27 Junho 2015
"O próprio título da Encíclica, que nos convoca a um louvor universal mediante o cuidado com a casa comum, me lembra Teilhard de Chardin", diz a pesquisadora.
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Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Deborah Terezinha de Paula, professora e doutora pela Universidade Federal de Juiz de Fora, revela que o pensamento do místico aparece não só nas citações diretas. É como se estivesse nas entrelinhas. “Quando o Papa destaca a presença de Deus nos elementos da natureza, tem-se a impressão de estar ouvindo o próprio Teilhard”, destaca.
Deborah recupera o pensamento do jesuíta que andou entre os mundos da ciência e da religião, ao afirmar que “para este místico, o cosmo é a casa de Deus, um lugar desejado pelo Criador para sua morada e abrigo de suas criaturas. Esse cosmo, atraído por Cristo, caminha para sua plenitude, que é, nesse sentido, realização da harmonia entre mundo, homem e Deus”.
Num período em que a ideia era colocar o homem como o ser para o qual Deus criou o mundo, e o qual dominava esse mundo e o tinha a seu serviço, o religioso desloca o pensamento propondo uma ideia de integração total, cósmica. Conceito muito próximo ao de ecologia integral, posto por Francisco na Encíclica. “Quando nos damos conta da ligação que nos une a tudo quanto existe, quando cresce em nós aquilo que o místico francês definiria como senso cósmico, chegamos à percepção de nossa natureza molecular. Deixamos então de ser indivíduos fechados e passamos a ser parte. Nada mais importante para o progresso do mundo que esse sentimento de ser parte, portanto, corresponsável”, completa a professora.
No decorrer da entrevista, Deborah aprofunda pontos da Laudato Si’ em que aparece a inspiração em Chardin, bem como seus conceitos de Deus e da criação. A professora ainda analisa as similaridades entre Francisco de Assis e o padre jesuíta no que diz respeito à sua relação, à conexão com a Terra e com tudo nela presente. “Teilhard e Franscisco de Assis se deixaram mover pelo encanto e pela maravilha, souberam reconhecer na natureza a revelação de Deus, e nisso nada há de ingenuidade”, pontua.
Deborah Terezinha de Paula é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É especialista em Ciência da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR/UFJF) e mestre em Ciência da Religião pelo mesmo programa. Deborah defendeu neste ano a tese de doutorado, no PPCIR/UFJF, intitulada “Diafania de Deus no coração da matéria: a mística de Teilhard de Chardin”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que medida a visão cosmológica e cristológica de Teilhard de Chardin [1] se apresenta na Encíclica Laudato Si’[2], do Papa Francisco?
Foto: diariopopular.com.ar
Deborah Terezinha de Paula - O próprio título da Encíclica, que nos convoca a um louvor universal mediante o cuidado com a casa comum, me lembra Teilhard de Chardin. Para este místico, o cosmo é a casa de Deus, um lugar desejado pelo Criador para sua morada e abrigo de suas criaturas. Esse cosmo, atraído por Cristo, caminha para sua plenitude, que é, nesse sentido, realização da harmonia entre mundo, homem e Deus. Essa harmonia, antes realizada em Cristo, é a meta para a qual agora todos nós somos chamados. Daí a necessidade de uma reconciliação dos seres entre si e com o ambiente.
O Cristo Universal de Teilhard não é um novo Cristo, mas o mesmo Cristo da fé evangélica. É o homem nascido de mulher, menino nascido em Belém, Deus que pela Encarnação assumiu o mundo material para elevá-lo consigo. É o jovem que desafiou o poder em defesa dos mais fracos, pagando com a própria vida o preço por sua ousadia. É aquele que pela Ressurreição habita e ilumina agora todo ser, é o Cristo que, tendo passado pelo mundo, agora habita o cosmo, convocando todos nós a uma conversão de amor.
IHU On-Line - Quais são os sinais do legado de Chardin nesse documento?
