05 Mai 2016
"Diante do poder das grandes multinacionais do petróleo e dos governos que incentivam o uso dos combustíveis fósseis, a alternativa é a construção de um movimento de baixo para cima de desobediência civil e de boicote pacífico aos interesses da indústria fóssil", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 04-05-2016.
Eis o artigo.
“Por mim ficaria contente se todos os prados do mundo
ficassem em estado selvagem como consequência
das iniciativas dos homens para se redimirem”
Henry Thoreau
“Liberte-se dos Combustíveis Fósseis”. De 4 a 15 de maio de 2016, uma onda global de desobediência civil terá como alvo os projetos mais perigosos relacionados aos combustíveis fósseis, para manter o carvão, petróleo e gás no subsolo e acelerar a transição rápida para 100% de energia renovável.
Como tive a oportunidade de mostrar na semana passada, o acordo de Paris assinado no Dia da Terra (22 de abril) estabelece como meta, no melhor cenário, conter o aquecimento global em 1,5º C em relação à temperatura do período pré-industrial, ou seja, antes do início do uso generalizado dos combustíveis fósseis. O gráfico apresentado no artigo mostra que existe uma alta correlação entre o aumento das emissões de gases de efeito estufa e o aquecimento global, sendo que a concentração de CO2 na atmosfera já atingiu 400 partes por milhão (o seguro é no máximo 350 ppm).
No mesmo artigo mostrei que os três primeiros meses de 2016 foram os mais quentes da série histórica das medições iniciadas em 1880. O recorde foi batido por larga margem, pois, em relação à média da temperatura do século XX, o ano mais frio foi 1908 com anomalia de -0,44º C, o ano mais quente foi 1998 com anomalia de 0,63º C, enquanto 2015 chegou a 0,90º C. A rapidez do aquecimento surpreendeu em 2016, pois o mês de março apresentou anomalia de 1,22º C em relação à média do século XX. Considerando a média de 1880-1910 (início da série) o aumento ultrapassou o 1,5º C. Ou seja, atingimos em 2016 aquilo que o Acordo de Paris prevê para 2100.
Portanto, não há tempo a perder. É preciso reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Diversas medidas são necessárias. Mas, com certeza, uma das mais urgentes é superar a dependência dos combustíveis fósseis e fazer a mudança da matriz energética mundial para o uso de fontes renováveis e para deixar o carvão, petróleo e gás no subsolo, ao invés de queimá-los e emitir CO2, acelerando o aquecimento global e a acidificação dos oceanos.
Diante do poder das grandes multinacionais do petróleo e dos governos que incentivam o uso dos combustíveis fósseis, a alternativa é a construção de um movimento de baixo para cima de desobediência civil e de boicote pacífico aos interesses da indústria fóssil.
A ideia da “Desobediência Civil” surgiu a partir de um texto lançado por Henry David Thoreau (1817-1862) que, se opondo à Guerra dos Estados Unidos contra o México, à escravidão nos Estados Unidos e ao genocídio dos índios americanos, publicou o seu influente libelo (em 1849) onde propõe uma resistência pacífica a certas leis de um Estado que era belicista, escravista, perseguia os povos indígenas e não respeitava a natureza. A ideia da desobediência civil atravessou as fronteiras geográficas e temporais e se transformou numa grande referência da luta contra a opressão, a exploração, a injustiça, a discriminação e pela defesa do meio ambiente.
A proposta de desobediência civil de Thoreau começou a se espalhar pelo mundo quando Leon Tolstói (1828-1910) passou a utilizar a ideia no combate ao totalitarismo czarista na Rússia. Em seguida, Gandhi utilizou os mesmos princípios na luta contra a discriminação racial na África do Sul e na luta pacífica pela independência da Índia. O movimento sufragista e a “guerra do sexo” foram uma forma de desobediência civil em defesa do voto feminino. Também foi com base no texto da desobediência civil que Martin Luther King organizou a luta não violenta contra a discriminação racial e pelos direitos civis nos Estados Unidos, cem anos após a publicação do texto original. Thoreau foi inspiração para o movimento hippie e o lema “Paz e Amor” dos jovens que contestavam os valores tradicionais da sociedade de consumo, protestavam contra a guerra do Vietnã e a hegemonia do complexo econômico-militar.
Outra obra influente de Thoreau foi o famoso livro “Walden” (de 1854), onde defendeu um estilo de vida simples, a contemplação, a autossuficiência e a defesa dos direitos da natureza e da vida selvagem (Wilderness). As obras de Thoreau tornaram uma das influências mais marcantes do movimento ambientalista. Por exemplo, Thoreau foi um dos inspiradores da criação do Parque Nacional de Yosemite e do Parque Nacional de Yellowstone nos Estados Unidos e tantos outros ao redor do mundo.
Na década de 1970, Thoreau inspirou o movimento de Ecologia Profunda, termo proposto pelo filósofo norueguês Arne Naess (1973) que sugeriu uma mudança do paradigma antropocêntrico dominante (chamada de “ecologia rasa”) para uma concepção ecocêntrica ou biocêntrica. Thoreau também influenciou a luta ética e estética contra o especismo, pelo abolicionismo animal e pela extensão dos direitos morais às espécies não-humanas, conforme defendem os filósofos Paul Singer e Tom Regan.
Agora em 2016, Henry Thoreau serve de inspiração para o movimento “Liberte-se dos Combustíveis Fósseis”. No site da campanha está descrito da seguinte forma um dos objetivos: “Ação direta pacífica: a destruição do nosso planeta e o envenenamento das comunidades representam um ataque violento. Não reagiremos da mesma maneira. Não seremos violentos, não destruiremos nenhuma propriedade. Interferiremos nos negócios. Não faremos mal a nenhum dos envolvidos, mesmo que nossas ações sofram reações violentas. Estamos comprometidos com uma resposta pacífica para a crise global que enfrentamos”.
Os últimos governos brasileiros cometeram um erro estratégico de dar prioridade para a exploração das jazidas abissais do pré-sal e para a construção de hidrelétricas na Amazônia. Esse é um caminho equivocado que agrava o aquecimento global e represa o livre fluxo dos rios, das águas e dos peixes. O rumo ambientalmente correto é garantir a integridade dos ecossistemas e manter o petróleo, carvão e gás no subsolo, acelerando a transição efetiva da matriz energética para uma nova composição 100% renovável.
Vejam o filme:
Desobediência: o avanço da resistência global aos combustíveis fósseis
http://pt.watchdisobedience.com/?utm_medium=email
Visitem o site: Liberte-se dos Combustíveis Fósseis https://liberte-se.org/
Referências:
THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM,
1997. p.5 – 56
THOREAU, Henry David . Walden, ou, A vida nos bosque. tradução Astrid Cabral. -7.ed. – São Paulo: Ground, 2007.
THOREAU, Henry David. Desobedecendo: a desobediência civil e outros ensaios. Tradução de José Augusto Drummond. Rio de Janeiro, Rocco, 1984.
The Walden Woods Project: https://www.walden.org/
ALVES, JED. Henry Thoreau, um revolucionário, Projeto Colabora, RJ, 20/01/2016
ALVES, JED. Walden: mito da natureza intocada ou Ecologia Profunda? Ecodebate, RJ, 19/02/2016
ALVES, JED. Desinvestimento em combustíveis fósseis e o fim dos subsídios. Ecodebate, RJ, 05/06/2015
ALVES, JED. Dia da Terra, aquecimento global e emissões de carbono. Ecodebate, RJ, 27/04/16
ALVES, JED. A roça e a mina: O mito do pré sal está afundando o Brasil. IHU, 14/04/2015
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Desobediência civil para libertar-se dos combustíveis fósseis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU