24 Abril 2016
"Será o documento pelo qual Francisco será mais lembrado. Ele pode transformar a Igreja se os bispos aplicarem os seus princípios nos cuidados pastorais", destaca o diretor executivo do New Ways Ministry.
Foto: carmelocristoredentor.org.br |
Entretanto, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, DeBernardo destaca que o mesmo documento que traz toda essa potência preserva a fé e os modos de vida da comunidade LGBT ainda no obscurantismo.
Francis DeBernardo tem mestrado em Retórica e Composição pela Universidade de Maryland, Estados Unidos. Atua como diretor executivo do New Ways Ministry, um ministério gay-positivo que atua na defesa e justiça para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros - LGBT católicos.
A entrevista foi publicada por revista IHU On-Line, no. 483, "Amoris Laetitia e a ‘ética do possível’. Limites e possibilidades de um documento sobre ‘a família’, hoje".
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual era sua expectativa quanto ao documento?
Foto: newwaysministryblog.wordpress.com
Francis DeBernardo – Eu esperava que o Papa Francisco afirmasse três itens importantes que surgiram no Sínodo: permitir tomadas de decisão mais locais no que diz respeito ao cuidado pastoral, promover uma linguagem mais pastoral por parte das lideranças da Igreja e chamar para uma Igreja que fosse menos julgadora e mais misericordiosa. Eu também esperava que ele oferecesse uma declaração afirmativa a respeito das pessoas LGBT [1].
IHU On-Line – Quais os pontos que entende como os mais importantes da exortação?
Francis DeBernardo – O primeiro ponto é um chamado para o diálogo com as pessoas que têm pontos de vista diferentes. Ele pediu que as lideranças da Igreja sejam mais autocríticas e abertas a novas ideias e pontos de vista. Isso tem um grande poder para transformar a Igreja.
Despois, destaco o chamado para descentralizar a tomada de decisão pastoral, permitindo que os pastores locais tomem decisões com base na sua cultura e situação locais. Esse princípio vai permitir que os pastores sejam mais atentos ao seu povo e respondam de forma mais eficaz.
O chamado para que os pastores respeitem a consciência das pessoas também é algo importante. Por muito tempo, a nossa Igreja se esqueceu do seu ensino sobre o primado da consciência. Respeitar a consciência é o primeiro passo para permitir um maior desenvolvimento da doutrina.
Entretanto, a ideia de que a ajuda internacional aos países em desenvolvimento é contingente ao fato de eles aceitarem leis de igualdade do casamento é outro ponto importante porque é uma ideia falsa. É terrível que o papa repita essa falsidade no seu documento.
Por fim, também destaco a ideia, também presente no documento, de que as crianças precisam de um pai e de uma mãe para criá-los. Pesquisas mostraram que o gênero das pessoas que cuidam das crianças não é absolutamente importante. O importante é o amor e a preocupação que elas mostram a seus filhos.
IHU On-Line – Quais são os avanços, pontos centrais, que Amoris Laetitia traz?
Francis DeBernardo – O encorajamento à tomada de decisão local em situações de cuidado pastoral é importante. Isso permitirá que os pastores sejam mais eficazes com base na sua compreensão da sua cultura local. Isso elimina a terrível centralização da autoridade que se desenvolveu na Igreja Católica com João Paulo II [2] e Bento XVI [3].
Destaco ainda como avanço a promoção do desenvolvimento da consciência e do respeito da consciência das pessoas. Essas são ideias que estão solidamente dentro da tradição católica, que parecem ter caído no esquecimento nos últimos 40 anos.
Por fim, é importante observar o chamado ao diálogo com aqueles que divergem do ensino da Igreja. É somente por meio do diálogo que o ensino da Igreja pode se desenvolver, dadas as novas realidades e compreensões. O diálogo ajudará a Igreja a viver o Evangelho de forma mais plena no mundo moderno.
“O encorajamento à tomada de decisão local em situações de cuidado pastoral é importante” |
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IHU On-Line – Quais devem ser os impactos do documento sobre o pontificado e sobre a Igreja?
Francis DeBernardo – Esse documento é o mais poderoso que o Papa Francisco já publicou até hoje. Ele tem o potencial de transformar a Igreja. É um radical deslocamento do caráter julgador e punitivo do passado. Será o documento pelo qual Francisco será mais lembrado. Ele pode transformar a Igreja se os bispos aplicarem os seus princípios nos cuidados pastorais. Eu espero e rezo para que eles façam isso, mas não acho que todos vão seguir as diretrizes de Francisco.
