07 Abril 2016
O sol mal nascido desenha um caminho de luz nas águas da Volta Grande, no Baixo Xingu, mas o futuro dos povos que ali vivem é insondável como o escuro da noite na floresta. Separados pelo leito do rio, índios das etnias Juruna e Arara já estão acordados, cada um em sua margem, para mais um dia de pesca difícil. “A água vinha até aqui, ó”, diz Jaílson Juruna, liderança da aldeia Muratu, 36 anos, pai de cinco filhos, apontando uma das traves de madeira de um campinho de futebol improvisado num terreno em declive que antes era rio e, agora, após o enchimento do canal de derivação da Hidrelétrica de Belo Monte, é chão de terra seca.
A reportagem é de Marceu Vieira, publicada pelo projeto #Colabora, 04-04-2016.
Desde que começou o barramento, praticamente, não cumpriram nada do que prometeram. A gente aqui começou a pegar doença que nunca teve, como micose. A água não tem mais a qualidade que tinha. O peixe para comer sumiu, e o que tem não está 100%. O posto de saúde foi feito, está ali, mas não tem funcionário nem médico.
Liderança da aldeia Muratu
Desde que jesuítas andaram pela primeira vez por ali, no século XVII, no processo de formação das cidades amazônicas do Pará, nunca foi tão precisa a contraposição entre o “grande”, denominação da curva comprida do rio, e o “baixo”, indicador da localização daquele trecho do Xingu no mapa hidrográfico do Brasil. Ali, vivem os índios diretamente afetados por Belo Monte. Ali, numa extensão de 100km, a vazão das águas foi reduzida em 80% e jamais voltará a atingir os 25.000m³ de antes. “Vai entrar um período de seca até acabar Belo Monte. E não vai acabar mais nunca”, rende-se José Carlos Arara, 35 anos, cacique da aldeia Guary-Duam.
Em tempos imemoriais, anteriores aos jesuítas, ou até mesmo à chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral ao litoral Sul da Bahia, os ancestrais de Jaílson e José Carlos já habitavam as duas terras indígenas do Xingu mais impactadas pela diminuição da vazão do rio – a Paquiçamba e a Arara da Volta Grande. Ambas ficam no trecho da Transamazônica que leva a Belo Monte.
Nas beiradas das duas terras, na altura do km 27, a carcaça queimada de um ônibus da usina dá uma medida do quanto os dois povos tentaram resistir à hidrelétrica. Foi incendiado há seis meses pelos índios. Muito perto, um prostíbulo fechado jaz na boca da mata como troféu de uma das poucas batalhas vencidas pelo Ministério Público no contencioso com a hidrelétrica pelo cumprimento das condicionantes.
Nesse cenário, o juruna Jaílson liberta de seu coração um rosário de queixas. “Desde que começou o barramento, praticamente, não cumpriram nada do que prometeram para nós”, ele desanda a falar. “A gente aqui começou a pegar doença que nunca teve, como micose. A água não tem mais a qualidade que tinha. A gente vive da pesca, da caça e da roça. O peixe ornamental, que apanhávamos para vender, está doente. O peixe para comer sumiu, e o que tem não está 100%. O posto de saúde foi feito, está ali, mas não tem funcionário nem médico. A escola das nossas crianças só está metade pronta. A gente fica inseguro aqui. A gente vivia tão bem”.
O desabafo de Jaílson jorra como jorravam antes as cachoeiras agora submersas do Xingu. Aliás, uma de suas mágoas com a concessionária Norte Energia, dona de Belo Monte, diz respeito à abertura das comportas da barragem para o enchimento dos 20km do canal de derivação, em fevereiro: “Não avisaram para a gente. Acordamos, e a água tinha levado nossas canoas, nossas malhadeiras (redes de pesca), isopores e compressores que usamos para pegar o peixe ornamental. A Norte Energia prometeu dar tudo novo. Mas só deu metade até agora. A fartura do peixe e da caça era grande. Agora, não temos mais como tirar aquela renda. A gente vive de doação. Passamos a fazer trabalho para os outros. O índio nunca tinha feito isso. Às vezes, trabalhamos para a própria empresa nas obras da aldeia. E quando a empresa for embora? A gente vai viver do quê?”
Jaílson não se deixa interromper. Segue falando. “A empresa não respeita a gente. Só depois que estava finalizando a obra é que olhou um pouco por nós. Não deixamos mais nossas crianças brincarem no rio. Temos medo de a água vir de repente. Destruíram o rio. O rio é nossa mãe. A mata é nosso pai. Deram uma caminhonete. Construíram essas casas (no lugar das antigas habitações indígenas tradicionais). Era melhor não ter. Era mais tranquilo. Antes, a gente era muito unido. Mas tem pessoa que, quando começa a ver dinheiro, fica na ganância. A Norte Energia dá presentes para alguns caciques, para comprá-los com cala-boca. O índio fala de querer fazer manifestação, e o cacique segura, porque ganhou presente”.
Na outra margem do rio, o cacique arara José Carlos também vaza seu rio de descontentamento: “Nossa vida mudou 100% para pior, houve divisão de grupos, uma das piores que já aconteceram, hoje é cada qual por si, era o que a Norte Energia queria, dividir o indígena”, diz ele num fôlego só. “Desde o início, a gente disse ‘não’ a Belo Monte. Mas o governo quis, e não houve jeito. Agora, ouvimos que Belo Monte está em crise, não vai mais dar a energia que disseram. Não será mais a solução. Altamira virou um caos, um matadouro de gente”.
A aldeia de José Carlos também perdeu canoas, isopores e redes de pesca quando a usina, sem aviso, abriu as comportas para encher o canal. Ele cobra: “Prometeram comprar novos equipamentos para nós, devolver o que perdemos, mas, até hoje, a gente não tem retorno de nada”. O novo comportamento do rio é outro desapontamento: “Agora, todo dia, é assim. Um dia o Xingu sobe, um dia abaixa, um dia sobe, um dia desce. Um problema que trouxeram para nós”.
Segundo Thaís Santi, procuradora do Ministério Público Federal em Altamira, a queixa do cacique é apenas a ponta aparente de um debacle mais grave. Ela teme que Belo Monte, ao descumprir condicionantes, possa ter proporcionado o início de um “processo de esfacelamento da cultura indígena no Xingu”. A procuradora não questiona a necessidade da usina. “Não cabe ao Ministério Público discutir a decisão de usar recursos hídricos da Amazônia para fazer hidrelétricas”, deixa claro. “Mas, uma vez decidida essa política, há um caminho legal a ser cumprido. E o que acontece com Belo Monte é que a decisão política tem justificado o descumprimento da lei”.
Thaís se refere a inúmeras tentativas do Ministério Público de parar a obra por quebra de acordos assinados pela Norte Energia. “Não temos só condicionantes descumpridas. Temos decisões judiciais descumpridas”, acusa. Uma delas, diz, é a obrigação de construir 32 bases de vigilância para proteger as 11 terras indígenas do Baixo Xingu e suas nove etnias. Previstas em acordo firmado em 2010, as tais bases não chegaram a sair do papel, apesar das ações judiciais da Procuradoria da República. “Até que, em 2015, a concessionária disse que não ia mesmo fazer. Uma coisa que eles tinham assinado e que a Justiça havia determinado que fizessem!”
Para a procuradora, a dívida com os índios não é exclusiva da Norte Energia. A responsabilidade seria também do governo. “O governo é corresponsável, mas se apresenta como mediador, veio para cá apagar incêndio”, afirma Thaís. “A empresa reescreve as obrigações dela. Apresenta um documento para conseguir as licenças (do Ibama), e, na hora de cumprir, não cumpre. E faz isso impunemente. Já pedi ao Judiciário que reconheça Belo Monte como uma ação etnocida”.
Os argumentos da procuradora para comprovar sua denúncia incluem o desrespeito a um plano de etnodesenvolvimento para assegurar a permanência dos índios em suas terras e a proteção de suas tradições e sua cultura. O programa, também acordado por Belo Monte, prevê recursos mensais de R$ 30 mil para cada aldeia. “Esse dinheiro foi desviado de finalidade”, ela diz. “Patrocina um balcão da Norte Energia em Altamira, que dava tudo o que os índios escolhiam: muita Coca-Cola, bolas de futebol… Mas não existe justificativa que convença a Justiça Federal a parar a obra. E quando a gente consegue parar com uma liminar, ela logo volta. A única sanção que faria a Norte Energia cumprir essas condicionantes seria parar o canteiro. Mas não conseguimos”.
Thaís insiste: “O mais grave dos malefícios de Belo Monte foi o esfacelamento do modo de vida dessas pessoas. Índios das aldeias mais remotas passaram a aparecer em Altamira, onde nunca tinham ido. Isso gerou alcoolismo, mudança de costumes deles, conflitos internos. Se isso não é etnocídio, não sei o que será”.
De 2011 para cá, já são mais de 25 ações do Ministério Público contra Belo Monte. Tantas denúncias levaram a Altamira, na semana iniciada em 14 de março, a relatora especial da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas, a filipina Victoria Tauli-Corpuz. Além do MP e de ONGs como o Instituto Socioambiental, ela ouviu índios de várias etnias. Seu objetivo, preparar um relatório para apresentar na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, em setembro.
Victoria se preocupou também com o futuro. Consumada a obra de Belo Monte, buscou informações sobre a intenção do governo brasileiro de construir 40 hidrelétricas no Rio Tapajós, Amazônia acima, também no Pará – a primeira, a de São Luís, em Itaituba, cujo leilão está previsto para o segundo semestre. Em encontro com índios da etnia Munduruku no campus de Altamira da Universidade Federal do Pará, a filipina ouviu relatos emocionados de caciques e lideranças femininas das aldeias do Tapajós, temerosos de que aconteça com eles o que se deu com os parentes do Xingu. “Vim mais para escutar do que falar”, ela abriu assim a reunião, auxiliada pela infraestrutura de tradução simultânea trazida por sua comitiva.
“A gente vem sofrendo ameaças do governo”, iniciou a índia Maria Leuza Munduruku, veemente. “Nossos direitos vêm sendo violados. Nossa cultura está ameaçada. Somos atacados desde que os portugueses chegaram e invadiram nossas terras. Com a construção dessa hidrelétrica, vamos perder nossa língua e nossa mãe terra”. A segunda a falar foi a índia Ianuzy Tapajó. Ela desabafou, com a voz comprometida pelo choro mal contido: “É nossa angústia e nosso desespero. Dez mil indígenas serão afetados pelo projeto de morte do governo brasileiro, o grande massacre, o grande genocídio contra os povos do Amazonas. Queremos denunciar isso para o mundo inteiro”.
O português usado por alguns índios mostrava o pouco contato deles com o idioma. Com uma lança na mão, o cacique Reinaldo Poxo Munduruku, por exemplo, avisou que fazia questão de falar no próprio idioma. Precisou da ajuda da índia Maria Leuza, por sua vez traduzida por uma funcionária da ONU. “O governo vem há tempos enganando os povos indígenas”, ele disse. “Não vamos permitir que façam com o Tapajós o que fizeram com o Xingu. Quero nossos filhos falando nossa língua. Estou aqui para garantir as futuras gerações do nosso povo. Queremos que o governo brasileiro seja punido”.
Houve desabafos ainda mais cortantes. Um deles, do índio Cláudio Curuaia: “A gente agradece a vinda da ONU aqui, mas acho que vocês já vieram tarde demais. Tudo que a presidente Dilma diz nesses encontros lá fora, falando que o índio está satisfeito, é tudo mentira. Essas empresas que constroem hidrelétricas são as mesmas que financiam o governo”.
Victoria ouviu tudo em silêncio. Até que, no fim, surpreendeu os índios com seu relato. Contou que também tem origem indígena, do povo Kankanaey Igorot, nas Filipinas. Revelou que, nos anos 1970, seus iguais lutaram contra a construção de uma hidrelétrica na região das cordilheiras de seu país. “A obra afetaria 300 mil índios. Nossos líderes, alguns, foram mortos, presos, torturados. Comunidades foram bombardeadas por aviões, helicópteros. No fim, a gente ganhou, e o Banco Mundial teve de pegar de volta o dinheiro que havia emprestado para construir a usina. Em 1996, conseguimos parar todo o projeto, e nenhuma hidrelétrica foi construída. Quero dizer a vocês que, no caso do Tapajós, ainda é possível deter esse empreendimento. Unidos, vocês podem conseguir”.
A construção da hidrelétrica de São Luís do Tapajós, segundo relatório do Greenpeace, trará “impactos irreversíveis para a biodiversidade da região e para o povo Munduruku”. Para erguê-la, “quase 400 km² de floresta terão de ser derrubados, e animais como a onça, o boto cor-de-rosa e centenas de peixes e aves estarão em perigo”. O Greenpeace considera a área prevista para a hidrelétrica “de biodiversidade excepcional até para padrões amazônicos”. O governo brasileiro acredita que é possível erguer a usina sem agredir o Tapajós e a vida a seu redor.
Victoria não está convencida disso. Antes de partir, a relatora da ONU passou por Brasília, ouviu o lado oficial e entregou ao governo uma prévia de seu relatório, em que lamenta por Belo Monte e condena o erguimento de São Luís do Tapajós. Se seu diagnóstico terá efeito, é incerto – como incerto é o futuro do modo de vida dos povos da Volta Grande, no Baixo Xingu.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O futuro incerto das tribos do Xingu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU