01 Setembro 2008
“O imposto sindical é um resquício de tipo fascista, corporativo. Criava um vínculo direto entre o governo federal e a estrutura sindical oficial (confederações, federações e sindicatos) brasileira.” Esta afirmação é de Rudá Ricci, entrevistado de hoje da IHU On-Line. Por e-mail, Rudá respondeu nossas questões acerca da estrutura sindical atual no Brasil e as mudanças em seu desenvolvimento e ramificações. Além de analisar as lideranças sindicais dos anos 1980 e suas posições hoje, refletiu sobre as escolas sindicais. Para Rudá, “a autonomia pedagógica das escolas sindicais era a garantia da pluralidade dos cursos e currículos”. No entanto, a partir dos anos 1990, diz ele, as instituições que não se alinhavam ao modelo vigente “sofriam sérios cortes financeiros”.
Professor da PUC-Minas e da Universidade do Vale do Rio Verde, Rudá Ricci graduou-se em Ciências Sociais, pela PUC-SP, e na Universidade de Campinas obteve o título de mestre em Ciência Política e doutor em Ciências Sociais. Atua também como consultor da Emater – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais – e do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal. É autor de Terra de Ninguém: sindicalismo rural e crise de representação (Campinas: Editora da UNICAMP, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A CUT surgiu à margem da estrutura sindical oficial e se propunha a mudá-la radicalmente. Hoje, porém, parece estar contente com a mesma estrutura que tanto criticava. Em sua opinião, o que aconteceu?
Rudá Ricci – Aconteceu uma mudança ideológica muito significativa, iniciada no final da primeira metade dos anos 1990. Alguns sindicalistas datam o período de ingresso na câmara setorial do setor automobilístico como o momento da inflexão. Eu considero que foi o ingresso na Confederação Internacional das Organizações Sindicais Livres (CIOSL) que provocou um grande debate interno. O ingresso na CIOSL ocorreu logo após o ingresso da Força Sindical, o que provocou uma “corrida ao pote de ouro”. Para provar sua relevância política, a CUT tinha de abandonar as estruturas paralelas (Departamentos Estaduais e Nacionais, por categoria, como o Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais) e direcionar suas forças para filiar confederações e federações, a antiga estrutura sindical. Daí por diante, a “curvatura da vara” não retornou mais ao seu eixo.
IHU On-Line – A grande maioria das lideranças sindicais que despontou nos anos 1980 se tornou parlamentar, está no governo Lula ou bem empregada em ministérios, secretarias e estatais. Do ponto de vista ideológico, o que aconteceu com essa geração de sindicalistas?
Rudá Ricci – É importante compreendermos que uma mudança na vida de uma liderança sindical não ocorre do dia para a noite. Quando assessorei o Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT, no início dos anos 1990, convivi com grandes dirigentes rurais que viviam vários dilemas. Um deles era a distância do mundo rural. Não se tratava apenas de um problema político, mas de sobrevivência. Entenda que um agricultor familiar vive da sua produção. Quando se torna sindicalista, passa a viver de um pecúlio. Como ele pode retornar à sua produção, anos depois? Por tanto tempo deixou de melhorar a terra, deixou de comprar insumos e equipamentos, deixou de ganhar mercado. Ele é impelido a se tornar um sindicalista profissional.
Este é um dilema grave. Mas ocorreram outras mudanças. Dos anos 1980 para cá, as organizações populares conquistaram muitos espaços de co-gestão. Temos, hoje, 30 mil conselhos de gestão pública (de direitos e setoriais) ao longo do Brasil. Então, a liderança social, incluindo o sindicalista, passa a mudar seu perfil: de líder de mobilização, para uma liderança com capacidade técnica, de governar. Perceba a mudança de perfil dos sindicalistas dos grandes sindicatos: do carisma e capacidade oratória para mais reflexivo. O ponto final foi o ingresso nos ministérios. A partir daí, convenhamos, não se trata mais de liderança sindical. É um agente governamental.
IHU On-Line – Em artigo, o senhor afirma que a autonomia das escolas sindicais da CUT se tornou perigosa ao novo modelo. Que modelo é esse?
Rudá Ricci – A autonomia pedagógica das escolas sindicais era a garantia da pluralidade dos cursos e currículos. O modelo que se constrói a partir de 1992-1993 pela direção nacional da CUT é monolítico, vinculado à força majoritária da direção. As escolas passam a sofrer tensões para se tornar uma correia de transmissão. Nem todas capitulam, mas a tensão é permanente. Na segunda metade dos anos 1990, quem não se alinhava e se subordinava às direções sofria sérios cortes financeiros. Foi o que ocorreu com a Escola Sindical 7 de Outubro, em Belo Horizonte, por exemplo.
IHU On-Line – No mesmo artigo, o senhor afirma que o triunvirato – Delúbio Soares [1], Gilmar Carneiro [2] e Jorge Lorenzetti [3] – que dirigiu a central sindical no início dos anos 1990 decidiu jogar todas as suas fichas para transformar a CUT em membro ativa da direção da Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL) e que isso desmantelou as estruturas departamentais da CUT e significou uma mudança na concepção de organização sindical. Qual foi o significado dessa mudança?
Rudá Ricci – O significado foi ideológico. Teoricamente, a CUT deixou de se legitimar pela capacidade de mobilização (mobilismo) para ingressar na legitimação pela capacidade de negociação da agenda estatal. Ora, esta foi a postura da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) pré-1964, o modelo do PCB, o “partidão”. A linha oficial do partidão foi, por muito tempo, a de correia de transmissão, em que a organização de base legitimava os dirigentes de cúpula (quase sempre indicados pela direção do partido, como ocorreu com a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag, cujo primeiro presidente não era trabalhador rural).
A cúpula sindical, por sua vez, negociava permanentemente com o Estado, procurando conquistar vantagens para a categoria. Aos poucos, esta proximidade “partidarizou” absolutamente o movimento sindical e, ao mesmo tempo, alinhou os ministros. Este foi o caso de reconhecimento de sindicatos pelo ministro do trabalho, na época de João Goulart [4]: se o ministro era próximo dos comunistas, reconhecia sindicatos liderados por eles; se o ministro era vinculado à igreja católica, reconhecia sindicatos desta linha ideológica. A CUT vai caminhando para ser a antiga CGT do século XXI.
IHU On-Line – A proposta de substituição do Imposto Sindical e Assistencial pela Contribuição Negocial apresentada pela CUT consiste numa mudança substancial no financiamento dos sindicatos? Qual é o caráter político dessa proposta?
Rudá Ricci – O imposto sindical é um resquício de tipo fascista, corporativo. Criava um vínculo direto entre o governo federal e a estrutura sindical oficial (confederações, federações e sindicatos) brasileira. A Contribuição Negocial está vinculada ao acordo coletivo da categoria, ou seja, é resultado da negociação entre lideranças de trabalhadores e empresários (ou governos). Há uma evidente alteração na parte superior da decisão sobre o recolhimento desta contribuição. Agora, parte de negociação entre partes diretamente envolvidas. Não há mediação estatal. Mas, por outro lado, não altera muito na base social dos sindicatos. Principalmente se o sindicalismo de cúpula decidir uma postura entre os dirigentes. A base social terá pouca capacidade de alterar o acordo de recolhimento. O ideal seria uma contribuição individual, motivada pela confiança e crença político-ideológica.
IHU On-Line – O reconhecimento legal das centrais sindicais foi transformado numa importante pauta das centrais. O que há de significativo nessa pauta e qual a sua implicação para a estrutura sindical?
Rudá Ricci – Depende da lógica de toda estrutura, da central à organização no local de trabalho. No modelo europeu, uma categoria pode criar vários sindicatos na sua base, podendo haver um sindicato filiado a uma central ou não. É comum perguntar a um trabalhador a qual sindicato ele está filiado e obter como resposta o nome da central sindical. Perceba que esta resposta define uma afiliação ideológica e não de mera categoria (corporativa). E no local de trabalho, é possível ter uma comissão de fábrica independente, ou filiada a uma central/sindicato. Enfim, a central precisa trabalhar constantemente a base social para ter legitimidade. No Brasil, não avançamos para isto até o momento. O problema é a Central, do ponto de vista da base sindical, ser uma cúpula mais ampla que a confederação. E só.
IHU On-Line – O que diferencia hoje a CUT da Força Sindical?