Deborah Terezinha de Paula - Diretamente no parágafo 83 da Laudato Si’, o Papa Francisco cita Teilhard (em nota) para falar da maturação universal, do caminho percorrido pelo universo para atingir sua plenitude em Deus. Meta já alcançada por Cristo ressuscitado que é, como bem diz São Paulo, tudo em todos. Mas há outros pontos que eu gostaria de destacar. Quando fala no dever humano de colaborar com o Criador na obra da Criação (LS 14, 124ss), o Papa certamente retoma Teilhard, que diversas vezes falou desse dever, que ele entende como um dever sagrado. Quando nos damos conta da ligação que nos une a tudo quanto existe, enfim, quando cresce em nós aquilo que o místico francês definiria como senso cósmico, chegamos pois à percepção de nossa natureza molecular. Deixamos então de ser indivíduos fechados e passamos a ser parte [3]. Nada mais importante para o progresso do mundo que esse sentimento de ser parte, portanto, corresponsável.
"O Deus de Teilhard é o Cristo Universal, aquele cuja epifania se deu outrora nas terras da Palestina e cuja diafania agora se dá no coração da matéria" |
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Quando o indivíduo tem consciência de ser parte de um grupo, ele luta e trabalha para a sobrevivência desse grupo. Ele se sente forte e fortalecido em meio aos seus pares. Seu impulso primeiro não é de dominar, nem submeter, mas de associar-se aos demais para o crescimento do todo. Parece-me que esse é o tom dominante da Encíclica, um convite a assumirmos nosso posto de colaboradores, nosso lugar de “prolongamento da ação criadora de Deus” [4]. Quando criticava as doutrinas de isolamento e separação tão difundidas na Europa de seu tempo, Teilhard dissera: “Falso e antinatural, o ideal egocêntrico de um futuro reservado àqueles que souberem chegar egoisticamente ao extremo do 'cada um para si'. Nenhum elemento consegue mover-se nem crescer senão com e por todos os outros, ao mesmo tempo. Falso e antinatural, o ideal racista de um ramo que capte para ele só toda a seiva da Árvore e que se erga sobre a morte dos outros ramos. Para poder romper até ao Sol, é preciso nada menos que o crescimento combinado da ramada inteira. A Saída do Mundo, as portas do Futuro, a entrada no Super-Humano, não se abrem para alguns privilegiados apenas, nem a um só povo eleito entre todos os povos! Elas não cederão senão a um empurrão de todos juntos, numa direção em que todos juntos se podem reunir e completar numa renovação espiritual da Terra” [5].
Também em outros pontos o Papa fala dessa inter-relação (LS 70) ou interligação (LS 138 ss) que é, antes de tudo, um desafio como tão bem sublinhara Teilhard. Numa estrada cada pedra tem sua forma particular, num corpo cada célula tem sua atividade e movimento próprios, mas nenhuma pedra se equilibra sem a estrada, nenhuma célula vive fora do corpo que, por sua vez, adoece quando uma célula para. Se a sobrevivência da casa comum depende de nós, também nós dependemos dela. Franscisco fala ainda da criação como dom e decisão amorosa de Deus (LS 77). No meu trabalho sobre Teilhard, disse e aqui repito: para o místico jesuíta o fundamento e sustentáculo da mística cósmica é o amor. Deus não criou o universo arbitrariamente, mas amorosamente. O amor é o sentimento que une os seres ao redor da mesma mesa na partilha do pão e do vinho. É o amor que inspira no homem um desejo quase apaixonado de estar com o outro, de cuidar do outro e de ser cuidado por ele e, sobretudo, de se juntar ao outro na grande e incansável tarefa de cuidar da terra, essa casa comum que a todos abriga. O amor é, pois, o próprio Deus habitando o coração humano e o cosmos. Quando se tem consciência desse fato, torna-se impossível não amar o outro. O amor sensibiliza o homem, ou seja, torna seus sentidos mais atentos para captar a música dos ventos e o perfume das flores. Ensina-o a respeitar e admirar todos os seres que com ele habitam a mesma casa comum. Trata-se, como diria o jesuíta, de uma afeição ou simpatia dirigida a todo o universo no qual se habita e do qual se é parte.
No parágrafo 84, quando o Papa destaca a presença de Deus nos elementos da natureza, tem-se a impressão de estar ouvindo o próprio Teilhard para quem até mesmo a dor é carícia de Deus. Presente também na carta encíclica e no pensamento teilhardiano é a ideia de Deus, ao mesmo tempo como proximidade e distância, imanência e transcendência (LS 88). Se tudo revela Deus, nada o revela em sua plenitude, tal como o Sol num espelho quebrado. Em cada pedaço de espelho a imagem do Sol, mas em nenhum deles, nem mesmo em todos juntos, o Sol na sua totalidade.
"A conversão ecológica deve ser compreendida como um converter-se ao amor que supõe disposição para o trabalho em defesa da vida" |
IHU On-Line - Em que aspectos a abordagem teológica da evolução de Chardin está contemplada nesta Encíclica?
Deborah Terezinha de Paula - Teilhard assume a evolução como pano de fundo de sua explicação de mundo. Em Comment je crois, ele sintetiza seu credo da seguinte maneira: “Eu creio que o Universo é uma Evolução. Eu creio que a Evolução ruma para o Espírito. Eu creio que o Espírito se completa no Pessoal. Eu creio que o Pessoal supremo é o Cristo Universal” [6]. Trata-se, pois, de uma síntese elaborada em si mesmo entre os dados da fé e os dados da ciência à qual ele se ligava através de sua carreira de paleontólogo. Mais do que na evolução, o jesuíta fala de uma evolução que caminha para o Espírito e se completa no Cristo Universal, Cristo ressuscitado que abraça o cosmo todo inteiro numa perfeita harmonia.
Sacerdote e cientista, Teilhard compreendeu a Criação como realidade não pontual, mas contínua, ato a se desenvolver no tempo e na história. Consequentemente sua imagem de Deus deixou de ser a imagem de um Deus soberano que, tendo criado o mundo, o abandonou à própria sorte e passou a ser a imagem de um Deus amoroso envolvido sempre na obra de suas mãos. Também o Papa Francisco traz na Encíclica a ideia da presença amorosa de Deus “no mais íntimo de cada coisa”, presença que orienta os caminhos do mundo. Assim diz ele: “Esta presença divina, que garante a permanência e o desenvolvimento de cada ser, ‘é a continuação da ação criadora de Deus’” (LS, 80). Portanto, para o Papa e para o místico francês, ambos saídos das fileiras da Companhia de Jesus, a evolução é criação que segue sendo ato de um Deus que em sua plenitude é amor envolvente, é cuidado.
Por amar apaixonadamente o mundo, Deus quis estar no mundo como um jardineiro que permanece em seu jardim para cada dia torná-lo mais belo. Ainda nesse mesmo parágrafo da Encíclica (LS, 80), o Papa Francisco destaca a infinita misericórdia de Deus que, desejando contar com a colaboração humana na obra criadora, “é capaz de tirar algo de bom dos males que praticamos”. Nem Teilhard nem Franscisco desejam justificar o mal, mas ambos são capazes de transfigurá-lo a partir da fé. Num mundo que evolui, numa Criação que segue sendo, a presença da dor às vezes é inevitável, é sinal do parto que traz à luz um novo ser.
IHU On-Line - No que consiste a visão ecocosmocêntrica de Chardin e em que medida ela inspira um repensar a relação da humanidade com a natureza e a criação?
Deborah Terezinha de Paula - A mística cósmica teilhardiana é, como já o dissemos, mística do amor que se expressa no cuidado, na sensibilidade, na atenção, no respeito, numa “[...] simpatia por tudo aquilo que se move na matéria” [7]. É consciência de que na Terra, casa comum, os seres mergulham num Todo, ou mais que isso, que unidos a todos os outros, são o próprio Todo. Para o místico francês o Criador é encontrado na Criação e em cada uma de suas criaturas. Todas elas devem, portanto, ser cuidadas, protegidas, enfim, amadas. Essa visada inspira, certamente, um repensar a relação da humanidade com a natureza e com a criação porque supõe um novo olhar sobre a Terra, mãe que acolhe, útero que abriga e nos faz irmãos.
Interessante lembrar que na cosmovisão teilhardiana o homem não é considerado centro, mas flecha da evolução. Daí a relação pensada por ele entre homem e natureza em termos de interação e não de dominação. Entendido como flecha, o homem deixa de ser o senhor arbitrário da história para se tornar antes um seu construtor. Prolongando, através de suas obras, o ato criador de Deus, o homem conduz a Criação sem submetê-la; guarda-a e protege-a, tal como nos lembra o Papa Francisco sobre os ensinamentos do livro do Gênesis. Todos têm direito de usufruir da Terra para sua sobrevivência, da mesma forma todos têm o dever de protegê-la para “garantir a continuidade de sua fertilidade para as gerações futuras” (LS 67).
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"Para o Papa e para o místico francês, a evolução é criação que segue sendo ato de um Deus que em sua plenitude é amor envolvente, é cuidado" |
IHU On-Line - Sob quais aspectos comungar com Deus pela Terra é uma das exortações da Laudato Si’?
Deborah Terezinha de Paula - Entre uma comunhão com Deus e uma comunhão com a Terra, Teilhard propõe uma terceira via, a saber, a comunhão com Deus pela Terra. Importante lembrar que o pensador francês vivia num tempo marcado por uma proposta de ascese que tendia ao abandono do mundo, como se este fosse o oposto de Deus. Acreditava-se (e professava-se) que para chegar ao Céu era preciso desligar-se da Terra. É contra essa dualidade que ele vai lutar. Tanto que na sua obra maior de espiritualidade ele afirma: “O desprendimento cristão se prega ou se compreende, todavia, demasiadas vezes, como uma disposição de menosprezo, de indiferença ou de desconfiança ante as realidades terrestres. O Mundo presente não é mais que barro ou cinza: quanto menos se toca nele, mais santo se é... A esta doutrina negativa de renúncia por abstenção deve-se propor a noção positiva de renúncia 'por entrega ao que é maior que si mesmo'. Não; o contato com a Matéria, por si mesmo, não mancha a alma ou a entorpece, pelo contrário, a nutre e a eleva. O cristão pode ter sido considerado durante muito tempo como aquele que professava o desdém do transitório.
Pois bem, o que de agora em diante deve servir para distingui-lo é uma entrega sem igual de todo seu ser ao poder criador que constrói o Mundo, e inclusive em suas esferas materiais e sensíveis — em suma, um fervor excepcional pela criação. Desprender-se do Mundo pode ter significado, em outro tempo, abandonar o Mundo. Esta palavra desejará dizer, de agora em diante, atravessar o Mundo, quer dizer, alcançar, utilizar e desenvolver (mediante um esforço sustentado em todos os terrenos, inclusive naqueles considerados, muito erroneamente como 'profanos') o que no Universo é sempre mais alto, mais longe e maior” [8].
O cristão, diria Teilhard, justamente por ser cristão, deve, a exemplo de seu mestre, adentrar o mundo, deve empregar toda as suas forças e toda a sua astúcia para torná-lo sempre mais belo, em outros termos, para salvá-lo. Cristo não teve medo do mundo, pelo contrário, banhou-se em suas águas, mergulhou nelas para torná-las, como ele, divinas. Desprender-se do mundo não quer dizer abandoná-lo, mas atravessá-lo fazendo-o cada vez mais santo.
A recomendação de um trabalho no mundo a favor de seu progresso e desenvolvimento, tantas vezes feita pelo místico jesuíta, não quer dizer concordância com as formas degradantes de exploração da terra pelo homem e do homem pelo homem. A injustiça e a opressão, assim como o mal em todas as suas formas, não são, de modo algum, desejados por Deus e isso o jesuíta afirmou com firmeza. As considerações do Papa sobre a necessidade de defender o trabalho se aproximam bastante do pensamento teilhardiano acerca de uma comunhão com Deus pela Terra que promova a vida e rechace as muitas formas de morte, embora, e é preciso reconhecer, o pontífice amplie a discussão trazendo outros aspectos de um modelo de produção que tem favorecido a exclusão e a injustiça.
IHU On-Line - Como a conexão entre o jesuíta cientista e o místico profeta tensiona uma concepção que foi erroneamente compreendida como panteísta [9]?
Deborah Terezinha de Paula - Teilhard de Chardin foi antes de tudo um grande apaixonado por Deus e pelo mundo e esses dois amores o levaram à conciliação do que antes ele harmonizara em si mesmo, a saber, a vocação científica e religiosa. Peregrino entre dois mundos aparentemente contraditórios, seu desejo foi ser um apóstolo de Deus no mundo, um evangelista do Cristo no universo. Sua busca o levou à compreensão de que a Divindade buscada primeiro no ferro e depois entre as pedras não pode ser encontrada aqui ou ali, mas é universal Presença espalhada por toda parte. Essa singular capacidade de ver Deus em todas as coisas, esse profundo acolhimento da espiritualidade paulina do Deus tudo em todos, acabou fazendo com que a mística teilhardiana fosse erroneamente associada às místicas panteístas pelas quais o próprio Teilhard se diz seduzido.
Em seu processo de evolução interior ele se sentiu tentado pelo panteísmo e, homem da harmonia por excelência, trabalhou arduamente no sentido de refutá-lo e ao mesmo tempo integrá-lo à sua visão de mundo. Em sua autobiografia ele fala do risco por ele enfrentado não do panteísmo, mas da perda em “[...] uma forma inferior (a forma banal e fácil) do Espírito panteísta: o panteísmo de efusão e de dissolução. [...]. Para ser tudo me fundir com tudo” [10]. Esse tipo de panteísmo é rejeitado pelo místico que, captando Deus no mundo, não identifica Deus e mundo. Enquanto o panteísmo seduz pela ideia de uma união perfeita onde as diferenças seriam anuladas, na mística teilhardiana as diferenças são valorizadas. O Criador, tal como pensado pelo jesuíta, abraça as criaturas, mas seu abraço não as absorve em si. A verdadeira união não faz perder a personalidade. É necessário unir-se a um outro sem deixar de ser o que se é. E, na verdade, explica o religioso do Auvergne [11], esta é a aspiração de toda mística: “[...] unir-se (isto é, tornar-se o Outro), permanecendo si-mesmo” [12], aspiração que, no entendimento de Teilhard, só o cristianismo salva através da pessoa de Cristo, o humano-divino que sem deixar de ser Deus é homem e sem deixar de ser homem é Deus.
IHU On-Line - Tendo no horizonte a obra desse jesuíta, como podemos compreender a 'conversão ecológica'? Isso se faz presente na Laudato Si’?
Deborah Terezinha de Paula - A espiritualidade de Teilhard de Chardin é fundada no amor ao Criador presente na Criação. Ele ama as coisas pela presença de Deus nelas. Em tudo o que existe no mundo, em cada ser que habita e enfeita o cosmo, o Divino se faz presente e nos abraça. Também nós somos habitados por essa Universal Presença que nos convida à união de forças para o estabelecimento do Meio Divino. Nessa concepção, a conversão ecológica deve ser compreendida como um converter-se ao amor que supõe disposição para o trabalho em defesa da vida. Nossas mãos devem se juntar às mãos d'Aquele que tudo criou para que a vida aconteça. Não se trata, pois, de simples consciência ou virtude ecológica, mas de um deixar-se guiar pelo mesmo amor apaixonado pelo Universo que inspirou Teilhard. É o mesmo apelo de Francisco na Encíclica quando este lembra, por exemplo, que a natureza, além de manifestar Deus, é lugar de sua presença (LS 88), ou quando fala na comunhão universal “que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (LS 89).
"Teilhard compreendeu a Criação como realidade não pontual, mas contínua, ato a se desenvolver no tempo e na história" |
O Papa também convoca-nos para o exercício do amor à Terra e a tudo que nela habita, lembrando que a verdadeira cultura ecológica “[...] não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo” (LS 111), mas requer um novo olhar, uma nova postura, uma espiritualidade capaz de “[...] alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo” (LS 216). A conversão ecológica requer conversão interior (LS 217), mudança de coração (LS 218), disponibilidade de reconhecer os próprios erros. E não basta que essa conversão ocorra só em nível individual, embora ela seja muito importante nesse nível. Os problemas que enfrentamos são muito complexos para que indivíduos isolados sejam capazes de resolvê-los. É necessário, pois, uma conversão comunitária, uma socialização, ou em termos teilhardianos, uma profunda e verdadeira amorização do mundo que impulsione atitudes de generosidade e ternura para com o universo e todos os seres que nele habitam.
IHU On-Line - Que aproximações podem ser estabelecidas entre a experiência mística e cosmológica de Francisco de Assis e Teilhard de Chardin?
Deborah Terezinha de Paula - Confesso que não conheço a fundo o pensamento de Francisco de Assis para adentrar em pormenores dos quais eu não daria conta. O Papa, na Encíclica, cita-o como alguém cheio de amor pela Criação e pelas criaturas, homem marcado pela simplicidade e pela doçura, capaz de amar fraternalmente até mesmo o que parecia desprezível. Também Teilhard foi assim, um místico apaixonado pelo Todo, homem capaz de descobrir até mesmo na Guerra o dedo de Deus. E em ambos, não se trata de romantismo irracional, mas de adesão comprometida.
Teilhard e Francisco de Assis se deixaram mover pelo encanto e pela maravilha, souberam reconhecer na natureza a revelação de Deus, e nisso nada há de ingenuidade. Trata-se de uma decisão de vida que transforma tudo, pois implica o reconhecimento de uma verdadeira comunhão universal. Marcante também nesses dois homens é a capacidade de compreender o mundo como “[...] algo mais que um problema a resolver; um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor” (LS 12). Essa disposição demonstra, por parte de ambos, uma singular disponibilidade para olhar positiva e amorosamente o mundo e todos os seres que nele estabeleceram sua morada.
IHU On-Line - Em que medida a manifestação da graça é importante para uma compreensão da vida em sua totalidade e complexidade?
Deborah Terezinha de Paula - Na esteira de Teilhard eu diria que a graça não altera a essência das coisas, mas capacita o olhar e ativa os sentidos, possibilitando-nos o acesso ao mistério maior que é a vida. Clarice Lispector [13] quando fala do estado de graça descreve-o como um estado de leve lucidez, uma lucidez de quem já não se esforça, apenas sabe [14], um estado que vai e vem, porque se permanecesse para sempre nos faria cegos. As ciências empíricas, diz o Papa Francisco, não conseguem explicar completamente a existência, a essência das criaturas e o conjunto da realidade (LS 199). Só o ser visitado pela graça é capaz de captar o que Deus revela continuamente através da sua Criação, só ele é capaz de dar conta da imensa simplicidade das coisas.
IHU On-Line - Em que sentido a diafania de Deus no coração da matéria se mostra na mística de Chardin?
Deborah Terezinha de Paula - Este é o título de minha tese, um aspecto apaixonante (pelo menos para mim) das reflexões desse místico que é hoje um dos pensadores mais lidos no mundo. Ao fim de sua vida, quando conversava com um amigo nas ruas tumultuadas e barulhentas de Nova Iorque, Teilhard teria dito uma frase que bem resume sua existência: “Hoje eu posso te dizer que vivo constantemente na presença de Deus” [15]. Tendo buscado o Absoluto incessantemente desde a infância, ele foi aos poucos se dando conta de que a Divindade antes procurada entre as pedras não está nem aqui, nem ali, mas é Divina fragrância a nos cercar por todos os lados. Certamente o jesuíta francês foi um homem, como todos os outros, abraçado pela graça. Só que, à diferença de tantos, ele soube reconhecer esse Sorriso Universal em sua vida.
"Se a sobrevivência da casa comum depende de nós, também nós dependemos dela" |
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Peregrino entre dois mundos — ciência e religião — ele se deixou banhar por essas duas influências aparentemente contraditórias e sua obra, fruto da experiência, é a síntese entre essas duas vias. Apaixonado desde cedo pelo mundo e por Deus, ele não quis sacrificar nenhum de seus dois amores. Seus 74 anos de vida foram dedicados à superação ou conciliação dos dualismos radicais. Ele lutou contra a tentação comum em seu tempo de uma espiritualidade desencarnada, de um amor a Deus que levasse ao menosprezo da matéria. Ao refletir sobre a questão da imanência e transcendência de Deus ele propõe, como uma espécie de terceira via, a noção de transparência. Nem um Deus que é só imanente, nem um Deus que é só transcendente, mas antes, um Deus que é ao mesmo tempo imanente e transcendente, um Deus que é transparente, que está no mundo sem se deixar aprisionar no mundo, um Deus, por isso mesmo que é Eterna Descoberta e Eterno Encantamento. Um Deus que, por sua Encarnação adentrou o mundo e por sua Ressurreição abraçou o universo todo inteiro. O Deus de Teilhard é o Cristo Universal, aquele cuja epifania se deu outrora nas terras da Palestina e cuja diafania agora se dá no coração da matéria, um rosto que não se esconde no invisível, mas se dá a conhecer naquilo que se pode ver e sentir. A mística de Teilhard é, nesse sentido, mística da escuta e da atenção, mística do cuidado, mística da sensibilidade e do respeito, mística do amor que faz Deus transparecer em todas as coisas.
