06 Junho 2016
“O noticiário associa a dominação de gênero a pancadões de gente pobre e ignorante. Mas ela não se apega a classes. É transversal. Nos estratos altos se camufla. Entre cultos, ganha licença poética. Puxe pela memória: Roman Polanski, Gerald Thomas, Johnny Depp, Alexandre Frota. O último jamais elaboraria justificativas no nível dos primeiros, mas o ato é o mesmo”, escreve Ângela Alonso, professora do departamento de sociologia da USP e presidente do Cebrap, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 05-06-2016.
Segundo ela, “parte das mulheres contribui para a reprodução do esquema que as subjuga. É o caso de mocinhas, como a primeira-dama temporária, ex-miss e do lar, que se casam com senhores endinheirados e poderosos. Desde a primeira posse de Dilma, as duas foram comparadas, uma Barbie, outra cafona; uma flor, outra trator. Eis aí os estereótipos se repondo. Ou executiva ou sexy, ou a carreira ou os filhos, ou anjo ou puta, ou o lar ou a rua. Escolhas que nunca se colocam para os homens”.
Eis o artigo.
É assim desde Adão e Eva, Bentinho e Capitu. No Gênesis, é da mulher o pecado original –provar da árvore do conhecimento–, punido com as dores do parto. O Dom Casmurro, supondo-se traído, mata socialmente a esposa com a pena do exílio. A dominação patriarcal é traço da cristandade em geral e de nossa sociedade em particular. Fundo e duradouro.
O fenômeno causa consternação episódica, quando descamba em violência física extrema, vide o espancamento que converteu Maria da Penha –a homenageada no nome da lei– em paraplégica. E comove conforme o número: uma mulher não basta, é preciso várias, vide episódio no Piauí. A não ser que seja vítima de muitos, como no estupro de uma adolescente por três dezenas de marmanjos.
Casos assim chocam. Mas logo mídia e opinião pública se enfastiam. Sobram as feministas, apenas toleradas e tidas por chatas recalcadas. No cotidiano sem graça, longe das câmeras, volta a toada, que pouco mudou desde os tempos de Machado de Assis: a supremacia física, moral, profissional, financeira dos homens sobre as mulheres.
O noticiário associa a dominação de gênero a pancadões de gente pobre e ignorante. Mas ela não se apega a classes. É transversal. Nos estratos altos se camufla. Entre cultos, ganha licença poética. Puxe pela memória: Roman Polanski, Gerald Thomas, Johnny Depp, Alexandre Frota. O último jamais elaboraria justificativas no nível dos primeiros, mas o ato é o mesmo.
O abuso a lei pune. Mas, na prática, muitos juízes pensam como o primeiro delegado do caso da estuprada por 33. Em vez de inquirir os agressores, perguntou à moça se era adepta de sexo grupal. Sai de cena a violência masculina, entra em pauta a moralidade feminina.
A subordinação mais profunda opera por meios simbólicos, invisível mesmo para as vítimas. Pierre Bourdieu mostra, em "A Dominação Masculina", como a diferença anatômica entre os sexos é inculcada desde a infância como desnível de capacidades, produzindo sentimento de superioridade nos meninos e de inferioridade nas meninas. São ambos educados para desenvolverem as sensibilidades condizentes. Eles brincam de luta, elas de casinha. Deles se espera que sejam durões, delas, que se mostrem delicadinhas. A hierarquia se naturaliza.
Fugir do roteiro é perigoso. Maridos ainda matam esposas em "legítima defesa da honra". E, não faz muito, Gilmar Mendes concedeu habeas corpus a médico estuprador contumaz, que aproveitou a deixa para fugir do país.
O fenômeno cliva a vida pública. Em outdoors, revistas, programas de televisão, o jovem é o predador, a moça, objeto de sedução e domínio, as duas coisas confundidas. Já as mulheres mais velhas ou com filhos aparecem como chiliquentas. O rebaixamento intelectual e emocional delas torna normal que eles ganhem mais e ocupem mais cargos de chefia. É assim na economia como na política. O Congresso está lotado de machos: perfazem 90% dos parlamentares.
Assim fica difícil ter uma presidente. Não é à toa o "tchau, querida". O país parece mais confortável sob ministério masculino –de provectos, brancos, em maioria suspeitos de corrupção. A ausência de mulheres é a cereja do bolo de um governo antimoderno. A Temer nem ocorreu convidá-las. Ante críticas, abriu-lhes departamentos "femininos": cultura, educação. Na Secretaria da Mulher alocou senhora recatada, comprometida com Deus e contra o aborto. O BNDES é só a exceção a justificar a regra. É abissal a diferença em relação às administrações petistas, que deram postos-chave para mulheres e espaço para a agenda feminista.
Mas, como todos os assuntos, este é complexo. Parte das mulheres contribui para a reprodução do esquema que as subjuga. É o caso de mocinhas, como a primeira-dama temporária, ex-miss e do lar, que se casam com senhores endinheirados e poderosos. Desde a primeira posse de Dilma, as duas foram comparadas, uma Barbie, outra cafona; uma flor, outra trator. Eis aí os estereótipos se repondo. Ou executiva ou sexy, ou a carreira ou os filhos, ou anjo ou puta, ou o lar ou a rua. Escolhas que nunca se colocam para os homens.
Poucos exporiam hoje, abertamente, o critério de sujeição. O interino disse que "competência não tem gênero", mas a frase camufla a suposição de que faltaria mérito às mulheres, já que não as convidou. Paradoxalmente, declinou de aplicar a regra na escolha dos varões. Contraponto perfeito oferece o Canadá. Perguntado porque deu metade dos cargos às mulheres, o primeiro-ministro de lá respondeu: "porque estamos no século 21". Já Temer segue na Idade Média.
Nesse tempo residem muitos de seus apoiadores, crentes na hierarquia de gênero como mandamento divino. Vociferam em favor da moralidade pública, desde que ela reproduza a que perpetram na vida privada. Contra a dominação masculina não baterão panelas. O utensílio serviu contra uma mulher. Decerto pensam que as outras todas devem se restringir a usá-las na cozinha.
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