Rudá Ricci – Diferenciava o “sindicalismo de negócios” do “sindicalismo classista”. Hoje, a nitidez é menor. Mas muitos sindicatos e dirigentes (como grande parte dos sindicatos de professores filiados à CUT) mantêm sua identidade original. O mosaico cutista é muito amplo. Mas, do ponto de vista da cúpula, não vejo diferenças tão nítidas como as de antes.
IHU On-Line – A crise do movimento sindical está associada à reestruturação do mundo do trabalho, à mudança do processo de produção padronizado para o modelo de produção flexível, ou se trata de uma crise ideológica?
Rudá Ricci – Uma situação complementa a outra. Não me sinto à vontade com as teorias estruturalistas, de tipo althusseriana [5]. A relação direta entre modo de produção e ideologia destrói a opção política. Thompson dizia que o estruturalismo (ou o determinismo) exclui a experiência humana da história. O fato é que alguns dirigentes da CUT, alguns deles oriundos do partidão, fizeram uma escolha na metade dos anos 90. A mudança tecnológica (como a automação bancária) alterou o cenário sindical, e foi muito usado como argumento de força por essas lideranças. Mas o fato é que também foram muito apoiados por sindicatos e centrais do exterior.
Houve resistência interna. Nem todos dirigentes aceitavam a mudança de rumos. Mas havia uma pressão imensa, tanto externa, quanto partidária. A campanha presidencial de Lula, a partir de 94, também influenciou muito esta nova agenda. Foi exatamente aí que a cúpula da CUT (ou parte dela) se aproximou da estrutura burocrática partidária montada a partir da liderança do ex-ministro José Dirceu [6].
Nota:
[1] Delúbio Soares de Castro é conhecido nacionalmente como ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores. Esteve no centro das discussões de corrupção no Brasil após a detonação do escândalo do mensalão. Foi também sindicalista e tesoureiro nacional da CUT. Foi coordenador das campanhas presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva em 1989 e 1998.
[2] Gilmar Carneiro é secretário-geral nacional da CUT. Foi do grupo responsável pela criação do CUT-Prev.
[3] Jorge Lorenzetti é ex-dirigente da Unitrabalho. Foi também analista de mídia e risco do PT. Foi acusado de um ser um dos mentores da tentativa de comprar um dossiê que supostamente incriminaria os tucanos José Serra e Geraldo Alckmin com a máfia dos sanguessugas.
[4] João Belchior Marques Goulart conhecido popularmente como "Jango", foi presidente do Brasil de 1961 até 1964, quando foi deposto por um golpe de estado, liderado pelo alto escalão do Exército e apoiado pelas classes média e alta.
[5] Louis Althusser foi um filósofo francês de origem Argelina. Althusser era, portanto, um pied-noir, termo que significa literalmente "pé-negro" e é usado em francês para descrever a população francesa que vivia na Argélia e que se repatriou na França depois de 1962. A rejeição dos hegelianos parte da própria negação de estruturas hegelianas em Marx, onde a totalidade expressiva de Hegel cede lugar, na proposta althusseriana, ao “todo estruturado”. É um todo sobredeterminado com níveis e instâncias relativamente autônomas: na configuração social há, diferente da lógica dialética, “todos parciais”, sem prioridade de um centro. Em nível do econômico, opera-se a rejeição da unicausalidade econômica da história e das lutas sociais atribuindo-se a instâncias, até então determinadas do discurso marxista (como o político e ideológico), o peso de instâncias decisivas, dominantes em ser determinantes.
[6] José Dirceu de Oliveira e Silva foi líder estudantil entre 1965 e 1968, ano em que foi preso em Ibiúna, no interior de São Paulo, durante uma tentativa de realização do XXX Congresso da UNE. Em setembro de 1969, com mais quatorze presos políticos, deportados do Brasil em troca da libertação do embaixador americano Charles Elbrick. Com a redemocratização, em 1980, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores, do qual foi presidente nacional durante a década de 1990. Em janeiro de 2003, após tomar posse na Câmara dos Deputados, licenciou-se para assumir o cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República, onde permaneceu até junho de 2005. Retornando à Câmara para se defender, Dirceu teve seu mandato de deputado federal cassado no dia 1º de dezembro de 2005, tornando-se inelegível até 2015.
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"A CUT vai caminhando para ser a antiga CGT do século XXI". Entrevista especial com Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU