05 Agosto 2016
Hoje a noite, a partir das 20 horas, quando os olhos do mundo voltarem-se à abertura oficial das Olimpíadas Rio 2016 e o Maracanã receber as centenas de atletas que representarão suas nações no evento inicial, boa parte do Brasil (e do mundo) comemorará, com orgulho patriótico, a realização dos primeiros Jogos Olímpicos na América do Sul. Enquanto os mais de 11 mil atletas disputarão 306 medalhas de ouro em 42 modalidades diferentes nas próximas semanas, centenas de milhares de pessoas terão como único direito uma existência invisível no Estado de exceção instaurado no Rio de Janeiro.
Desta noite em diante, a pira olímpica, localizada no largo à frente da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, será acesa e se transformará no novo e temporário cartão postal carioca. Há mais de 32 anos o local recebia um dos maiores comícios em defesa da redemocratização que o Brasil realizou no século XX; nove anos mais tarde, em 1993, testemunhou o massacre fascínora contra oito jovens moradores de rua, conhecido como a Chacina da Candelária. Duas décadas e meia depois, a capital fluminense tem por trás dos tapumes publicitários olímpicos um cenário desolador, contabilizando 124 pessoas assassinadas pela polícia somente nos últimos 90 dias.
Tapume que divide a Vila Autódromo dos prédios do Parque Olímpico (Foto: fabian.kron/Flickr - Creative Commons) |
Da civilização à barbárie
Na Grécia Antiga as guerras eram interrompidas durante os jogos olímpicos. Desde a retomada da competição na era moderna, em 1896, os jogos só não foram praticados no período da Primeira e Segunda Guerra Mundial. No Brasil, o Estadio e seu aparato de segurança com 85 mil soldados e policiais buscam garantir a sensação de segurança dos turistas que devem visitar a cidade maravilhosa, ao mesmo tempo que geram temor (e terror) nas populações mais empobrecidas. Também pudera, afinal o Rio de Janeiro registra o índice de 2.600 pessoas assassinadas por agentes do Estado, entre 2009 e 2016, segundo dados da Anistia Internacional com base em números divulgados pelo Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro – ISP.
Para cada Thor Batista absolvido, há centenas de Amarildos condenados à morte no tribunal do camburão. Assim foi o caso de Johnatha de Oliveira Lima, de 19 anos, morto em 2014 com um tiro nas costas. Ao voltar da casa da avó na Favela Manguinhos, onde havia ido levar um pavê, foi alvejado durante um protesto da população local contra a violência da polícia, que havia instalado ali uma Unidade de Polícia Pacificadora – UPP. “A UPP chegou aqui em outubro de 2012 e logo em março de 2013 fez a primeira vitima, um menino de 16 anos. Em outubro do mesmo ano ela fez sua segunda vítima, um jovem de 18 anos que foi espancado até a morte por policiais. O Johnatha foi a terceira vítima da UPP”, conta Ana Paula Oliveira, mãe do jovem morto.
Gastos públicos
Estimativas apresentadas por Eduardo Paes, prefeito do Rio, que ainda não estão disponíveis nos portais da transparência e, portanto, sem possibilidade de averiguação, apontam que a olimpíada custará aos cofres públicos pouco mais de R$ 39 bilhões. Enquanto a burra de dinheiro para os jogos permanece aberta ao megaevento, a niqueleira da saúde pública esvazia-se. A situação do antedimento no Sistema Único de Saúde - SUS do Rio de Janeiro se agravou exponencialmente nos últimos meses. Em março de 2016, os 9.700 pacientes renais do município quase tiveram o tratamento de hemodiálise suspensos, por falta de pagamento às clínicas que realizavam o atendimento para o SUS.
Em junho de 2016, faltando poucas semanas para o evento esportivo internacional, o governo do Estado do Rio de Janeiro decretou Calamidade Pública, devido ao déficit financeiro nas contas da saúde, educação, segurança pública e transporte. A estratégia política e jurídica abriu caminho para o Estado receber ainda mais recursos da União para que não se "inviabilizasse" a realização dos jogos.
O "direito" nem de ir, nem de vir
Dois dias antes da abertura dos jogos, no dia 03-08-2016, uma reportagem do El País relatava a realidade do transporte público carioca. Enquanto os voluntários dos jogos se deslocavam do Parque Olímpico em direção às suas residências, em confortáveis e espaçosos vagões com bancos vazios, os demais trabalhadores da metrópole fluminense, de empregados de escritórios a serventes de pedreiros, acotovelavam-se para garantir um espaço em um dos trens das demais linhas do metrô.
Diariamente, 850 mil cariocas espremem-se no transporte público. Cada vez que se fala sobre gastos públicos em eventos privados recorre-se à palavra mágica: "legado". Todavia, transformar a retórica em algo efetivo parece ser sempre um desafio bem mais complicado que o discurso sugere, como avalia o engenheiro de transportes Marcus Quintella, da Fundação Getúlio Vargas. “O projeto é um paliativo porque está incompleto. A ideia original era a integração dessa linha com as outras e que chegasse ao centro da Barra da Tijuca e não ao começo, como agora. Não adianta nada levar 1.000 pessoas em cada trem se depois os ônibus não têm capacidade para conduzi-las a seu destino”, lamenta, em entrevista à Agência Brasil.
Meio Ambiente
Baía Guanabara (Foto: CMNH/Flickr - Creative Commons) |
O sonho olímpico de um “olimpo aquático” na Baía da Guanabara naufragou, mantendo Poseidon em meio ao esgoto, vazamento de óleo e dejetos sólidos. A expectativa e as manchetes iniciais davam conta da possibilidade de se despoluir 80% da baía. Entretanto, às vésperas dos jogos o secretário do Ambiente do estado do Rio de Janeiro, André Correa, recuou e trouxe dados mais realistas sobre a situação atual.
“A gente colocou uma meta que era muito ousada, de ter a baía 80% despoluída e ninguém sabe explicar o que é esse 80%, se é de carga orgânica ou se não é. Ficou uma coisa muito mal colocada e que só contribuiu para esse descrédito original”, afirmou André Correa. “Qualquer pessoa que disser que essa baía estará em condições ambientalmente adequadas em menos de 25 ou 30 anos está mentindo. Não vamos fazer isso no curto prazo”, admitiu. A solução para o problema, propôs o secretário, é a antiga fórmula da parceria público-privada, que no Rio de Janeiro, conta com o misterioso caso do sumiço das seis vigas de concreto com mais de 20 metros de comprimento.
Remoções
De área destinada à moradia social, a Vila Autódromo se transformou em ícone maior do abuso de autoridade do Estado e do projeto de gentrificação empreendido em função dos jogos olímpicos. Ao menos 600 famílias foram removidas do local, mas duas dezenas delas resistem.
“Por que eu preciso sair da minha casa para um evento que vai durar 18 dias se eu vivo aqui há 20 anos e a comunidade existe há 40? É muito injusto, e sabemos que o motivo real não é a Olimpíada”, resiste a jovem Nathalia Silva, em entrevista ao El País, manifestando a contrariedade em deixar o lugar onde nasceu e cresceu. Quando as máquinas derrubaram centenas de residências, Maria da Penha, mãe de Nathalia, buscou abrigo na Igreja local. Vinda da Paraíba, peregrinou em outras favelas, dentre elas a Rocinha, até se estabelecer na Vila Autódromo, há 24 anos, de onde não arreda pé.
Uma das casas da Vila Autódromo removidas onde atualmente é o Parque Olímpico (Foto: fabian.kron/Flickr - Creative Commons) |
Novo velho-mundo
Enquanto a torcida olhar atenta a bola laranja cair à cesta de basquete, os cavalos superarem as traves e os pratos se esfarelarem com os tiros de carabinas, as lembranças dos mortos e torturados nas instalações militares de Deodoro durante a Ditadura Civil-Militar repousarão silenciosas e esquecidas. Na mesma região, o terreno ao lado do Parque Radical, onde canoístas e ciclistas disputarão suas provas, abriga a vala comum onde os opositores ao regime militar repousam o sono eterno.
Os Jogos Olímpicos do Rio 2016 começam hoje e grande parte das lentes captarão uma cidade que, no fundo, não existe. Os turistas desfrutarão da beleza natural encantadora do Rio e de uma cidade de arquitetura notável. Em frente ao Cristo Redentor, é possível que os mais devotos peçam proteção dos ataques terroristas. No subúrbio, onde o terror nunca acaba, haverá quem simplesmente peça redenção da violência de Estado que assusta, fere e mata a população marginalizada. Rio 2016, a máquina do tempo que transforma o novo em velho, vai começar. Apertem os cintos.
Por Ricardo Machado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU
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Apertem os cintos, a Olimpíada vai começar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU