Estamos vivendo uma época de pós-verdade, onde a veracidade dos fatos deixa de ser apurada e a negação da ciência cresce cada vez mais. Em meio a essa descrença com o trabalho científico, é importante criar espaços que sejam abertos para proporcionar o pensamento crítico, com rigor técnico e ético. Isto com a participação dos pesquisadores, gestores das organizações públicas e da sociedade civil e cidadãos. Além disso, é de extrema importância dar oportunidade para a população compartilhar suas pesquisas e participar da construção de políticas públicas.
Por isso, na última semana de outubro, a Rede de Observatórios realizou a nona edição do Seminário de Observatórios. Neste ano o tema principal foi analisar a produção e o acesso a dados no atual contexto das transformações tecnológicas, visando à democratização da informação e à potencialização das políticas públicas. O evento, que ocorre anualmente, foi sediado na Unisinos - Campus Porto Alegre e contou com mais de 120 inscrições ao longo dos seus dois dias de programação. Neste ano, o Seminário teve uma novidade. A abertura das atividades se deu a partir de oficinas, que tiveram como objetivo apresentar programas de tecnologia informacionais para a sistematização de dados, como Excel, Programa R e SPSS. Além disso, a primeira oficina realizada foi de Introdução à Estatística, como forma de promover o acesso à informação e formação acerca da estatística e sua aplicabilidade técnica e política, especialmente para sistematização e análise de dados.
Oficinas práticas foram o diferencial deste ano no Seminário de Observatórios (Foto: Lucas Schardong/IHU)
Como forma de fomentar a pesquisa, sistematização de dados e democratização da informação, o Seminário abre um espaço para receber trabalhos, relatos e artigos científicos, que colaborem no desenvolvimento e consolidação de Observatórios. Assim, 22 trabalhos com temas de diferentes segmentos foram selecionados, abordando temáticas e setores sociais, com destaque à temática do evento.
Rede de Observatórios
A Rede reúne, desde 2013, os diferentes Observatórios comprometidos com a democratização da informação para a cidadania. Eles realizam seus trabalhos de pesquisa, e análise dos territórios, das organizações, das políticas e das práticas implicadas ao desenvolvimento societário. O Seminário, realizado anualmente, foi idealizado para promover o estudo, o debate e articulação dos Observatórios, seus propósitos, metodologias e impactos.
Neste ano o espaço de socialização e fortalecimento da Rede se deu a partir de uma exposição de banners, apresentando cada um dos participantes, com seus respectivos objetivos, e ações. Também foi um momento de afirmação dos compromissos da rede com a democracia que está ameaçada. A exposição continua aberta para visitação do público no campus de Porto Alegre da Unisinos e futuramente ela será itinerante, sendo levada até eventos promovidos pelos observatórios. Ela também poderá ser encontrada virtualmente, na Mostra Digital, podendo ser acessada a partir do seu lançamento em dezembro de 2019. No Seminário foram apresentadas as produções coletivas da Rede. O e-book do VIII Seminário realizado no ano de 2018 foi lançado como um registro digital do evento e possui um apanhado dos debates ocorridos e também os trabalhos que foram apresentados. Outra produção tornada pública foi o Glossário de Observatórios, que que reúne uma coletânea dos termos utilizados pelos Observatórios. Este glossário está apresentado publicamente na página especial da Rede de Observatórios no dia 12 de dezembro, data da publicação. Seu caráter é de construção permanente, oportunizando sua atualização sistemática pelos diferentes observatórios.
Os desafios no cenário contemporâneo para os Observatórios
O Seminário contou com a participação do Prof. Dr. Davi Moreira, da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, que apresentou os desafios no cenário contemporâneo para as tecnologias, dados e políticas públicas. Davi iniciou sua participação no Seminário apresentando dados de uma pesquisa do Instituto Gallup que aponta confiança das populações na ciência. No Brasil, por exemplo, 73% desconfiam da ciência e 23% consideram que a produção científica pouco contribui para o desenvolvimento econômico e social do país. “Pensando em produzir evidências para ação estatal, para mudar a realidade e para interferir no mundo. Mas qual vai ser o apelo social desse conhecimento para de fato fazer essa mudança? ”, questiona.
Professor Davi Moreira apresentou perspectivas os desafios dos observatórios no cenário contemporâneo (Foto: Lucas Schardong/IHU)
Davi também aponta que dados podem ser utilizados para manipular a população e incentivar o descrédito no regime democrático ou o seu contrário. Além disso, ele afirma que “fake news” não é um problema novo, mas a velocidade como ela se propaga hoje é muito maior. E o problema é que depois que ela atinge a população, é difícil fazer com que seu efeito seja recuperado. Para ele é preciso utilizar o potencial que a transparência, a tecnologia e as evidências têm de equalizar o campo de batalha ao dar a grupos da sociedade civil a possibilidade de competir. Estes elementos dão condições para melhorar a democracia ao fundamentar a tomada de decisão e construção de políticas públicas. Ele defende a transparência e a produção de conhecimento para a coleta de dados brutos e primários da população. Nesse sentido, ele valoriza o trabalho dos observatórios no trabalho de coleta, análise e sistematização dos dados e a democratização da informação.
O professor apresentou sua experiência durante o primeiro “Hackathon” da Câmara dos Deputados Federais, realizado no ano de 2013. Nesta atividade, explicou Davi, pessoas de diferentes áreas e lugares foram convidadas até Brasília para participar de uma competição de desenvolvimento de trabalhos que deveriam utilizar os dados públicos da Câmara. O grupo de Davi criou o projeto denominado Retórica Parlamentar no evento, que posteriormente foi incubado pelo Laboratório Hacker Câmara dos Deputados. O laboratório é um espaço de trabalho de inovação cidadã da Câmara dos Deputados Federais e atua em três temas: transparência, participação e cidadania, com projetos colaborativos e experimentais.
Com o projeto, eles realizaram uma inferência estatística nos temas trabalhados pelos deputados durante os seus discursos. Todos os dados coletados foram armazenados e divulgados pela equipe de taquigrafia da Câmara, mas o acesso da população era dificultado pelas limitações técnicas do portal utilizado. “Estes dados estão sendo coletados desde o período democrático pós-Vargas no Brasil pela equipe de taquigrafia da Câmara. O nosso projeto, Retórica Parlamentar, organizou eles de maneira acessível, prática e veloz, que pode ser acessada facilmente em qualquer lugar”, explica Davi. O professor também afirmou que, com criatividade de trabalho, é possível realizar projetos de inferência estatística que possam predizer alguns fatos. Ele citou de exemplo a mancha de óleo no litoral Nordeste do Brasil, que com este tipo de inferência poderia-se predizer para qual praia ela iria se direcionar e, assim, realizar planejamentos de defesa.
Para enfrentar os desafios contemporâneos das tecnologias e da democracia, principalmente no âmbito dos Observatórios, a Profa. Dra. Anne Clinio, do Grupo de trabalho de Ciência Aberta da Fiocruz, contribuiu com o debate a partir da perspectiva da ciência aberta, contemplada em cinco linhas de pensamento para o uso e a socialização dos dados. As linhas são: pragmática, infraestrutura, métricas, pública e democrática. Para Anne, a ciência aberta vai refletir no acesso, utilização e reutilização de dados, matéria prima do trabalho dos observatórios.
Professora Anne Clinio introduziu os conceitos de ciência aberta e a importância para a democratização da informação (Foto: Lucas Schardong/IHU)
A intenção principal da ciência aberta é democratizar o acesso ao conhecimento e promover a transparência, mas Anne alerta que ela não funciona com “auto regeneração”, ou seja, não é a solução para a democratização da informação por si só ou que ela vai resolver todos os problemas do acesso à informação. Além disso, é preciso ficar alerta para a cooptação das empresas para esta pauta, sob o pretexto de favorecerem a transparência, mas que acabam não promovendo alterações estruturais relevantes para a justiça social. Assim ela acredita que o papel dos observatórios é muito importante neste sentido. Já que eles trabalham, mesmo que muitas vezes sob condições precárias para a coleta de dados e publicização dos mesmos.
Perspectivas críticas da produção e análise de dados no Brasil e no Rio Grande do Sul
Em outro momento para debater a produção, análise e acesso aos dados, e a sua contribuição para a elaboração de Políticas Públicas, o Dr. Tarson Núñez, do Departamento de Estudos Especializados – DEE do Governo Estadual do RS, apontou que após o período de redemocratização, existem duas trajetórias opostas quanto ao tema da produção, análise e acesso de dados para a formulação de políticas públicas. Segundo ele, uma frente é favorável, no sentido de propor um conjunto de situações e movimentos que levam a uma consolidação da produção, análise e acesso a bases de dados públicas. A outra frente é de uma tendência contrária e vai na direção de dificultar ou problematizar o tema.
Para Tarson, os governos tiveram um avanço, mesmo que muitas vezes pequeno, no entendimento da importância dos dados para a condução de construção de políticas públicas e para governar, em geral. Ele também aponta um aumento no pensamento da democratização dos dados, já que os governantes tenderam, nos últimos 30 anos a elaborá-los para que também sejam acessíveis ao público.
Tarson Núñez e Luís Puchalski debateram Perspectivas críticas da produção e análise de dados (Foto: Lucas Schardong/IHU)
Deste painel, que teve o propósito de debater a produção e análise dos dados do estado e do país, participou Ms. Luís Puchalski do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Ele realizou um breve apanhado histórico da construção do Censo Demográfico e apontou as perspectivas de construção e preparação do futuro Censo demográfico 2020. Também indicou modificações que ocorreram para que o processo da coleta de dados pudesse continuar, já que ocorreram cortes de orçamento e, consequentemente, diminuição de trabalhadores. Isto ao mesmo tempo em que se torna complexa a de coleta de dados em meio ao aumento progressivo da população. Para isto, o uso da internet é um facilitador, bem como a diminuição do questionário elaborado. Destacou a importância do trabalho técnico do Instituto que é reunir os dados com o maior rigor possível. Ao mesmo tempo apontou a importância da participação da população neste trabalho, que é fundamental para a produção de conhecimentos e de referências para as políticas nas diferentes esferas.
X Seminário de Observatórios e outras ações foram assumidas no evento
Na perspectiva de seguir em frente e enfrentando as diferentes realidades, ficou encaminhada a realização do X Seminário de Observatórios nos dias 21 e 22 de outubro de 2020, com a temática: Ciência aberta e tecnologias: desafios e perspectivas. Pretende-se que este evento seja um espaço para aprofundar os conhecimentos e experiências de sistematização e análise de dados e de políticas, assim como potencializar os processos de captura, sistematização e publicização das realidades a partir das tecnologias e sistemas digitais.
Exposição de banners da Rede de Observatórios continua aberta para visitação na Unisinos Campus Porto Alegre (Foto: Lucas Schardong/IHU)
Outras ações encaminhadas: Produção do e-book com a visibilização do IX Seminário, a feitura de uma página virtual para a Rede dos Observatórios. O lançamento destas produções será realizado no dia 12 de dezembro às 19h na Unisinos Porto Alegre.