Por: André | 23 Mai 2016
"Mas com o ardor próprio dos convertidos, ele não se importa com nada e aceitou desempenhar um importantíssimo cargo no governo de Michel Temer, posicionando-se para tentar, pela terceira vez, chegar à presidência do Brasil e assim saciar sua irreprimível obsessão", alerta Atilio A. Boron, sociólogo e cientista político, em artigo publicado por Página/12, 20-05-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Cena que aconteceu em uma sala de aula da Flacso, em Santiago do Chile, agosto de 1967. Os alunos dos dois mestrados que havia naquela época, um em Sociologia e o outro em Ciências Políticas, esperam com entusiasmo a chegada de um novo professor de economia: um jovem exilado brasileiro, com impecáveis antecedentes de esquerda, que pela primeira vez daria um curso na pós-graduação. O diretor da instituição faz a apresentação de rigor e logo depois o professor passa a explicar o seu programa, o que faz em um bom “portunhol” e com marcado acento brasileiro que servia para matizar a aridez de seu discurso. O conteúdo e a bibliografia são rigorosamente marxistas, sem a menor fissura pela qual pudesse deslizar alguma outra vertente de pensamento econômico.
Quando terminou sua exposição, um pesado silêncio tomou conta da sala. Eu era um dos estudantes e chamou-me a atenção o hermetismo teórico do programa. Eu já tinha feito um curso de Economia Política na Argentina, na Faculdade de Ciências Econômicas da UBA, com a inesquecível Rosa Cusminsky, que depois do golpe de 1976 conseguiu exilar-se no México e continuar com seu trabalho docente na UNAM.
No curso dado por Rosa, uma marxista “convicta e confessa”, como se declarara José Carlos Mariátegui, estudamos evidentemente Marx (algumas passagens de O Capital, lemos com proveito Salário, Preço e Lucro, folheamos o Anti-Durhring), mas também vimos John M. Keynes, Joseph Schumpeter, Joan Robinson, Arthur Pigou e John K. Galbraith.
Quebrei o silêncio e, com muito tato, perguntei ao novo professor se não iríamos estudar também a obra de alguns destes autores que a boa da Rosa nos havia feito ler, no meu caso quando ainda não tinha completado 18 anos. A resposta me deixou gelado, pois, indignado, voltou-se para mim e me disse, com um tom ameaçador e agitando com força seu dedo índice da mão direita: “Olhe jovenzinho: se você quer perder o tempo estudando esse lixo burguês não tem nada a fazer nesse meu curso”.
Intimidados pela violência verbal do professor ninguém teve a ousadia de abrir a boca. Este começou a dar sua matéria e eu nem sequer me incomodei em fazer anotações, coisa que faço habitualmente.
Ao terminar a aula, saí e nunca mais voltei ao seu curso. Tive sorte, porque naqueles anos o Chile era a Atenas Latino-Americana e completei a minha formação econômica com dois formidáveis mestres: Celso Furtado e Osvaldo Sunkel, que davam seus respectivos cursos no Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile que, como era previsível, foram muito superiores aos do meu censor.
Este iniciou uma notável carreira acadêmica e política e devo reconhecer que durante o governo de Salvador Allende foi um estreito colaborador do seu ministro da Economia, Pedro Vúskovic. Sei também que passou apuros com o golpe de Pinochet e que a duras penas conseguiu sair do Chile. Assim como eu, que fui para os Estados Unidos e obtive um doutorado em Economia pela prestigiosa Universidade de Cornell.
Depois disso, passou um tempo no Instituto de Estudos Avançados de Princeton e após 14 anos de exílio retornou ao Brasil, onde, pela mão de seu mentor e protetor no Chile, Fernando Henrique Cardoso, chegou a ser deputado federal, senador, prefeito de São Paulo e governador do Estado de São Paulo e duas vezes candidato à presidência, sendo derrotado uma vez por Lula, em 2002, e outra vez por Dilma, em 2010.
Em sua campanha presidencial de 2002 suas diatribes e infâmias contra Hugo Chávez Frías alcançaram uma lamentável notoriedade, e sua aversão a tudo o que tenha a ver com o chavismo, com o bolivarianismo e a revolução, persiste até hoje, alimentada por seu visceral ódio ao PT e a tudo o que se pareça a ele, culpado por sua frustração política.
Sua adesão à direitizada social-democracia brasileira e sua calculada conversão ao neoliberalismo como um caminho de ascensão para chegar, a qualquer custo, à presidência do Brasil acentuou ainda mais os traços de extrema intolerância e dogmatismo que exibira em sua juventude.
Hoje, representa a versão mais radical e talvez mais sofisticada – porque é uma pessoa inteligente e dona de uma sólida formação intelectual – da direita brasileira. Sua insaciável ambição de poder, essa que segundo Hobbes só cessa com a morte, não o fez apenas jogar fora aquilo em que acreditava com fanático zelo no final dos anos 1960, mas que o levou a convalidar o escandaloso assalto ao governo do Brasil através de uma quadrilha de corruptos que mereceriam estar na prisão pelo resto da vida.
Mas com o ardor próprio dos convertidos, ele não se importa com nada e aceitou desempenhar um importantíssimo cargo no governo de Michel Temer, posicionando-se para tentar, pela terceira vez, chegar à presidência do Brasil e assim saciar sua irreprimível obsessão. Este é o personagem que, no artigo que o La Nación (Buenos Aires) publica, prometeu “limpar de ideologia a política exterior” do Brasil. Apresento-lhes José Serra, meu professor por um dia e hoje Chanceler do governo golpista do Brasil.
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O preço da ambição. Artigo de Atilio A. Boron - Instituto Humanitas Unisinos - IHU