11 Novembro 2008
Miriam Santini é jornalista e sindicalista em Florianópolis/SC. Recentemente, publicou um artigo que trata das relações de poder nos sindicatos, mostrando que os sindicalistas lutam pelos interesses das suas bases, mas agem como os patrões das empresas privadas na relação com os trabalhadores e as trabalhadoras do sindicato. Sobre este assunto, a IHU On-Line conversou por telefone com Miriam. Ela fala sobre a relação entre os dirigentes sindicais e os funcionários de sindicatos e afirma que eles esperam uma militância e uma lealdade que superem os limites da espontaneidade com que isso deve ser feito. “Os sindicatos têm problemas que não são intrínsecos a eles, mas representam um momento da vida sindical, um momento em que novos desafios se colocam”, ressaltou.
Miriam Santini de Abreu graduou-se em jornalismo, pela Unisinos. É mestre em geografia pela mesma universidade. Atua na área do sindicalismo e é autora do livro Quando a palavra sustenta a farsa: o discurso jornalístico do desenvolvimento sustentável (Florianópolis, Editora da UFSC, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A relação entre dirigentes sindicais e funcionários de sindicatos é interpretada pela senhora como uma situação em que os sindicalistas são bons na defesa dos interesses dos trabalhadores de sua base, mas negligentes com os funcionários dos seus sindicatos. Quais são os principais problemas que identifica nessa relação?
Miriam Santini – A partir de uma pesquisa que fiz com vários trabalhadores aqui da base de sindicatos de Florianópolis e de contatos que tenho com jornalistas em outros lugares do país, identifiquei dois grandes problemas. O primeiro é a relação desses sindicalistas com seus trabalhadores no que se refere à cobrança, principalmente da questão da militância e da lealdade. Existe uma característica bastante comum entre os trabalhadores e o sindicato: a dedicação ao trabalho que eles desenvolvem dentro da entidade. Trata-se de uma relação que eles têm com a entidade e com a base de trabalhadores, que muitas vezes extrapola a questão profissional. Essa militância, que deveria ser espontânea, muitas vezes é cobrada pelo sindicalista. Então, ela passa de um ato espontâneo do trabalhador para uma cobrança às vezes sutil, mas também bastante explícita no que se refere, por exemplo, a fazer panfletagem, a participar ativamente de atos e assembléias. Ou seja, passa a existir uma cobrança bastante grande de horário acima do que está previsto na relação de trabalho desse trabalhador do sindicato.
Isso tem acontecido muitas vezes e envolve principalmente o jornalista e o administrador. Muitas vezes, o sindicalista considera esses dois profissionais como cargos de confiança, mesmo que o trabalhador não receba para isso e mesmo que tenha passado num concurso para ocupar o cargo. Então, embora não receba para ter cargo de confiança, ele é cobrado nesse sentido. Uma outra coisa que identifiquei foi a dificuldade de compreensão quando o trabalhador do sindicato adoece, pois os problemas que vivencia são os mesmos da iniciativa privada. Esses problemas são muito bem compreendidos pelo sindicalista quando o adoecido é alguém da sua base, mas os trabalhadores do sindicato não recebem o mesmo tipo de compreensão. O gesto de compreender as necessidades de tratamento, a necessidade de afastamento, a dor psíquica que esse problema envolve, não é reconhecido de forma tão intensa pelo sindicalista. São esses os dois principais problemas que aponto e que me parecem mais importantes.
IHU On-Line – Por que os sindicatos estão assim?
Miriam Santini – Essa é uma questão bastante complexa porque envolve toda uma relação com a própria dinâmica do sistema capitalista, principalmente dos anos 1990 para cá. Com a ascensão do neoliberalismo, aumentaram as privatizações e mudou a relação capital-trabalho. Além disso, no Brasil, especificamente a chegada ao governo de Lula, que tem toda uma história dentro do sindicalismo, também mexeu muito com os sindicalistas. Há uma certa esquizofrenia, pois o sindicalista, em função do Lula no poder, não sabe se é governo, ou oposição, e até que ponto pode ou não ser crítico. Há ainda o fato de que muitos sindicalistas foram para o governo de Lula.
O momento social atual se reflete no movimento sindical, ou seja, há dificuldade de formação de novas lideranças. As lideranças hoje têm uma faixa etária já acima dos 40 e 50 anos. Temos também uma dificuldade de representação de quem não está no mercado formal de trabalho. Há uma grande massa de desempregados que não é representada dentro de uma entidade sindical e não consegue ter as suas lutas organizadas. Isso tudo se reflete na vida do sindicato e na forma como o dirigente sindical está se relacionando com os seus trabalhadores. Esses são alguns elementos que ajudam a refletir um pouco o momento que os sindicatos vivem hoje.
IHU On-Line – Você fala especificamente do papel do jornalista e do administrador. O que os dirigentes sindicais esperam desses dois profissionais?
Miriam Santini – Eu penso que tanto de um quanto de outro eles esperam lealdade. Por exemplo, eles crêem que a atividade que o jornalista exerce é, muitas vezes, mais intensa e mais militante e revolucionária do que a do próprio dirigente. Outro exemplo que acontece em alguns sindicatos é o desejo de muitos sindicalistas de que o seu jornal tenha um alto grau de inserção na base e um discurso e uma perspectiva que são além do que a entidade está fazendo naquele momento. Desse modo, se espera que o jornalista produza um jornal que aparentemente seja mais intenso e dê conta de uma luta que muitas vezes a entidade não está fazendo. Desta forma, o jornalista fica numa condição bastante complicada porque deve produzir um discurso e até uma prática junto à categoria que o dirigente não assume.
Isso também vale para o administrador, primeiro porque muitos sindicatos nem têm esse profissional. Mas, quando há, essas pessoas são cobradas para que tenham uma postura política dentro da entidade e uma capacidade para resolver certos problemas que não são atributos do seu cargo, mas lhe são cobrados de forma bastante intensa. Se cobra um adicional de militância e lealdade, mas o trabalhador não ganha esse adicional, obviamente. No entanto, ele é cobrado como se ganhasse, como se tivesse que ser leal. Isso é bastante perverso, muitas vezes, porque essa lealdade existe por relações normais entre um ser humano e outro, pelas afinidades. Essa lealdade é cobrada pelo sindicalista no momento em que ele percebe que o trabalhador gostaria de conversar sobre essas questões, mas o dirigente não quer conversar porque há uma fragilidade dentro da entidade. São processos que afetam bastante o administrador e o jornalista, até pela relação intensa que eles têm com a direção.
IHU On-Line – Essa relação que fica no limiar entre companheirismo e profissionalismo, entre os dirigentes sindicais e os seus funcionários, começou com o “novo sindicalismo” ou vem de longa data?
Miriam Santini – Eu penso que ela é mais intensa a partir dos anos 1990 para cá, principalmente pelo processo de profissionalização dentro dos sindicatos. Passou-se de uma fase de espontaneísmo, principalmente na área da administração e da comunicação, para uma fase de profissionalismo, para a contratação de jornalistas e administradores (o que não era uma prática anteriormente) e para a contratação de um corpo funcional dentro do sindicato para atendimento da demanda de comunicação, jurídica, convênios. Essa profissionalização vai constituindo a figura do trabalhador e do sindicato.
Dos anos 1990 para cá, essa relação de companheirismo e de relação explícita de funcionário-patrão, com cobranças muito parecidas com as da iniciativa privada, colocou em xeque todos esses problemas que estão acontecendo hoje. Os sindicatos têm problemas que, eu diria, não são intrínsecos a eles, mas representam um momento da vida sindical, um momento em que novos desafios se colocam. Mas faço questão de ressaltar que há sindicatos que têm uma relação muito bonita com seus funcionários.
O interessante é que, depois que esse artigo foi divulgado, alguns sindicatos já me procuraram e já procuraram colegas para que sejam feitos debates com os trabalhadores dos sindicatos e seus dirigentes para se conseguir avaliar os motivos desses problemas e também as formas de combater esse processo. Tivemos manifestações de sindicalistas que estão fazendo autocrítica e concluindo que o sindicalista não precisa ser uma pessoa melhor, mas sim um patrão melhor.
IHU On-Line – Seria correto afirmar que muitas vezes funcionários de sindicatos esperam um tratamento diferenciado e benevolente dos seus diretores porque não os identificam como patrões?
Miriam Santini – Eu tenho a impressão de que sim. Eu já atuei em vários sindicatos, tenho uma rede de relacionamentos com muitos trabalhadores de outros sindicatos. Também vejo que, quando entramos num sindicato, esperamos, muitas vezes, do sindicalista, um tipo de relação diferente do que encontramos na iniciativa privada. Muitas vezes, nos decepcionamos porque não existe uma prática diferenciada. Eu acho que também é papel do trabalhador do sindicato, assim como cobramos dos patrões sindicalistas, buscar formação junto aos nossos próprios sindicatos.
Na minha opinião, o trabalhador do sindicato tem um papel importantíssimo porque fica por trás de um processo de luta, dando todo um amparo a ela. Acho que somos capazes de cobrar essas práticas. Então, penso que esse processo de união sindical que observamos na relação do nosso dirigente, com a base que ele representa, também é fundamental na nossa relação com o nosso próprio sindicato. Por isso, cabe a nós buscar formação e ter a capacidade de fazer essa cobrança dentro das nossas entidades. Eu costumo dizer que o trabalhador de sindicato, mesmo com os problemas que identifico, é ainda um trabalhador que pode chegar para o seu dirigente e dizer que não está satisfeito, está infeliz. Ele não corre automaticamente o risco de ser demitido, como acontece na iniciativa privada.
IHU On-Line – Como isso pode mudar?
Miriam Santini – Acredito que uma questão fundamental é a formação do sindicalista. Nós tivemos uma conversa muito interessante com um professor de Economia da Universidade Federal de Santa Catarina. Ele falou que há uma necessidade urgente de estudo por parte dos sindicalistas. Isso porque vivemos um momento histórico em que os partidos e sindicatos estão revelando uma série de fragilidades no enfrentamento dos problemas que cada vez mais se intensificam na relação capital-trabalho.
Nós, aqui no Brasil, ainda temos movimento organizados, mas eles não apresentam um grau de mobilização, como em outros países da América Latina. Então, aqui no Brasil os sindicatos ainda são um movimento de importância fundamental para fazermos um enfrentamento às conseqüências que o neoliberalismo nos trouxe, ou seja, o processo de privatizações, o desemprego, a questão do assédio moral, a questão da cobrança absurda de produtividade. Então, o sindicato é absolutamente fundamental.
É preciso urgentemente que o sindicalista volte a ler os clássicos, consiga ter uma capacidade de compreensão imensamente grande de tudo o que acontece e porque acontece hoje. Esse processo de formação irá se refletir dentro e fora do ambiente dos sindicatos. O sindicalista dever ter também uma capacidade muito grande de auto-crítica, ou seja, como disse Enrique Dussel [1], a pessoa precisa ser capaz de assumir em público as razões que a levaram a determinadas ações e que ter a capacidade de assumir a responsabilidade pelas conseqüências negativas dessas ações e de corrigi-las. Isso é fundamental para o sindicalista.
Notas:
[1] Enrique Dussel é um filósofo argentino radicado desde 1975 no México. É um dos maiores expoentes da Filosofia da Libertação e do pensamento latino-americano em geral.
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"O sindicalista não precisa ser uma pessoa melhor, mas um patrão melhor". Entrevista especial com Miriam Santini de Abreu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU