Por: André | 19 Junho 2015
A Laudato Si’ do Papa Francisco não é somente uma Encíclica ecológica. Seguindo o “fio verde” da questão ambiental até seus labirintos mais capilares, o Bispo de Roma traça uma crítica global sobre o sistema de desenvolvimento que engloba a humanidade e o mundo e que parece empurrá-los para o beco sem saída da auto-aniquilação. A urgência ecológica é o rosto contemporâneo da questão social. O receptáculo no qual se encontra o rastro de todas as infecções que atormentam os povos e as nações, as gerações e os continentes.
A reportagem é de Gianni Valente e publicada por Vatican Insider, 17-06-2015. A tradução é de André Langer.
Apologia do pensamento crítico
Nas mais de 200 páginas do texto papal, viajamos também entre algas e aquíferos contaminados, entre recifes de corais e invasivos aparelhos de ar condicionado. Mas o ponto fundamental da mensagem é a constatação objetiva da insustentabilidade do modelo de gestão imposto no mundo pela globalização neomercantilista. O Papa Francisco documentou que “para além de qualquer previsão catastrófica, o certo é que o atual sistema mundial é insustentável desde diversos pontos de vista”.
Ao fazê-lo, indica e descreve as conexões, muitas vezes ocultadas, que relacionam as crises financeiras com as migrações bíblicas de povos inteiros, as convulsões geopolíticas e as guerras mundiais “em capítulos” desencadeadas pelo controle das fontes de energia, porque os “problemas do mundo não podem ser analisados nem explicados de forma isolada”. Suas considerações, mais do que descrever cenários futuristas, são, em muitos casos, a descrição de um futuro que já começou. Como quando expressa a fácil previsão de que “diante do esgotamento de alguns recursos”, vai se criando “um cenário favorável para novas guerras, mascaradas com nobres reivindicações”.
Cobiça “tecnocrática”
A devastação da Criação, disse o Papa, tem sua origem na pulsão acumuladora que acompanha a condição humana marcada pelo pecado original, que condiciona inclusive os mecanismos convulsivos da globalização do mercado. O Bispo de Roma descreve todas as manifestações de tais reflexos condicionados, que confluem na ruína global, das lutas das multinacionais pelo controle das fontes de água potável, por exemplo, ou pela pesca que depreda seletivamente espécies marinhas de acordo com o seu preço no mercado.
No desastre ambiental que paira sobre o mundo, a febre cega que corrompe todo o sistema chega a um ponto de ruptura que é evidente para todos, porque todos – apesar da distorção da realidade feita mediante a manipulação da informação de acordo com os interesses de blocos de poder econômico financeiro – podem perceber em carne e osso os efeitos autodestrutivos provocados pelos modelos de produção e de consumo que estão afetando todo o planeta.
Para as gerações que vivem esta passagem histórica, a cega pulsão que tende à acumulação assume efeitos tão devastadores porque pela primeira vez na história pode utilizar os terríveis instrumentos que colocaram à disposição “novas formas de poder derivadas do paradigma tecnoeconômico”. Uma potência sem limites, que é liberada sem poder ser contida pela fragilidade das reações da política internacional. “A submissão da política à tecnologia e às finanças mostra-se no fracasso das Cúpulas Mundiais sobre o Meio Ambiente. Há muitos interesses particulares, e muito facilmente o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e a manipular a informação para que os seus projetos não se vejam afetados”.
Voltar à realidade
O olhar crítico aplicado pelo Papa Francisco aos processos de autodestruição postos em marcha pela busca de “um benefício imediato” – ao qual instigam as leis do mercado “divinizado” – não surge de um idealismo romântico ou do sonho nostálgico de voltar no tempo para retomar formas de vida pré-industriais. O ponto do qual surge o juízo sobre o estado da questão é, antes, o respeito pela realidade, o respeito por esse que o delírio de onipotência tecnocrática trata constantemente de violar. A raiz do problema ecológico, reconhece o Papa Francisco, está no fato de que “há um modo de entender a vida e a ação humana que se desviou e que contradiz a realidade até violá-la”.
Toda a encíclica está cheia de realismo e de respeito pelo princípio da realidade frente aos dados objetivos que marcam a condição humana, começando pelo reconhecimento dos limites do mundo e de seus recursos. Ao longo do texto, o Papa Francisco dissemina eficazes antídotos contra o fideísmo do “paradigma tecnocrático” e seus propagadores bem remunerados.
Seguindo as pegadas de Romano Guardini, autor importante para o Papa, Francisco denuncia os limites do antropocentrismo moderno que “acabou colocando a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano ‘não sente a natureza como norma válida, menos ainda como refúgio vivo’”. A intervenção do ser humano na natureza, recorda Bergoglio, “sempre aconteceu, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, de favorecer as possibilidades que as próprias coisas oferecem. Tratava-se de receber o que a realidade natural permite, como estendendo a mão. Agora, ao contrário, o que interessa é extrair todo o possível das coisas pela imposição da mão humana, que tende a ignorar ou a esquecer a realidade mesma do que tem diante de si”.
Agora, caso se queira neutralizar verdadeiramente o germe da auto-aniquilação que aninha nos modelos de vida e de consumo impostos pelo paradigma tecnocrático, “chegou o momento de prestar atenção novamente na realidade com os limites que ela impõe, que, por sua vez, são a possibilidade de um desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo”.
Um documento “operacional”
As previsões catastróficas, adverte o Papa Francisco, “já não podem ser olhadas com desprezo e ironia. Poderíamos deixar às próximas gerações muitos escombros, desertos e sujeira. O ritmo de consumo, de desperdício e de alteração do meio ambiente superou as possibilidades da Terra, de tal modo que o estilo de vida atual, por ser insustentável, só pode acabar em catástrofe, como de fato já está ocorrendo periodicamente em diversas regiões”.
No entanto, a encíclica ambiental não pertence de maneira alguma ao gênero “catastrofista”. Diante do diagnóstico realista e detalhado do estado da questão, não há nenhum discurso paralisado pelo medo sobre o futuro nem por um sentimento de impotência. Pelo contrário. Nas páginas da encíclica há disseminadas várias propostas operacionais e chamando para agir rapidamente. Porque a situação é grave e o tempo vai se reduzindo, mas uma mudança de direção concreta e compartilhada pode manter viva a esperança de mudar as coisas.
Bergoglio dirige-se a todos: a cada crente, a cada mulher e homem de boa vontade, mas também às nações, aos órgãos internacionais e ao grupo “dos que decidem”. Propõe dezenas de sugestões concretas e pistas a seguir. Entre todas destaca, para os países avançados, a perspectiva da “desaceleração”, a mesma que os analistas mais clarividentes indicaram como via mestra, caso se queira interromper o processo de autodestruição.
“Se em alguns casos o desenvolvimento sustentável implicará em novas formas de crescer, em outros casos, diante do crescimento voraz e irresponsável que se produziu durante muitas décadas, é preciso pensar também em deter um pouco a marcha, em colocar alguns limites racionais e inclusive em voltar atrás antes que seja tarde. Sabemos que o comportamento daqueles que consomem e destroem sempre mais é insustentável, enquanto outros ainda não conseguem viver de acordo com a sua dignidade humana. Por isso, chegou a hora de aceitar certo decrescimento em algumas partes do mundo proporcionando recursos para que se possa crescer saudavelmente em outras partes”.
A Igreja amiga dos seres humanos
Ao propor ao mundo sua “Suma Ecológica”, o Papa Francisco também oferece a todos os dons apropriados e saudáveis que encontra no rico tesouro da Tradição e da memória cristã. Não reivindica para o cristianismo a “matriz” teológico-cultural do sistema capitalista ou dos modelos de desenvolvimento difundidos pela economia de mercado. Pelo contrário, nessa vertente descreve as posturas de um “antropocentrismo desviado” e reconhece que “uma apresentação inadequada da antropologia cristã foi capaz de respaldar uma concepção equivocada sobre a relação do ser humano com o mundo. Transmitiu-se muitas vezes um sonho prometeico de domínio sobre o mundo que provocou a impressão de que o cuidado da natureza é coisa de fracos”.
Bergoglio sugere que na atualidade é a experiência cristã da gratuidade da Criação, marcada pela estupefação e pelo agradecimento por um dom recebido que deve ser tutelado, a que pode ajudar a todos a encontrar novamente estilos de vida que não estejam submetidos às bulimias neuróticas impostas pelo consumismo. “Quando pensamos na situação em que se deixa o planeta às gerações futuras”, escreve Bergoglio, “entramos em outra lógica, a do dom gratuito que recebemos e comunicamos. Se a terra nos é doada, já não podemos pensar só a partir de um critério utilitarista de eficiência e produtividade para o benefício individual”.
Enquanto volta a propor como dom para todos a via da sobriedade e da estupefação diante da Criação, já indicada por São Francisco e por muitos outros humildes eleitos pela espiritualidade cristã, o atual Bispo de Roma propõe outra vez a imagem da Igreja amiga dos seres humanos delineada pelo Concílio Vaticano II. Uma Igreja que, com o anúncio do Evangelho de Cristo, não tem, nem pretende defender, interesses ou planos para sublinhar sua própria relevância. E justamente por isso, pode oferecer a toda a família humana os dons sempre novos da milenar sabedoria cristã.
Com sua encíclica, o Papa toca um nervo do mundo, chama a atenção profeticamente para a urgência planetária da hora presente. No cenário do mundo, sacudido por guerras e inimizades, indica a todos, na defesa da vida e na salvaguarda da Criação, um terreno comum no qual é possível redescobrir e viver de maneira concreta o destino comum que une os judeus e os cristãos, os muçulmanos, os fiéis das diferentes tradições religiosas e todos os homens e mulheres da Terra.
Talvez por este motivo, é provável que mesmo os poderosos das nações atendam às suas palavras. Como aconteceu no passado com a Pacem in Terris – quando o outro nome de Deus era evocado diante das ameaças da guerra nuclear – e com a Populorum Progressio – quando Paulo VI falou ao mundo que saía do neocolonialismo sobre os “povos da fome” que “interpelavam os povos da opulência”. Isto pode acontecer quando a Igreja demonstra ao mundo limpidamente que pregar o Evangelho de Cristo quer dizer ocupar-se do bem de todos e estar a serviço de todos. Porque, como dizia Santo Agostinho, o bem próprio da Cidade dos homens é fundamental para todos os que pertencem à Cidade de Deus.
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A “Suma Ecológica” do Papa Francisco: voltar à realidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU