18 Julho 2016
Da Serra do Roncador (MT) à Ilha do Bananal (TO), o gado avança sobre áreas sensíveis de Cerrado e floresta. Sopés dos grandes granitos do norte do Mato Grosso e terras da maior ilha fluvial do mundo viraram pasto. Embora seja proibido criar gado em área indígena, na reserva dos carajás, no Tocantins, fazendeiros já mantêm mais de 93 mil cabeças de gado.
A reportagem é de André Borges e Leonencio Nossa, publicada por O Estado de S. Paulo, 16-07-2016.
Pressionados pela ocupação descontrolada do solo, índios passaram a fazer parte do negócio, arrendando terras para invasores que pagam pequenas quantias para ter acesso à ilha banhada pelos Rios Araguaia e Javaés. Vice-cacique da Aldeia Santa Isabel do Morro, onde vivem 900 índios, Txiarawa Karajá conta que a tribo recebe de R$ 30 mil a R$ 40 mil por ano para não impor resistência. O dinheiro, rateado entre 15 fazendeiros, é repassado aos índios em duas parcelas. “A gente sabe que não é legal, mas aceita essa situação porque precisa do recurso. Eu acho que é pouco, não dá para resolver nada. Mas, como a Funai não tem dinheiro, precisamos fazer isso.”
Há mais de cinco décadas, fazendeiros chegaram para ocupar as terras. No fim dos anos 1980, auge das invasões, cerca de 11 mil não-índios viviam na ilha, com 300 mil cabeças de gado se alimentado de pastagens nativas. Pressionada por organizações ambientais e sociais, a Funai fez uma série de operações nos anos 1990, reduzindo o número de não-índios e a criação de bois. Em maio de 2008, a Justiça Federal deu um basta à situação. Àquela altura, havia mais de 200 pecuaristas na ilha, donos de 100 mil cabeças de gado. Eles receberam um prazo de 30 dias para retirar os animais. A sentença foi cumprida. Depois de décadas, a ilha voltava a ser dos índios. Mas, nos meses seguintes, voltou a ser invadida.
Em outubro de 2009, o Ministério Público Federal no Tocantins costurou uma decisão à revelia da lei federal. Foi selado “termo de compromisso” para permitir que o gado voltasse à Ilha do Bananal por meio de um “sistema de parceria entre indígenas e criadores não índios”. A Funai se negou a assinar. Na época, o MPF argumentou que “a prática, embora ilegal, constituía fonte de subsistência a inúmeros membros das comunidades indígenas javaé e carajá e sua interrupção acarretou situação de carência econômica e alimentar a essas comunidades”.
O retorno dos fazendeiros impunha regra clara: a quantidade máxima de bois na ilha era de 20 mil cabeças. Em outubro passado, a Agência de Defesa Agropecuária do Tocantins divulgou dados de uma campanha de vacinação, que evidenciaram o desrespeito à lei. A agência “celebrou” um recorde: 93.243 bovinos, quase cinco vezes o total permitido, foram imunizados. Em 2014, o número havia sido de 75.185 cabeças vacinadas contra febre aftosa.
Nos últimos anos, as áreas da ilha, que até então eram consideradas unidades de conservação ambiental, foram convertidas em terra indígena. Para o diretor de Criação e Manejo de Unidades de Conservação do Instituto Chico Mendes, Sérgio Brant Rocha, a mudança selou o destino da Ilha do Bananal, porque a Funai não conseguiu proteger a terra. “É uma situação absurda. A gente protegeu a ilha a vida inteira. Já havíamos levado todos os pecuaristas para fora de lá, mas hoje o gado voltou.”
Na outra margem do rio, em São Félix do Araguaia, o sucateamento da Funai expõe a fragilidade da instituição. Não há sequer uma canoa para servidores chegarem à ilha e ouvirem os índios. Funcionários são obrigados a fazer “vaquinhas” para comprar água potável ou lâmpadas. “Reconhecemos as dificuldades enfrentadas não apenas por essa, mas também por outras coordenações técnicas locais da Funai, fruto de fragilidades orçamentárias e de recursos humanos”, informou a direção do órgão, em Brasília.
Ignorada pelo Ministério Público, pelos governos de Tocantins e Mato Grosso e pela Justiça Federal, a Funai declarou “posicionamento contrário à prática de arrendamento em terras indígenas, tendo em vista que, além de ilegal, a atividade não acarreta maiores ganhos aos indígenas e limita o uso de suas terras”. O contrato firmado entre índios e não índios, lembra a fundação, é nulo, conforme entendimento de tribunais. “Pouco importa o nome (arrendamento, parceria, prestação de serviços), a forma do ajuste (contrato escrito, contrato verbal, termo) ou eventual concordância de algum índio. Para caracterizar a ilicitude, basta haver uso ou exploração da terra indígena por terceiro estranho ao grupo indígena.”
A luta dos caboclos retireiros que criam gado no Araguaia
Nas cheias, as terras do distrito de Mato Verdinho, no município mato-grossense de Luciara, na beira do Araguaia, são fertilizadas por sedimentos trazidos pelo rio. Quando é época do baixio, surge o tapete verde. É uma região de pasto nativo, onde uma centena de famílias de caboclos, os chamados retireiros, vive há um século da criação coletiva de gado. No final dos anos 1990, pecuaristas e grileiros do Sul do País começaram a chegar à região para ocupar as terras férteis que pertencem legalmente à União. Eles fecharam acessos a lagoas e praias, alterando a vida da comunidade.
Por pressão de entidades sociais e sindicatos de trabalhadores, o governo decidiu criar, em 2013, uma reserva de desenvolvimento sustentável com o propósito de preservar o modo de vida dos retireiros e a área utilizada pelas famílias. A reação foi imediata. Os invasores começaram a insuflar parte da população contra a criação da reserva, dizendo que as pessoas perderiam suas casas, seus pastos naturais, seus direitos básicos e seriam expulsas da área. Uma série de protestos e ameaças, principalmente contra lideranças religiosas, tomou conta da cidade. Na rua principal de Luciara, os grileiros penduraram uma faixa: “A prelazia de São Félix do Araguaia é o câncer dos trabalhadores rurais”. O plano era jogar a população contra a entidade que vinha combatendo a presença de grileiros e fazendeiros na região.
Em setembro de 2013, a situação perdeu o controle e o terror tomou conta de Luciara. A estrada que leva ao município de cerca de 2 mil moradores foi fechada com barreiras e caminhões e o acesso ao aeroporto, travado por tratores. As margens dos rios foram bloqueadas. Na cidade, as casas do líder de retireiros Rubem Salles e do vereador indígena Jossiney Evangelista Silva (PSDB) foram incendiadas. Uma das lideranças da prelazia, o diácono José Raimundo Ribeiro, o Zecão, estava em São Paulo quando a confusão explodiu. Ele soube por telefone que sua casa tinha sido alvo de uma saraivada de tiros.
Zecão e a mulher, Rita de Cássia, nunca mais voltaram a pisar em sua casa em Luciara. Quando retornaram à região do Araguaia, seguiram direto para São Félix, a cerca de 100 quilômetros de onde viviam. “Não pudemos voltar nem mesmo para buscar nossas roupas. Amigos tiveram que fazer nossa mudança”, diz Zecão, que desde então foi incluído, com a esposa, no programa de proteção a pessoas da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Rubem Salles e Jossiney Evangelista Silva também entraram para a lista dos jurados de morte.
As ameaças não cessaram. Zecão e Rita tiveram de se mudar mais uma vez. Foram viver numa casa no centro de São Félix. No ano passado, um aparelho transmissor de dados foi encontrado em sua linha telefônica. Uma semana antes de conversar com a equipe de reportagem, o diácono teve a casa invadida enquanto estava fora. Cerca de 2 mil livros foram jogados no chão. Não roubaram nenhum objeto. “Foi mais uma ameaça, como fizeram em 2013, ao atirarem em minha casa. Dessa vez, queimaram alguns palitos de fósforo sobre papéis, mostrando que podiam ter queimado tudo”, diz. “Mas vou continuar aqui, só saio daqui morto. Aconteça o que acontecer, não vou embora.”
Em 2014, uma portaria publicada pela Secretaria de Patrimônio da União chegou a reconhecer o domínio público de 1,6 milhão de hectares dentro do Vale do Araguaia, área que engloba partes de Mato Grosso e Tocantins, onde vivem os retireiros. Era o passo para efetivar a criação da reserva. No ano passado, porém, essa portaria foi revogada. As famílias de retireiros possuem hoje perto de 3 mil cabeças de gado. Nos currais dos fazendeiros, os números ultrapassam 90 mil cabeças. Rubem Salles, líder dos retireiros que teve a casa queimada, diz que grileiros continuam a exercer forte pressão. “É uma situação difícil demais. Enquanto a reserva não sair, vamos ficar desse jeito. Eles estão jogando as cercas cada vez mais para cima das terras, expulsando as pessoas”, diz Rubem. “Nosso gado está pastando dentro da água, porque não temos mais onde colocar. Os animais comem dentro da água, depois caçam algum lugar para dormir, no seco.”
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Curral clandestino. Fazendas de gado pressionam florestas e terras indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU