Os programas de transferência de renda são ações importantes que têm promovido inúmeros debates na sociedade brasileira e mundial. Estes programas, que compõem especialmente a Política de Assistência Social articulada com outras políticas sociais e, em especial, a política de educação, de saúde e de trabalho, buscam atender famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade e risco social. Neste contexto, o Programa Bolsa Família (PBF) foi ideado a fim de promover o alívio imediato de pessoas que se encontram em situação de extrema pobreza.
De acordo com a tabela acima, observa-se que, em Araricá, município com menor população do Vale do Sinos, o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família ultrapassou a estimativa de famílias pobres no município, aumento que corresponde a 239,1%.
Já em Ivoti, o movimento foi contrário, ou seja, o percentual de famílias atendidas atingiu apenas 52,4% do número estimado de famílias pobres.
Quais fatores contribuem para o aumento, a diminuição ou o não atendimento das famílias em situação de pobreza?
Benefícios e condicionalidades do PBF
A Lei 10.836/04 do Programa Bolsa Família (PBF) enumerou quatro benefícios. O primeiro deles é o Benefício básico, exclusivo a unidades familiares em extrema pobreza, ou seja, com renda familiar mensal igual ou inferior a R$ 70,00 (setenta reais) per capita.
Há dois benefícios variáveis citados pela Lei. O primeiro Benefício variável, no limite de até 5 (cinco) benefícios para unidades tanto em pobreza quanto em extrema pobreza e que preencham os seguintes requisitos, alternativamente: ou gestantes, ou nutrizes, ou crianças entre 0 e 12 anos, ou adolescentes até 15 anos.
O Benefício variável, no limite de até 2 (dois) benefícios por família, tanto em situação de pobreza quanto de extrema pobreza, desde que haja em sua composição adolescentes com idade entre 16 (dezesseis) e 17 (dezessete) anos.
O Benefício extraordinário, último a ser implementado com a Ação Brasil Carinhoso, é destinado à superação da extrema pobreza, contanto que as unidades familiares tenham em sua composição crianças e adolescentes de 0 (zero) a 15 (quinze) anos de idade e cuja soma da renda familiar mensal e dos benefícios financeiros seja igual ou inferior a R$ 70,00 (setenta reais) per capita.
Através do site do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, nos Relatórios de Informações Sociais “RI Bolsa Família e Cadastro Único”, é possível encontrar informações pontuais sobre o PBF e o acompanhamento das condicionalidades que devem ser cumpridas para receber o benefício.
As condicionalidades para o PBF, no âmbito da Assistência Social, vai desde a integração do PETI, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, em atividades socioeducativas e de convivência para as famílias que participam dele.
Na esfera da condicionalidade Educação, exige-se, para o primeiro benefício variável (para menores de 15 anos), frequência escolar de no mínimo 85%. Já para o benefício referente à faixa etária entre 16 e 18 anos incompletos, a frequência deve ser de no mínimo 75%.
Segundo dados do “RI Bolsa Família e Cadastro Único” referentes ao mês de novembro de 2013, o acompanhamento da frequência escolar para jovens entre 6 e 15 anos na região do Vale do Rio dos Sinos foi de 94,1%. O município de Sapucaia do Sul registra o maior acompanhamento da frequência escolar nesta faixa etária, 98,2%.
No município de Nova Santa Rita o acompanhamento destes jovens não chega à metade do número de beneficiários, 46,5%.
Entre jovens beneficiários com idades entre 16 e 17 anos houve acompanhamento da frequência escolar de 71,2% na região do Sinos. Em Nova Hartz, o acompanhamento da frequência escolar destes jovens foi de apenas 12,2%.
Na área da Saúde, gestantes e nutrizes devem realizar o pré-natal, comparecer a consultas portando cartão da gestante e seguir o calendário mínimo do Ministério da Saúde. Os responsáveis por crianças de até sete anos devem manter a vacinação em dia e realizar o acompanhamento do estado nutricional e do desenvolvimento da criança.
No “RI Bolsa Família e Cadastro Único” é possível visualizar o percentual de famílias com perfil saúde que deveriam ser acompanhadas. Dados do Relatório apontam que em novembro de 2013 somente 45,4% destas famílias foram acompanhadas.
No município de Esteio, segundo o “RI Bolsa Família e Cadastro Único”, em dezembro de 2013, o total de famílias com perfil saúde foi de apenas 26,6%.
Realidades, limites e possibilidades dos programas sociais no enfrentamento à pobreza e desigualdades no Vale do Sinos
Para contribuir na análise desta realidade e promover o debate, o Observatório da Realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos, Programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, convidou Renato de Oliveira Teixeira, Mestre em Serviço Social pela PUCRS, assistente social na Prefeitura Municipal de Esteio, trabalhador do SUAS e coordenador do "CRAS Território de Paz”. Ele fez sua dissertação sobre o Programa Bolsa Família, suas condicionalidades e sua intersetorialidade. Renato respondeu a algumas perguntas pelo correio eletrônico.
ObservaSinos - Em quais instâncias deveria ocorrer o debate sobre o cumprimento das condicionalidades intersetoriais para recebimento do benefício? Coletou algum material qualitativo com relação às condicionalidades da política em Esteio?
Renato de Oliveira Teixeira - Acredito que esse debate deve ser levado adiante pelos movimentos sociais, pelos partidos políticos, pelos conselheiros de direitos, pelos trabalhadores das políticas públicas, pela academia, pelo conjunto da sociedade. Não só do Bolsa Família, mas de todas as políticas sociais. As condicionalidades do Programa Bolsa Família (PBF), no senso comum de herança liberal, remetem à preocupação, com certo grau de moralismo, com o como as famílias que recebem os recursos financeiros do programa vão cumprir com a obrigação de colocar os filhos na escola ou acompanhar a saúde das crianças. Mas essa perspectiva responsabiliza as famílias pelo que é responsabilidade do Estado, não dos indivíduos. Portanto, é preciso resguardar as devidas proporções. Claro que as famílias têm responsabilidade sobre o direito das crianças e adolescentes, mas o Estado é quem tem o dever de garantir qualidade e oferta das políticas de Educação, Assistência Social, Saúde e outras, garantir a infraestrutura necessária para o trabalho, em suma, garantir os direitos sociais.
Entendo ser um erro devotar ao Bolsa Família a solução única para a ampliação e qualificação da escolaridade das famílias ou em acreditar que o programa de fato acaba com a miséria. O conceito de pobreza extrema do programa é extremamente pobre, pois considera apenas a renda familiar per capita, quando na verdade a pobreza está ligada ao poder político e econômico, à soberania nacional, ao acesso à terra, às condições de vida das famílias, ao acesso a saúde, educação, moradia, trabalho digno e cultura, ao acesso à água e ao alimento, ao transporte coletivo público, que é uma pauta social mais recente. Mas é um erro ainda maior negar o impacto do programa na vida das pessoas e pôr de lado as conquistas que este está a possibilitar. O Bolsa Família é uma conquista, e é preciso torná-lo um direito social e ampliá-lo. Quanto às condicionalidades, é preciso romper com a lógica de culpabilização das famílias, ressignificar as condicionalidades e avançar para a garantia de direitos. Não é possível modificar essas lógicas sem assumir a discussão sobre o programa e o mecanismo das condicionalidades. Acredito que isto possa ser feito com o estabelecimento de objetivos e ações comuns entre as políticas sociais. Inclusive com compartilhamento de recursos humanos e financeiros, por exemplo. Um exemplo disso é o cadastro único, que está cada vez mais sendo utilizado por diferentes políticas e programas para seleção dos cidadãos usuários, o próprio Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, o Tarifa Social de Energia. Dessa forma, não basta apenas cadastrar as pessoas. Será preciso manter o cadastro atualizado, o que demanda recursos humanos, infraestrutura. É justamente o número de atualizações que vai possibilitar mais recursos federais aos municípios, de forma que, num futuro próximo, demandará que seja mantido não só pelas Secretarias de Assistência Social, como já é recorrente, mas mantido e gerido de forma compartilhada com Educação, Habitação, Saúde, etc. Tal articulação, por sí só, é um desafio para as gestões.
Em meu estudo, há uma série de narrativas de famílias, trabalhadoras e gestoras que apresentam diversos dados relativos ao programa e às condicionalidades. As famílias percebem dificuldades e precariedades nas políticas públicas que são condicionalidade para o programa, como a falta de recursos humanos, equipamentos, etc., indo ao encontro das percepções de trabalhadoras e gestoras. Manifestam compromisso com o acesso à Educação e à Saúde, independente de ter o Bolsa Família ou não, ao contrário do senso comum, que insiste na ideia de que as famílias cumprem com as condicionalidades só por causa da renda do programa. As famílias apresentam uma visão bastante crítica acerca da sua condição de usuários dos serviços. As trabalhadoras e gestoras manifestaram preocupação com a autonomia das famílias frente ao programa. Um dos elementos que o estudo evidenciou é a necessidade de qualificar as ações de cada política, superar a prática de mutirões da área da saúde e buscar maior articulação entre as políticas ligadas ao programa, e redução do tempo para a concessão do recurso financeiro do programa.
ObservaSinos - Quais os limites e possibilidades do benefício para os usuários da política em Esteio? E o que conseguiu constatar com a pesquisa realizada, no referido município, para sua dissertação Para Além das Condicionalidades: Desafios para o Programa Bolsa Família no Município de Esteio/RS?
Renato de Oliveira Teixeira - Embora reflita sobre o município, não consigo isolá-lo da realidade nacional. Dentre as possibilidades, está uma maior segurança quanto ao acesso à renda. Percebe-se que há, sim, um efeito, como descreve Suplicy em "Renda de Cidadania: a saída é pela porta", de que as pessoas podem selecionar melhor o emprego, ou seja, não aceitar qualquer trabalho e ter uma renda melhor. Mas este quesito, o acesso ao emprego com garantias, tem muito a ser melhorado. Embora tenha aumentado consideravelmente o acesso ao emprego nos últimos anos, é entre as famílias mais pobres que este acesso é mais difícil. A administração municipal tem demonstrado valorizar a área social; há menos de um ano instituiu uma iniciativa importante, que é o Fórum de Políticas Sociais, o que pode criar um ambiente que favoreça uma maior articulação entre as políticas. Os equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) vêm sendo implantados. É preciso reconhecer estes avanços, porém há muito que caminhar.
Entre os limites, está o fato de que o PBF é apenas um programa social e ele depende do conjunto das políticas sociais e também da política econômica. Caso contrário, pode-se perder a oportunidade histórica de ampliar a autonomia das famílias e acima de tudo redistribuir a riqueza social, através de instrumentos como a reforma agrária ou a taxação das grandes fortunas. Naturalmente, têm-se clareza de que isto está muito além das atribuições e possibilidades dos municípios isoladamente, em que pese os municípios terem alguma ingerência sobre o seu ordenamento urbano e alguns tributos (quesitos em que também há desigualdade social). São, na verdade, dívidas históricas do Estado brasileiro como um todo.
Embora o Bolsa Família forneça uma maior autonomia devido à renda, principalmente para as mulheres, que são a maioria entre as que recebem o recurso financeiro, por outro lado, o programa promove a condição da mulher enquanto a principal responsável pelo cuidado do lar e dos filhos, o que acirra a desigualdade de gênero, ao reafirmar este papel atribuído por uma cultura patriarcal e machista, conforme Marlene Strey (2012) e Simone da Silva Gomes (2011). Por isso, é preciso reforçar as políticas afirmativas para as mulheres. Sistematizo, em meu estudo, um perfil sociodemográfico das famílias que participam do Bolsa Família em Esteio, que reforça este entendimento: entre as famílias beneficiárias, 94,13% das responsáveis pelo recebimento são mulheres; fazem parte de famílias com renda total de até um salário mínimo; a renda per capita predominante é de até R$ 70,00 para aproximadamente 65% das famílias, ou seja, é um limiar de sobrevivência; mais de 60% destas mulheres possuem até o ensino fundamental incompleto.
Este perfil, por si só, apresenta desafios para os municípios para potencializar e ampliar as conquistas já alcançadas com o Bolsa Família, mas também a necessidade de ampliação, consolidação e universalização do conjunto dos direitos sociais, acima de tudo, e de maneira incondicional.
Por Marilene Maia, Álvaro Klein Pereira da Silva, Átila Alexius e Thaís da Rosa Alves