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Deborah Terezinha de Paula - Teilhard, durante sua vida, foi impedido de publicar porque suas ideias foram consideradas ousadas demais. Ele sofreu com isso, mas nunca perdeu a confiança, sempre afirmando que se seus escritos fossem de Deus passariam e se não fossem de Deus era melhor esquecê-los. Eles passaram e hoje ganham voz e vez no próprio ambiente que tentou silenciá-lo. Sinal de novos tempos, de uma Igreja capaz de se deixar vivificar pelo Espírito que sopra onde quer.
Já antes da Laudato Si’, dois pontífices haviam retomado Teilhard: João Paulo II e Bento XVI, mas nenhum deles numa encíclica e de forma tão contundente. Se houve uma única referência direta ao Padre Teilhard, eu diria que a carta está toda impregnada por seu pensamento. Gostaria ainda de acrescentar que a proposta de ecologia global apresentada pela Encíclica é mais ampla do que as reflexões empreendidas pelo místico do Auvergne. O Papa traz para a discussão problemas que não foram enfrentados por Teilhard, como os desafios que têm surgido a partir da inovação biológica. Os tempos são outros, as questões se ampliaram. Mas tanto Chardin quanto Francisco carregam em si uma faísca que deve nos incendiar a todos: a faísca do amor, de um amor que nos capacita a ver sempre o lado bom da vida e que nos presenteia com uma capacidade especial de encantamento e ternura frente ao mundo.
Por Márcia Junges e João Vitor Santos
Notas:
[1] Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955): paleontólogo, teólogo, filósofo e jesuíta que rompeu fronteiras entre a ciência e a fé com sua teoria evolucionista. O cinquentenário de sua morte foi lembrado no Simpósio Internacional Terra Habitável: um desafio para a humanidade, promovido pelo IHU em 2005. Sobre ele, leia a edição 140 da IHU On-Line, de 09-05-2005, Teilhard de Chardin: cientista e místico, disponível aqui. Veja também a edição 304, de 17-08-2009, O futuro que advém. A evolução e a fé cristã segundo Teilhard de Chardin, aqui. Confira, ainda, as entrevistas Chardin revela a cumplicidade entre o espírito e a matéria, na edição 135, de 05-05-2005, aqui e Teilhard de Chardin, Saint-Exupéry, publicada na edição 142, de 23-05-2005, aqui, ambas com Waldecy Tenório. Na edição 143, de 30-05-2005, George Coyne concedeu a entrevista Teilhard e a teoria da evolução, disponível para download aqui. Leia também a edição 45 edição do Cadernos IHU ideias A realidade quântica como base da visão de Teilhard de Chardin e uma nova concepção da evolução biológica, disponível aqui; a edição 78 do Cadernos de Teologia Pública, As implicações da evolução científica para a semântica da fé cristã, disponível aqui; e a edição 22 do Cadernos de Teologia Pública, Terra Habitável: um desafio para a teologia e a espiritualidade cristãs, disponível aqui. (Nota da IHU On-Line)
[2] Laudato si' (português: Louvado sejas; subtítulo: "Sobre o Cuidado da Casa Comum"): encíclica do Papa Francisco, na qual critica o consumismo e o desenvolvimento irresponsável e faz um apelo à mudança e à unificação global das ações para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas. Publicada oficialmente em 18 de junho de 2015, mediante grande interesse das comunidades religiosas, ambientais e científicas internacionais, dos líderes empresariais e dos meios de comunicação social, o documento é a segunda encíclica publicada por Francisco. A primeira foi Lumen fidei em 2013. No entanto, Lumen fidei é na sua maioria um trabalho de Bento XVI. Por isso Laudato Si’ é vista como a primeira encíclica inteiramente da responsabilidade de Francisco. (Nota da IHU On-Line)
