golpe” conseguiram, num primeiro momento, galvanizar tanto uma parte da base petista que andava desmobilizada quanto setores que, embora hoje fortemente críticos ao PT, se opunham ao impeachment.
Estes últimos, contudo, eram desde o início muito ambivalentes em relação a estar em espaços hegemonizados por um discurso (ex-)governista, especialmente quando este discurso não fazia maiores esforços para incorporar críticas legítimas ao governo. Estes foram os primeiros a sair das ruas, desaparecendo por completo ao ver que não havia futuro no “Volta Querida”.
IHU On-Line - E agora? Quem está nas ruas pós-impeachment?
Rodrigo Nunes - A composição é novamente mais diversa, ainda mais diversa que o primeiro momento do “Não Vai Ter Golpe”. Isto porque, quando a luta ainda podia se confundir com uma defesa do governo Dilma — e as entidades que convocavam os atos insistiam nesta confusão —, parte da esquerda crítica ao PT não conseguia superar sua ambivalência e somar-se aos atos. Inclui-se aí uma fração considerável daquela nova geração política que surgiu em 2013. Eles não estavam indiferentes ao impeachment, mas não se viam representados no tipo de manifestação que estava ocorrendo. O momento mudou, a volta de Dilma não está mais na agenda, e uma parte crescente destes setores vê a necessidade de voltar às ruas para lutar contra o novo governo e barrar as reformas regressivas que agora entraram — a pleno título e com uma pressa e viabilidade que não possuíam no governo que acabou — na ordem do dia.
Ora mais hegemonizados pelo petismo, ora mais multitudinários, ora com um perfil mais estritamente desta nova geração política, a composição também tem variado bastante de lugar para lugar. Aliás, talvez São Paulo seja o único em que toda esta pluralidade tenha efetivamente se expressado até agora.
Mas a ambivalência não deixou de existir; alguns setores, inclusive, permanecem recalcitrantes, se recusando a ir às ruas por acreditar que toda mobilização agora necessariamente servirá para revitalizar a hegemonia petista. É uma avaliação da qual discordo, porque acredito que os potenciais retrocessos seriam um preço alto demais a pagar, mas também que o ocaso da hegemonia petista é uma tendência irreversível, o que significa que não apenas as ruas estão em disputa, mas também o está o perfil futuro da esquerda brasileira. “Disputa”, note-se, não no sentido de que esteja por aparecer um partido ou setor que será o novo hegemon. Antes pelo contrário: a disputa no momento é entre uma hegemonia em declínio e uma composição multitudinária, em que poderá haver uma unidade de ação, mas um novo projeto demorará a ser construído, e só poderá sê-lo levando em conta as diferentes perspectivas que compõem este novo cenário.
Aliás, é preciso forçar uma escolha aí: a esquerda, neste período de transição que se inicia, ou será multitudinária ou não será. Tentar hegemonizá-la agora equivale a matá-la, o que implica solapar a capacidade de resistir às reformas. Espero que as lideranças e militâncias partidárias se deem conta disto.
Quanto mais fraca a hegemonia, mais se torna imperativo estabelecer relações de mão dupla: se, ao chamar uma manifestação, eu escolho palavras e formas de ação que se comunicam apenas com a minha base imediata, eu não posso estranhar que apenas ela se sinta convocada. Ora, se acreditamos que o momento exige uma unidade de ação para pelo menos impedir retrocessos, e se ninguém tem condições de produzir esta unidade pela força de sua hegemonia, é necessário concluir que ela só pode ser produzida a partir de uma diversidade de perspectivas e táticas. Esta é uma lição que aqueles de nós que passamos pelo movimento altermundialista da virada do século aprendemos; mas que também poderia ser expressa com a velha máxima trotskista “marchar separados, golpear juntos”.
Por fim, é preciso lembrar que a razão de ser da esquerda não é unificar a esquerda, mas transformar a vida – não ficar falando entre si, mas sair de si para construir consenso em torno de algumas ideias, promover novas práticas. Talvez passe, sobretudo, por constituir uma sensibilidade comum: uma certa disposição diante do mundo, uma tendência a percebê-lo e interpretá-lo de determinadas maneiras. O petismo, como as mobilizações contra o impeachment demonstraram, é antes de tudo uma sensibilidade, formada inicialmente nas Comunidades Eclesiais de Base e que ainda funciona como plano de consistência para muita gente. Aquilo que até pouco chamávamos de “governismo” é tanto o resultado quanto o próprio processo pelo qual esta sensibilidade foi se autoimputando, restringindo-se cada vez mais a um pequeno número de significantes fixos: eu reconheço o sem-terra como companheiro, mas sou incapaz de sequer reconhecer o indígena como humano; eu olho para o Lula e enxergo o Lula da década de 80, então todas as minhas dúvidas se calam... Isto explica ao mesmo tempo a esquizofrenia crescente do governismo e o declínio desta sensibilidade sob o peso da enorme massa de ideias contraditórias que ela obrigava as pessoas a carregarem. É preciso criar os espaços onde uma nova sensibilidade possa ser cultivada.
Em resumo, é hora de toda a esquerda, especialmente aqueles com pretensões hegemônicas dentro dela, “tirar o pé”: deixar de afirmar a própria identidade para tornar possível o espaço onde algo novo possa surgir. É o “anota aí: eu sou ninguém” da militante do Movimento Passe Livre, ou o “devir imperceptível” de Deleuze e Guattari. É um “devir qualquer um”, o que não significa capitulação ao senso comum, mas entender que, se nós pretendemos definir unilateralmente os termos do diálogo, não devemos nos espantar que as pessoas nos deixem falando sozinhos.
(Foto: Repórter AM)
IHU On-Line - Este tema da diversidade de táticas voltou à pauta recentemente, por conta da polêmica em torno dos Black Blocs. Como pensá-lo neste contexto?
Rodrigo Nunes - Isto se liga diretamente ao sentido que estou dando a “multitudinário”, que não supõe adesão às teses de Antonio Negri, mas é antes um esforço para descrever a forma dos protestos que estão ocorrendo, ou poderiam ocorrer. Justamente, aquela forma que existe quando não há uma única força hegemônica, mas uma série de “micro-hegemonias” e uma grande massa de indivíduos “soltos”, não necessariamente arregimentados por nenhuma delas. Novamente, trata-se de um problema de mão dupla: quem exige diversidade de um lado não pode exigir exclusividade do outro.
Quando a polêmica sobre os Black Blocs voltou à baila, houve quem expressasse incômodo que a manifestação de 100 mil pessoas em São Paulo fosse descrita como “cheia de famílias, crianças, idosos”. Ora, ter uma manifestação assim é ótimo! O erro está sempre em querer absolutizar um padrão: que todo protesto, todo manifestante, toda ação, seja assim ou assado.
Não se faz um movimento potente sem a adesão de gente de todo tipo, e para que as pessoas possam aderir, é preciso que haja espaços em que elas possam participar e formas de ação em que se sintam à vontade. O “ativismo” pode ser profundamente excludente, selecionando um determinado tipo de corpo (jovem, ágil, resistente), de disponibilidade de tempo, de aptidões, perfil identitário etc. Cada indivíduo possui um limiar próprio de participação, e este limiar dificilmente se transforma subitamente, de maneira não gradual. É mais provável que alguém passe de compartilhar informações nas redes sociais a frequentar manifestações, e a partir daí se organize num grupo, talvez depois participe de ações mais militantes, do que alguém saltar da não participação completa à militância diária. É apenas em situações extraordinárias, como foi junho de 2013, que saltos assim ocorrem; o mais normal é as pessoas progredirem gradualmente, e alguns jamais passarão de um certo ponto. Grandes movimentos históricos, como o dos direitos civis nos Estados Unidos, souberam lidar com esta diversidade sem supor que houvesse uma maneira “certa” de participar. Um grande movimento não se reduz nem a uma participação de “laços fracos”, nem a uma militância de “laços fortes”.
Voltemos ao ponto: “multitudinário” quer dizer não apenas uma diversidade de táticas entre grupos organizados, mas uma presença massiva de gente “solta”, que não se define necessariamente como “ativista” ou “de esquerda”. Se o que queremos é construir uma sensibilidade comum e um consenso social em torno de certas ideias, é preciso primeiro saber respeitar a sensibilidade destas pessoas para ser capaz de modulá-la. É isto que o Moysés Pinto Neto, com quem estou plenamente de acordo, quis dizer com “não vestir vermelho”. Estamos indo às ruas para marcar presença, para defender uma identidade, para afirmar uma hegemonia sobre números cada vez menores, ou para construir consenso? Se a segunda opção, então temos que estar abertos a ser como qualquer um, justamente para que qualquer um possa ser como nós.
Por isto, é excelente que haja espaços em que qualquer pessoa possa participar. Infelizmente, sabemos que o maior obstáculo a que os protestos sejam acessíveis a todo tipo de indivíduo e corpo não são os Black Blocs, mas a brutalidade da Polícia Militar. A manifestação dos 100 mil em São Paulo, mesmo “cheia de famílias, crianças, idosos”, ainda assim foi atacada no final.
Mas o argumento que estou empregando vale também para críticas que foram lançadas contra a forma que o “Não Vai Ter Golpe” foi tomando à medida que as ações de rua minguavam. Trata-se de um argumento que foi bem condensado pela Rosana Pinheiro Machado — e com o qual concordo, mas dentro daquele contexto específico. De novo, acho excelente que uma massa de pessoas registre seu dissenso no Instagram, em canções, em protestos nas Olimpíadas, onde seja. Você reconhece um grande movimento de desobediência civil quando este tipo de coisa começa a proliferar. Diria mais: algo que faltou ao pós-junho de 2013 foi um repertório mais variado de ações acessíveis a diferentes limiares de participação. Então o problema com o “Não Vai Ter Golpe” não era lançar mão deste tipo de ação, mas o fato de que elas passaram a acontecer na ausência de qualquer outra coisa. Não apenas as ações se tornaram atomizadas, sem uma coletividade por trás, elas acabavam traindo um recorte (de classe, de perfil etc.) bastante limitado. Na ausência de um “nós” mais amplo, aqueles pequenos protestos acabavam apenas reafirmando um “eles” isolado.
Eu estenderia este argumento a todo tipo de dicotomias que a cada tanto as pessoas parecem querer impor como disjuntivas: “redes” e “ruas”, “narrativa” e “presença”... Diante da questão “uma coisa ou outra”, a resposta tem de ser: “ambas”. O problema está precisamente em ter uma sem a outra. A “narrativa”, na ausência de uma mobilização real, se torna a construção imaginária de algo que não está lá. Mas a narrativa também é uma dimensão essencial da experiência, tanto individual quanto coletiva; é o processo pelo qual atribuímos sentido àquilo que acontece. Ademais, o ambiente em que nos movemos é narrativizado de ponta a ponta; se não criamos nossas narrativas, acabamos utilizando as dos outros. Trabalhos como os de Francesca Polletta e Yves Cittonsão essenciais para pensar como isto pode ser feito.
IHU On-Line - Mas como fica a questão do chamado “vandalismo”, que segundo alguns acaba afastando as pessoas dos protestos?
Rodrigo Nunes - Eu diria que o problema da tática Black Bloc, como o de toda tática, não é de tática, mas de estratégia. “Tática” é justamente aquilo que se usa ou não se usa, se usa mais ou se usa menos, conforme a situação; “estratégia” é aquilo que determina a lógica segundo a qual você decide o que e como fazer em cada ocasião. Se sua ideia de estratégia for fazer sempre a mesma coisa, então você não terá nem estratégia, nem tática: você estará apenas fazendo sempre a mesma coisa.
A questão é: em última análise, só quem pode modular a tática Black Bloc é quem participa dela. Você vai fazer o que, entregar estas pessoas à polícia? É um poço sem fundo: se você corrobora a lógica policial do “inimigo interno”, esta lógica seguirá operando, e cada novo incidente — e sabemos que a maioria é causada pela polícia — sempre será culpa de um novo “inimigo interno”. Você vai exercer o poder de polícia você mesmo? Então os incidentes deixarão de ser entre manifestantes e polícia e passarão a ser de manifestantes contra manifestantes. Em suma: não há saída que não seja o diálogo, seja ele direto ou indireto.
Só quem “faz” Black Bloc pode decidir modular a tática — não fazer hoje, fazer menos, fazer diferente. Mas estes indivíduos são sensíveis aos incentivos positivos e negativos do meio em que estão, seja a agressão policial, seja o que dizem os outros manifestantes, seja o que diz a mídia etc. E a experiência indica que eles são, sim, capazes de modulação tática; ao contrário do que muita gente imagina, não se trata de autômatos, nem de animais irracionais. Quando os Black Blocs apoiaram a greve dos professores no Rio em 2013, comportaram-se diferentemente de situações anteriores; em São Paulo, nas últimas semanas, houve manifestações em que havia Black Blocs e nada aconteceu.
Dito isto, eu acrescentaria uma coisa. Minha experiência no Rio, onde junho de 2013 durou até outubro, foi que realmente, a partir de um certo momento, a ritualização das manifestações, o fato de que elas invariavelmente acabavam em confronto, afastou as pessoas das ruas. Mas é preciso perguntar em que medida isto foi causa e em que medida foi sintoma. Havia um impasse ali; ninguém sabia como dar continuidade àquela brecha que tinha se aberto. Desde então, aliás, o impasse só cresceu. E naquele momento, como alguns grupos que praticavam a tática Black Bloc possuíam maior capacidade de mobilização, foram eles que mantiveram os protestos acontecendo. Ao mesmo tempo, como não surgiram alternativas àquele tipo de ação, e os atos sempre acabavam do mesmo jeito, as pessoas se cansaram. O impasse gerou um feedback negativo, e o que era condição de possibilidade se tornou condição de impossibilidade.
Todas as análises que estou propondo supõem uma coisa: a necessidade de pensarmos um movimento social ou sistema-rede como uma ecologia — de grupos, formas de ação, formas organizativas, propósitos, estratégias etc. que existem independentemente de nossa vontade e intervêm no mesmo espaço em que pretendemos atuar.
Uma grande transformação social nunca é produzida por um único ator, empregando uma única forma de ação, num único momento; ela é a resultante de uma série de pressões ao longo do tempo, que às vezes se somam, às vezes se cancelam, às vezes se combinam de modo inesperado. E cada situação, cada conjuntura é sempre assim: aquilo que você considerou um erro imenso hoje abre uma oportunidade única amanhã; aquilo que sempre funcionou deixa de fazer efeito. É por isto que não faz sentido discutir em termos absolutos, como se fosse possível dizer qual é a forma organizativa certa ou qual é a tática que se deve sempre empregar. É tão absurdo quanto se perguntar qual é a ferramenta certa para montar uma mesa, ou martelo ou serrote. É óbvio que você precisa dos dois.
Problemas verdadeiros têm outra forma: qual é a melhor coisa para fazer nesta situação? O que pode, partindo das forças que se tem agora, neste contexto e interagindo com estes fatores, produzir o melhor efeito? Isto requer enxergar-se como parte de um meio onde há múltiplos agentes, ao invés do narcisismo de imaginar-se como herói solitário que sempre tem razão, mesmo (ou especialmente) quando ninguém lhe dá ouvidos. Num jogo coletivo, às vezes você avança, às vezes recua, às vezes fica no mesmo lugar. Não depende só de você; depende do que todo mundo mais está fazendo.
IHU On-Line - Como as manifestações atuais se comparam com outras que já ocorreram no país ao longo dos últimos três anos?
Rodrigo Nunes - Poderíamos dizer que, no auge das manifestações de junho de 2013, estavam reunidos todos aqueles que desde então têm ido às ruas separadamente. Estavam lá os que protestam agora — talvez não tanto os petistas, embora também estes, mas, sobretudo, esta nova geração política e setores que se identificariam como estando à esquerda do PT. Mas estavam também aqueles que se manifestaram em 2015: uma direita ideológica, assumida; pessoas que não necessariamente se definem como direita, mas cujas posições tendem nesta direção; e mesmo gente que seria difícil classificar como direita em certos aspectos, mas que são sensíveis ao antipetismo. No final de junho de 2013, eles estavam todos lá. Golpearam separados — no pun intended — mas naquele momento marcharam juntos.
Havia uma outra coisa ali, porém, ou havia em grau bem superior a todos os protestos posteriores, e é isto que confere a junho de 2013 um potencial que não foi exaurido por nada que veio depois. Havia muita gente que nunca tinha ido às ruas antes e talvez nunca tenha ido desde então. Gente sem maior formação política, mas que se sentiu interpelada por aquele momento, muitos deles da nova classe dos “batalhadores”, justamente aqueles que mais se beneficiaram do “pacto lulista”, mas que também foram os primeiros a pressentir seu esgotamento. Este sujeito, visto de relance naquele momento e nunca mais, é o grande personagem ausente da política brasileira dos últimos três anos. Talvez seja, também, o ponto arquimediano do quadro em que nos encontramos — aquele a partir do qual seria possível alavancar a mudança do quadro todo.
Há quatro fases em 2013: a primeira metade de junho, em que a composição é essencialmente de uma esquerda não petista; a segunda, que é quando tudo se mistura; a terceira, em julho e agosto, mais próxima à composição inicial, porém ampliada; e a quarta, onde a composição volta ao estado inicial e os números vão minguando, até chegar ao “Não Vai Ter Copa”.
Minha hipótese é que há uma ruptura que ocorre no segundo momento, quando acontecem duas coisas que seria um grande erro tratar como uma coisa só. Estas são, por um lado, uma adesão de pessoas ideologicamente identificadas com a direita, que viam ali uma possibilidade de desestabilização do governo; por outro, uma adesão de um número ainda maior de pessoas identificadas nem à direita, nem à esquerda, que buscavam ali uma primeira experiência de participação efetiva. Na falta de referentes políticos próprios, elas se serviam um pouco de qualquer coisa que estivesse à mão: a bandeira e o hino nacionais, palavras de ordem vagas, o discurso anticorrupção. Ao mesmo tempo, não só elas não tinham necessariamente o PT como inimigo, como muito do que diziam (qualificação dos serviços públicos, mais investimento em saúde e educação) as punha, pelo menos em princípio, do lado da esquerda.
A ruptura, acredito, ocorre quando se confundem estas duas realidades distintas na ideia de que “a direita foi às ruas”. Isto gera um esforço para “tirar a direita das ruas” que passa pela reafirmação de uma identidade mais claramente de esquerda, mais militante e confrontacional. Isso sem dúvida funcionou no sentido de afastar o perigo de cooptação, mas teve um custo em termos de amplitude: os ativistas perderam ali uma oportunidade de construir algo em comum com não ativistas potencialmente receptivos à sua mensagem. É uma grande ironia deste processo: os ativistas sonharam durante anos em trazer multidões às ruas, mas quando elas vieram, eles tiveram medo porque não sabiam o que esperar.
Em política se está sempre necessariamente lidando com trade offs assim: se você ganha em amplitude, perde em coesão, mas se ganha coesão em pouco tempo, perde amplitude. E é importante ressaltar as escolhas que estão implícitas aí: quanto mais multitudinário o movimento, quanto menos este ou aquele agente puder hegemonizar os demais, mais flexível cada ator precisa ser para conquistar apoio a suas iniciativas. Quanto menor a sua base orgânica, mais capaz de diálogo você precisa ser. É a condição da “liderança fraca” teorizada por Pierre Clastres.
O limite da liderança fraca que certos atores lograram conquistar em 2013 se tornou claro na quarta fase dos protestos, quando alguns deles parecem ter confundido contágio afetivo com conversão, o que foi um grave erro de avaliação. Junho de 2013 foi uma grande catarse, um instante em que milhões de pessoas estavam sentindo as mesmas coisas: o mal-estar com a classe política, o patrimonialismo e a desigualdade; a esperança de ver as coisas mudarem; o ódio contra a violência policial. Mesmo o confronto entrava aí: basta pensar no episódio em que as pessoas votaram num programa de TV ao vivo em favor de “protesto com baderna”.
A questão é que eu posso sentir o mesmo que você sem necessariamente concordar com suas ideias ou estar disposto a lutar por elas. O fato de estarmos sentindo a mesma coisa pode fazer com que eu me abra mais aos seus argumentos, mas não significa que eu tenha me convertido. Esta confusão entre um estado instável, uma sincronização afetiva (“as pessoas estão do nosso lado”), e uma condição permanente (“as pessoas passaram para o nosso lado”) justificou, na cabeça de alguns, uma radicalização retórica e prática crescente, acreditando que as pessoas viriam atrás. Esta radicalização sem contexto, somada ao impasse político e à repressão policial, acabou por deixá-los falando sozinhos.
IHU On-Line - O que é possível vislumbrar em termos de manifestações agora? Como elas deverão se desenvolver? Quais são as pautas que devem estar presentes?
Rodrigo Nunes - O que acontecerá depende de uma série de fatores externos (repressão policial, tramitação das reformas, desenrolar da crise política e da Lava Jato) e internos (até onde será possível manter uma mesma intensidade se não houver perspectiva de influenciar o rumo das coisas? Que forma esta perspectiva tomará? Estarão todos contemplados nela?). Como cada um deles é difícil de prever, o todo se torna imponderável.
Há muitas coisas que estão além do controle dos manifestantes. Há outras, no entanto, que estes podem, se não controlar, pelo menos influenciar: tentar dar às manifestações a composição mais ampla e diversa possível, tentar encontrar as mensagens que sejam ao mesmo tempo mais inclusivas e mais radicais.
O problema da organização é, entre outras coisas, um problema de números: quando existem alguns indivíduos que “podem” muito e outros que “podem” muito pouco, aqueles que podem pouco precisam uns dos outros, porque a colaboração multiplica suas potências individuais. Isto quer dizer que a organização é uma questão de composição, de como compor coisas heterogêneas entre si. E isto, finalmente, significa que a organização é uma questão daquilo que Leibniz chamava de “compossibilidade”: como fazer com que coisas muito diversas não sejam mutuamente exclusivas? Como conciliar um máximo de coerência com um máximo de diversidade?
Isto quer dizer que mensagens, palavras de ordem, formas de ação precisam ser pensadas nos termos daquilo que Gilbert Simondon chamava de “tensão de informação”. Se uma mensagem é mais ou menos indistinta daquilo que a maioria já pensa, ela não modifica nada; se ela é totalmente distinta, ela também não modifica nada. Tanto num caso como no outro, a comunicação não se dá, porque a mensagem é ou ordinária demais ou diferente demais para veicular qualquer informação. A boa mensagem, aquela que informa e transforma alguma coisa, acontece no meio destes dois extremos. Ela não é nem uma repetição do senso comum (o que seria o primeiro caso), nem o programa da revolução perfeita que existe na sua cabeça (o que seria o segundo). O critério para escolhê-la é: o que oferece as melhores condições de sair do ponto em que estamos agora e chegar o mais perto possível de onde queremos estar? E para isto ela precisa ao mesmo tempo comunicar-se com os desejos das pessoas e transformá-los em alguma outra coisa, apontar uma nova direção. Ela deve buscar a tensão entre o igual e o diferente, a coerência e a diversidade, mais adequada àquele momento específico.
Ninguém é radical intransitivamente, em termos abstratos. Um radicalismo deste tipo é meramente estético; um fim em si mesmo, a afirmação de um estilo ou identidade. Ser politicamente radical é ser radical em relação a uma situação concreta. Não é marcar uma posição extrema que não se comunica com ninguém. É descobrir qual é a posição mais transformadora capaz de conseguir um máximo de adesão num momento dado.
A relação entre um desejo político e seu resultado é indireta, passa por uma série de mediações: com o desejo dos outros, com as relações de poder, com as instituições. Então o critério para escolher uma palavra de ordem não é “o que eu quero?”, mas “como, nas condições dadas, eu chego mais perto daquilo que eu quero”. Para fazer política, o querer não basta: você precisa calcular as mediações. Alguém me disse: “eu não vou lutar por eleições diretas porque eu votei em Dilma e quero que meu voto seja respeitado”. Ótimo, é seu direito. Mas você precisa entender que, se o que a maioria das pessoas deseja é outra coisa, você está ao mesmo tempo perdendo a oportunidade de compor com elas e se condenando ao isolamento.
Por outro lado, a política é sempre, em última análise, uma questão de relação de forças, de força ou fraqueza relativa. Eleições diretas são bastante improváveis, é verdade. Mas a ideia tem mais de 60% de apoio, e se houver uma mobilização massiva em torno do tema, mesmo que isto não resulte em eleições diretas, o saldo que fica é de deslegitimação ainda maior do novo governo e da classe política. E isto importa muito num momento em que se planeja implementar uma série de medidas regressivas.
Sem falar que, caso tivéssemos uma mobilização como 2013 que se mantivesse por alguns meses, é perfeitamente concebível que o Congresso cedesse. Alguém pode dizer: “mas não está na Constituição!” Mas não passamos por um ano inteiro de improvisos, chicanas, gambiarras? Elas aconteciam por quê? Porque quem as promovia era suficientemente forte para fazê-lo. Havendo uma pressão suficientemente forte, alguém duvida que se faria mais uma?
Dito isto, não acredito que se deva ficar apenas na questão das eleições diretas — e menos ainda só no “Fora Temer”, inclusive porque parte da classe política claramente joga com a hipótese de, conforme as circunstâncias, derrubá-lo para promover eleições indiretas em 2017. Ao invés de partir de ideias abstratas, como “defesa da democracia”, é preciso partir da realidade das pessoas, daquilo que elas estão experimentando: incerteza, má qualidade dos serviços públicos, perda de oportunidades... É preciso dizer: a crise é um problema real, mas a grande questão é quem vai pagar por ela; e a proposta do governo é que seja você. A partir daí é possível usar o mesmo discurso de urgência — “a crise é grave e exige sacrifícios" — mas com sinal invertido. Não apenas resistir às reformas propostas, mas ir construindo um programa alternativo: taxação de grandes fortunas e lucros e dividendos, reforma tributária progressiva, reforma política, desmilitarização da polícia, qualificação dos serviços etc.
É preciso dizer: não são os direitos que não cabem mais no orçamento; são certas desigualdades estruturais que não são mais admissíveis. Não são os mais pobres que devem perder direitos adquiridos; são os mais ricos que precisam perder privilégios. Mais do que nunca, a melhor defesa é o ataque. E em que pese toda a histeria em relação à “ascensão conservadora”, as condições para isto existem — elas estão, sobretudo, na juventude que cresceu nos anos do lulismo. O golpe propriamente dito é justamente uma tentativa de reverter as tendências de empoderamento destas parcelas da população. É com elas que é urgente falar. Mas falar de verdade — o que implica saber escutar.
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A crise e o discurso de urgência com o sinal invertido. Entrevista especial com Rodrigo Nunes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU