Em Autotomia, poema de Wislawa Szymborska, a poetisa encerra o texto com o seguinte epíteto: “O abismo não nos divide. O abismo nos cerca”. A eloquente frase serve como uma luva para descrever o problema da desigualdade no Brasil, que tem na questão da moradia uma importante materialidade de nosso abismo social.
São Leopoldo, cidade de colonização alemã, na Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, está longe de ser uma metrópole nos termos que conhecemos. Em 2010, segundo o Censo, a cidade tinha uma população de 213 mil habitantes, estimada em 234 mil em 2018. Do total, o déficit habitacional, segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação, alcança a cifra de 10 mil famílias, algo como 30 mil pessoas. Separados na maior parte das vezes por poucos quilômetros de distância, residências de milhares de Reais, abastecidas por toda a sorte de serviços públicos e privados, convivem com casas de um único cômodo e sem acesso a itens absolutamente básicos, como acesso à água potável e saneamento, tampouco energia elétrica.
Na tentativa de construir conexões entre esses mundos, um grupo de aproximadamente 20 pessoas, entre estudantes, professores e outros profissionais da Unisinos, visitaram no dia 15 de março quatro ocupações no município onde está instalado o campus central da Universidade. Após a visitação, uma série de outras atividades foram realizadas, tais como audiências públicas, encontros com autoridades, audiência com o reitor da Unisinos, o Pe. Marcelo Fernandes Aquino, e reuniões com membros do Judiciário. O resultado de todo esse processo será publicado detalhadamente no Relatório da Missão em defesa da moradia digna nas ocupações de São Leopoldo.
Cruzar o Rio dos Sinos é como atravessar um oceano que divide realidades muito distintas. De um lado, residências que somam a casa dos milhões e, de outro lado, na Ocupação Steigleder, mais de 200 famílias sobrevivem em casas, na maior parte das vezes, com apenas quatro paredes, edificadas com materiais usados ou recicláveis, que também é uma das principais fontes de renda dessas famílias. Sem acesso à água ou saneamento, os moradores caminham quilômetros para encherem baldes e tonéis de água na de ida e volta à bica, que fica em frente a uma igreja, no bairro vizinho. Nos tempos de seca, o cenário lembra, também pela precariedade de serviços disponíveis, a parte esquecida do sertão brasileiro, com vegetação baixa e terra vermelha e seca. No período chuvoso, ou mesmo nos temporais de verão, a região alaga, transforma-se em um banhado com água pela cintura, que fica represada entre a cidade asfaltada, que margeia a ocupação, e o dique do Rio dos Sinos, vizinho próximo dos moradores da Steigleder. O que a distância geográfica aproxima, o abismo social separa unindo, nesse oxímoro que explica e expõe nosso paradoxo habitacional, onde a pobreza é escondida dos olhos escandalizados da classe média alta ao mesmo tempo que cresce exponencialmente debaixo de suas barbas.
Não muito distante dali, a Ocupação Vitória, que tem no nome a esperança pelo acesso à moradia digna, 245 famílias vivem em um espaço relativamente pequeno, divididas em três ruas, mas em uma situação bastante diferente da ocupação anterior. O local é uma ilha de moradores que vivem cercados por serviços públicos básicos, tais como educação, saúde e infraestrutura mínima. Isso reduz a precariedade das famílias, à medida que construíram autonomamente formas de distribuição de água e compartilhamento de energia elétrica. Organizados em uma associação de moradores, as pessoas da Ocupação Vitória têm se movimentado de forma mais orgânica para exigir seus direitos junto às autoridades, tendo, inclusive, se cotizado para pagar o IPTU da área, na expectativa de usarem o documento em favor próprio na busca por seus direitos fundamentais. O gesto ilustra e responde criticamente à ideia de senso comum de que as ocupações buscam esbulho, quando, ao contrário, estão simplesmente à procura de uma vida digna.
Do outro lado da cidade, a Ocupação Cerâmica Anita vive uma situação diferente. Numericamente menor, a comunidade tem 68 famílias que, depois de muita briga com o poder público, fez valer as políticas públicas de direito à habitação e aguarda ações concretas da prefeitura. O resultado da conquista dos terrenos, que ainda precisam ser loteados e organizados urbanisticamente – com água, saneamento e energia elétrica –, vem de uma longa luta e da organização dos moradores. O fato de o território ocupado ser de propriedade da prefeitura também facilitou o processo de regularização da área, o que não deixa de ilustrar a força da propriedade privada particular em nossas sociedades. É a legitimação, por vias tortas, dos interesses de poucos que se sobrepõem aos interesses de muitos, que no final das contas, desejam tão somente viver em uma casa, sem serem completamente excluídos.
Para chegar à Ocupação Justo, saindo da região da Cerâmica Anita, um dos caminhos possíveis exige cruzar o bairro Morro do Espelho, em São Leopoldo, bairro vizinho ao centro da cidade. A região tem um dos metros quadrados mais caros do município. A alguns quilômetros de distância 2.500 famílias brigam pelo direito à moradia digna. O movimento começou ainda no final dos anos 1990, com a retirada de famílias da região onde passaria a linha do trem, quando foi estendida até a Estação Unisinos. Mais tarde, nos anos 2010, a linha seria, por fim, aumentada até Novo Hamburgo, cidade vizinha, ao Norte de São Leopoldo. Ameaçados pela possibilidade de despejo, os moradores da Ocupação Justo e o município se veem diante do risco do agravamento de um problema que não pode ser resolvido evocando o direito à propriedade privada e desapropriando a área. Afinal, a questão a ser respondida, e que despertou a realização da Missão de visitação às ocupações, é a seguinte: O que fazer com essas mais de 2.500 famílias? Para onde irão as quase 10 mil pessoas que vivem no local?
A questão da moradia no Brasil é, historicamente, nosso samba ou, melhor dizendo, nosso choro de uma nota só, onde a população empobrecida é cada vez mais afastada da cidade e de tudo o que significa o termo “cidade” – serviços públicos, infraestrutura e, até mesmo, imaginário. As questões em torno do direito à habitação, no caso brasileiro, não passam por uma insuficiência de imóveis, como aponta o estudo realizado, em 2015, pela Fundação João Pinheiro, de Belo Horizonte, em que mostra que há 7,9 milhões de imóveis vagos para um déficit habitacional que na época era de 6,3 milhões de famílias. O problema da moradia digna no Brasil é político, mas não exclusivo do poder público, senão de uma sociedade empenhada em cavar fundo o buraco que nos divide. Melhor seria, talvez, se pudéssemos, na distância que nos separa, simplesmente construir pontes, mas como nos lembra com aturdida clarividência a poetisa polonesa que mencionamos no começo deste texto: “O abismo não nos divide. O abismo nos cerca.”
Ocupação Steigleder
- Urbanização: nenhuma
- Água: os moradores buscam água em uma igreja no bairro vizinho
- Saneamento básico: nenhum
- Iluminação: inexistente
- Famílias: 211
- Trabalho: maior parte catadores de material reciclável
- Renda Média: R$ 300
Ocupação Vitória
- Urbanização: nenhuma
- Água: rede irregular, com distribuição feita por mangueiras que se ligam entre as casas
- Saneamento básico: nenhum
- Iluminação: inexistente
- Famílias: 245
- Trabalho: variados, maior parte dos moradores trabalham fora de casa
- Renda Média: R$ 900
Ocupação Cerâmica Anita
- Urbanização: nenhuma
- Água: rede irregular, com distribuição feita por mangueiras que ligam todas as casas
- Saneamento básico: nenhum
- Iluminação: inexistente
- Famílias: 68
- Trabalho: variados, parte dos moradores trabalham fora de casa e parte são catadores de material reciclável
- Renda Média: R$ 900
Ocupação Justo
- Urbanização: nenhuma
- Água: rede irregular e regiões sem abastecimento nenhum
- Saneamento básico: nenhum
- Iluminação: inexistente
- Famílias: 2.500
- Trabalho: maior parte dos moradores trabalham fora de casa e parte são catadores de material reciclável
- Renda Média: variado
Por Ricardo Machado
Leia mais
- Movimento Justo: uma história de resistência
- ‘Falta vontade política’: Lei que promove moradia social completa 10 anos em meio a déficit habitacional crescente
- 'Quando governos fracassam no direito a moradia, grandes tragédias acontecem', diz relatora da ONU sobre incêndio em SP
- Quando são as/os sem-teto que garantem mesmo o direito de moradia
- Conflitos fundiários, o direito à moradia em xeque
- Investimentos em infraestrutura e habitação na Região Metropolitana de Porto Alegre
- ‘Não consigo imaginar movimento social mais importante hoje do que o de luta por moradia’
- Recados de Habitat III: é possível universarlizar o direito à moradia?
- A moradia como condição de saúde: pauta para futuras/os prefeitas/os.
- O que pode um Conselho de Direitos Humanos fazer em defesa da moradia
- Um exemplo para juízas/es: ocupação de prédio público como defesa da moradia
- Frio, déficit de moradia e gentrificação contribuem para mortes de moradores de rua
- Colonização da moradia na era das finanças
- Garantias devidas ao direito de moradia. Papel das Defensorias Públicas
- Alimentação e moradia constituem direitos ou não? Porto Alegre está perguntando isso, hoje
- A luta do MTST pelo direito à moradia digna
- ‘Falta vontade política’: Lei que promove moradia social completa 10 anos em meio a déficit habitacional crescente
- Vale do Sinos. Aluguel e domicílio precário são responsáveis por 86% do déficit habitacional
- Retrato do déficit habitacional no Brasil
- Aluguel caro pressiona déficit habitacional nas metrópoles
- Saneamento e violência armada são distribuídos de maneira desigual nos territórios
- Estudo mostra que uma em cada quatro mulheres no país não tem acesso a saneamento básico
- Quase 35% das cidades tiveram casos de doenças ligadas ao saneamento
- Menos de 40% das cidades brasileiras têm política de saneamento
- Saneamento básico. Planejamento, regulação e operação: os critérios para a sua universalização. Entrevista especial com Pedro Scazufca
- Crise econômica afeta metas do Plano Nacional de Saneamento Básico. Entrevista especial com Alceu Galvão
- Desafios das novas formas de coabitação