[3] TEILHARD DE CHARDIN, Pierre. L'Énergie Humaine. Paris: Éditions du Seuil, 1962. (Nota da entrevistada)
[4] Id. Le Milieu Divin: essai de vie intérieure. Paris: Éditions du Seuil, 1957. (Nota da entrevistada)
[5] Id. O Fenômeno Humano. Porto: Tavares Martins, 1970. (Nota da entrevistada)
[6] Id. Comment je crois. Paris: Éditions de Seuil, 1969. (Nota da entrevistada)
[7] Id. Hymne de l'Univers. Paris: Éditions du Seuil, 1961. (Nota da entrevistada)
[8] Id. Las direcciones del porvenir. Madrid: Taurus, 1974. (Nota da entrevistada)
[9] Panteísmo: crença de que absolutamente tudo e todos compõem um Deus abrangente, e imanente, ou que o Universo (ou a Natureza) e Deus são idênticos. Sendo assim, os adeptos dessa posição não acreditam num deus pessoal, antropomórfico ou criador. A palavra é derivada do grego pan (que significa "tudo") e theos (que significa "deus"). Embora existam divergências dentro do panteísmo, as ideias centrais dizem que Deus é encontrado em todo o cosmos como uma unidade abrangente. O panteísmo foi popularizado na era moderna tanto como uma teologia quanto uma filosofia baseada na obra de Bento de Espinosa, que escreveu o tratado Ética, uma resposta à teoria famosa de Descartes sobre a dualidade do corpo e do espírito. Espinosa declarou que ambos eram a mesma coisa, e este monismo terminou sendo uma qualidade fundamental de sua filosofia. Ele usava a palavra "Deus" para descrever a unidade de qualquer substância. Embora o termo "panteísmo" não tivesse sido inventado durante seu tempo de vida, hoje Espinosa é considerado como um dos mais célebres defensores da crença. (Nota da IHU On-Line)
[10] Id. Le Coeur de la Matière. Paris: Éditions du Seuil, 1976. (Nota da entrevistada)
[11] Auvérnia (ou, mais raramente, Arvénia, em francês: Auvergne) : é uma das 26 regiões administrativas da França. Auvérnia tem quatro departamentos: Allier, Cantal, Haute-Loire e Puy-de-Dôme. (Nota da IHU On-Line)
[12] Id. Le Milieu Divin: essai de vie intérieure. Paris: Éditions du Seuil, 1957. (Nota da entrevistada)
[13] Clarice Lispector (1920-1977): escritora nascida na Ucrânia. De família judaica, emigrou para o Brasil quando tinha apenas dois meses de idade. Começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade de Recife. Em 1944 publicou seu primeiro romance, Perto do coração selvagem. A literatura brasileira era nesta altura dominada por uma tendência essencialmente regionalista, com personagens contando a difícil realidade social do país na época. Lispector surpreendeu a crítica com seu romance, quer pela problemática de caráter existencial, completamente inovadora, quer pelo estilo solto elíptico e fragmentário, reminiscente de James Joyce e Virginia Woolf, ainda mais revolucionário. Seu romance mais famoso, embora menos característico, quer pela temática, quer estilisticamente, é A hora da estrela, o último publicado antes de sua morte. Este livro conta a vida de Macabéa, uma nordestina criada no estado Alagoas que vai morar no Rio de Janeiro, e vai morar em uma pensão, tendo sua vida descrita por um escritor fictício chamado Rodrigo S.M. Sobre a autora, confira a edição 228 da IHU On-Line, de 16-07-2008, intitulada Clarice Lispector. Uma pomba na busca eterna pelo ninho, disponível para download aqui. (Nota da IHU On-Line)
[14] LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. (Nota da entrevistada)
[15] LEROY, Pierre. Lettres familières de Pierre Teilhard de Chardin mon ami: les dernières années 1948-1955. Paris: Le Centurion, 1976. (Nota da entrevistada)
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Laudato Si’: um texto impregnado de Teilhard de Chardin. Entrevista especial com Deborah Terezinha de Paula - Instituto Humanitas Unisinos - IHU