IHU On-Line – Quais os limites do documento?
Francis DeBernardo – A dependência na Teologia do Corpo [4] do Papa João Paulo II é uma séria limitação. As ideias presentes nessas palestras não representam entendimentos saudáveis da sexualidade ou do gênero.
A ausência de qualquer declaração positiva sobre pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais é uma séria omissão. Nesse documento, sempre que o papa aborda esses temas, ele o faz de forma negativa. No passado, ele mostrou uma notável abertura a essas questões. Ele deveria ter colocado ao menos uma mensagem afirmativa e acolhedora às pessoas LGBT nesse documento.
IHU On-Line – Em que medida a exortação revela o conhecimento da Igreja sobre as experiências e vidas de fé tanto de membros LGBT da Igreja como de seus apoiadores? Em que medida se aproxima da causa LGBT?
Francis DeBernardo – Infelizmente, no que diz respeito às questões LGBT, o documento se baseia em fórmulas e ideias antigas sobre as pessoas LGBT. As partes do documento que abordam esses tópicos poderiam ter sido escritas por João Paulo II ou por Bento XVI. Francisco não providenciou uma nova abordagem pastoral especificamente para as questões ou as pessoas LGBT. Eu temo que, pelo fato de suas únicas referências a esses tópicos serem negativas, os pastores vão continuar respondendo de forma negativa às pessoas LGBT.
A única afirmação do Papa Francisco que discute o cuidado pastoral às famílias com membros lésbicas e gays está incluída em uma seção intitulada "Iluminar crises, angústias e dificuldades". Tal classificação revela uma suposição de que os temas LGBT são simplesmente problemas a serem superados, e não reconhece o dom e a graça que ocorrem quando uma família aceita e ama seus membros familiares LGBT.
Embora o Papa Francisco repita a doutrina da Igreja que condena a discriminação e a violência contra as pessoas LGBT, o fato de que não haja nenhuma elaboração sobre esse ensino em relação a países que estão criminalizando as minorias sexuais e de gênero torna essas palavras ineficazes. Os dois Sínodos de 2014 e 2015, assim como as amplas consultas entre os leigos que os precederam, serviram como uma pesquisa para esse novo documento papal. Infelizmente, no que diz respeito às questões LGBT, não há nada na Amoris Laetitia que indique o grande apelo por novas abordagens para essas questões que ocorreram durante essas discussões.
IHU On-Line – O que o documento revela sobre as discussões em torno das questões de gênero que se deram ao longo de todo o processo do Sínodo? Houve espaços tanto para perspectivas mais progressistas como também conservadoras?
Francis DeBernardo – O documento revela que o Papa Francisco subscreve uma perspectiva sobre o gênero que foi promovida pelos conservadores antes do Sínodo. Ou seja, a ideia da "ideologia de gênero", um termo em grande parte indefinido, que se opõe a qualquer mudança ao binário restrito macho-fêmea em grande parte das nossas culturas. Como resultado, a discussão sobre as pessoas transexuais é mal informada, mostrando nenhuma consciência sobre os novos avanços psicológicos e biológicos no que diz respeito à compreensão de gênero. O papa se baseia em um modelo estritamente biológico, que não é mais útil nem saudável para muitas pessoas.
IHU On-Line – Que avaliação faz sobre a abordagem que Amoris Laetitia traz acerca da educação sexual?
Francis DeBernardo – Eu não sou um especialista em educação sexual dos jovens, por isso para mim é difícil comentar sobre essa seção. Entretanto, uma coisa que eu acho errada, ao menos na tradução ao inglês [do documento], é que o papa usa o termo "sexo seguro" [safe sex] de uma forma que indica que ele se refere à prevenção da gravidez. Nos Estados Unidos, "sexo seguro" se refere à prevenção da transmissão do HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis. A educação sobre o dano que essas doenças causam e sobre as formas para reduzir a sua transmissão são uma parte importante da educação sexual, assim que o jovem alcança a maturidade sexual. Embora a Igreja possa querer que os jovens se abstenham do comportamento sexual, o fato é que alguns deles vão se envolver na intimidade sexual e devem estar equipados com informações sobre como proteger a sua saúde.
A seção 285, que trata do ensino dos jovens a aceitarem os seus corpos como macho ou fêmea, não é útil para os jovens que estão experimentando a disforia[5] de gênero, o que significa que o seu gênero psicológico interno não coincide com o seu gênero biológico. Assim como em grande parte desse documento, o Papa Francisco poderia ter sido mais útil para a comunidade LGBT ao reconhecer a sua existência, as suas situações únicas, as suas alegrias e lutas, e os seus dons.
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“Embora as uniões homoafetivas não sejam biologicamente procriativas, elas são claramente unitivas” |
IHU On-Line – Em que medida a figura do Papa que diz “quem sou eu para julgar”, sobre alguém que se declara homossexual, aparece no documento? A exortação endossa ou é um passo atrás nos testemunhos que vêm sendo dados por Francisco na relação com a comunidade LGBT e seus simpatizantes?
Francis DeBernardo – Eu diria que o documento é um passo atrás em relação ao Papa Francisco que disse: "Quem sou eu para julgar?". Isso pode soar contraditório, porque o ponto principal do documento é ser misericordioso, não julgador. No entanto, a frase "Quem sou eu para julgar?" sinalizou para uma acolhida às pessoas LGBT, e essa acolhida está claramente ausente nesse texto. Nesse documento, o Papa Francisco ofereceu conforto para os divorciados, para os recasados e para as pessoas que coabitam, mas não ofereceu uma afirmação explícita semelhante para a comunidade LGBT.
IHU On-Line – Como avalia a argumentação de Francisco sobre a união homoafetiva quando, na exortação (AL 251), diz que “não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”?
Francis DeBernardo – É bastante surpreendente e decepcionante que o Papa Francisco faça tal afirmação categórica. Muitos bispos e cardeais, até mesmo autoridades vaticanas, disseram que as uniões homoafetivas estáveis têm alguns elementos positivos para eles.
A teologia católica tradicional diz que o casamento tem tanto um elemento procriativo quanto um elemento unitivo. O elemento unitivo se refere à intimidade emocional que os parceiros compartilham um com o outro. Embora as uniões homoafetivas não sejam biologicamente procriativas, elas são claramente unitivas. Então, é simplesmente errado dizer que elas não são “nem sequer remotamente análogas ao desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”.
Por João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto
Notas:
[1] LGBT (ou ainda LGBTTT): sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Embora refira apenas seis, é utilizado para identificar todas as orientações sexuais minoritárias e manifestações de identidades de gênero divergentes do sexo designado no nascimento. (Nota da IHU On-Line)
[2] Papa João Paulo II (1920-2005): Sumo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana e soberano da Cidade do Vaticano de 16 de Outubro de 1978 até sua morte. Teve o terceiro maior pontificado documentado da história, reinando por 26 anos, depois dos papas São Pedro, que reinou por cerca de trinta e sete anos, e Pio IX, que reinou por trinta e um anos. Foi o único Papa eslavo e polaco até a sua morte, e o primeiro Papa não italiano desde o neerlandês Papa Adriano VI em 1522. João Paulo II foi aclamado como um dos líderes mais influentes do século XX. Com um pontificado de perfil conservador e centralizador, teve papel fundamental para o fim do comunismo na Polónia e talvez em toda a Europa, bem como significante na melhora das relações da Igreja Católica com o judaísmo, Islã, Igreja Ortodoxa, religiões orientais e a Comunhão Anglicana. (Nota da IHU On-Line)
[3] Bento XVI, nascido Joseph Aloisius Ratzinger (1927): foi papa da Igreja Católica e bispo de Roma de 19 de abril de 2005 a 28 de fevereiro de 2013, quando oficializou sua abdicação. Desde sua renúncia é Bispo emérito da Diocese de Roma, foi eleito, no conclave de 2005, o 265º Papa, com a idade de 78 anos e três dias, sendo o sucessor de João Paulo II e sendo sucedido por Francisco. (Nota da IHU On-Line
[4] Teologia do Corpo: comporta o pensamento que o Papa João Paulo II desenvolveu nas Audiências de Quarta-feira de 5 de Setembro de 1979 a 28 de Novembro de 1984, com algumas interrupções. Estas catequeses se dividem em quatro ciclos, em que o Papa desenvolveu vários temas, começando pela exegese dos primeiros capítulos do livro do Gênesis, terminando na análise da Humanae Vitae de Paulo VI, passando por análises psicológicas, sobre a corporeidade do Homem, sobre o matrimônio e a eminente racionalidade da pessoa. (Nota da IHU On-Line)
[5] Disforia: estado caracterizado por ansiedade, depressão e inquietude (Nota da IHU On-Line)
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Amoris Laetitia. Potência transformadora e conservadorismo num mesmo ato. Entrevista especial com Francis DeBernardo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU