05 Abril 2016
Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, Papa Francisco propôs a ideia de "uma Igreja na saída"; abandonar o conforto para "alcançar os subúrbios que precisam da luz do Evangelho" (n. 20). Não se trata simplesmente de uma declaração de princípio; mas transforma-se em gesto que, de acordo com uma expressão do próprio Francisco, "fala mais alto que imagens e palavras". Um exemplo deste tipo de "saída" ocorreu na Quinta-feira Santa no Centro de Acolhimento dos Requerentes de Asilo (C.A.R.A.), em Castelnuovo di Porto.
A opinião é do filósofo e biblista italiano Piero Stefani, especialista em judaísmo e em diálogo judaico-cristão, e ex-professor das universidades de Urbino e de Ferrara. O artigo foi publicado no blog Il Pensiero della Settimana, 03-04-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
De certo modo estamos diante de uma verdadeira e própria redefinição do sentido principal da liturgia do primeiro dia do Tríduo Pascal. Se você visitar o site oficial do Vaticano em relação às palavras do Papa, naquela ocasião, encontrará o seguinte título: "Santa Missa in Coena Domini. Homilia do Santo Padre Francisco. C.A.R.A. Auxilium. Castelnuovo di Porto (Roma), 24 de março de 2016". A nota predominante do título litúrgico é a da Instituição da Eucaristia. A Quinta-feira Santa é focada no memorial de uma ceia de comunhão, que teve lugar entre Jesus e os Doze, no Cenáculo fechado. Este gesto tornou-se o caminho, por excelência, ao longo do qual Jesus se torna presente também em todas as outras comunidades de crentes. Narrada pelos três sinóticos (Mt 26,26-29; Mc 14,22-24; Lc 22,15-20), a Instituição da Eucaristia é ignorada pelo quarto Evangelho. João a substitui pelo lava-pés. O significado é o mesmo: um gesto interno; um ato de serviço próprio dos escravos, que torna-se doação de si, destinada a prolongar-se na vida dos discípulos: "Ora, se eu, pois, Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar-vos os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo para que, como vos fiz, assim também façais vós "(Jo 13,14-15).
A “saída" de Francisco, assim como suas palavras de "improviso" centradas nos dois gestos, na lavagem dos pés e na traição de Judas, por trinta moedas de prata (referidas ao terrorismo e ao comércio de armas), deslocam a atenção para o externo. No centro já não está mais a Eucaristia, mas a fraternidade entre membros de diferentes religiões: "Hoje, neste momento, quando farei o mesmo gesto de Jesus de lavar os pés de vocês doze, todos nós estaremos fazendo um gesto da fraternidade, e todos nós dizemos, "somos diversos, somos diferentes, temos distintas culturas e religiões, mas somos irmãos e queremos viver em paz". Num momento histórico em que violência, ódio, medo e controles preenchem a cena, Francisco realizou um grande gesto. Como também ficou evidenciado pela recepção da sua ação, o papa efetivamente deslocou o coração da Quinta-feira Santa da Eucaristia para o lava-pés, compreendido, por sua vez, como um gesto de algum modo desassociado da Ceia do Senhor. Isto porque lavou os pés dos "muçulmanos, hindus, coptas e evangélicos” sem implicar em sua participação na mesa eucarística.
"Eu vos dei o exemplo", para também vós façais o mesmo. Mas quem o faz? Na cerimónia da Quinta-feira Santa é sempre o presbítero a lavar os pés dos outros, enquanto ninguém lava os pés dele. Isto porque, na liturgia católica, o presbítero opera, como na Eucaristia, in persona Christi. No entanto, quanto mais autônomo torna-se o gesto da lavagem dos pés em relação à eucarística, mais se torna evidente a instância ligada à bilateralidade. A “saída” máxima da Igreja teria acontecido se o Papa tivesse feito lavar seus pés por um muçulmano, ou por um hindu. Neste caso, esta seria uma verdadeira revolução, capaz de tornar, a seu modo, o serviço mútuo em "sacramento". João não apresenta uma cena em que Jesus tem seus pés lavados pelos discípulos (Maria, porém, em precedência, os tinha ungido e enxugado com seus cabelos, Jo 12,3). Não o faz exatamente porque Jesus se revela "Mestre e Senhor", título que pertence somente a ele. Todavia, quando se trata de mútua irmandade, a gramática muda.
Kierkegaard, em seu Diário, reserva duras palavras a esta cerimónia católica: "Era o seu [de Jesus], um rebaixamento de fato. Não era como quando o papa lava os pés dos pobres, e todos sabem que ele é o papa, de modo que tem uma dupla vantagem: além daquela de ser o papa, também aquela da humildade". Não há dúvida de que um tal juízo é totalmente inadequado em relação à subjetividade das intenções profundas do Papa Francisco; permanece, porém, dotado de sua relevância objetiva devido ao cargo que ele ocupa.
Na vida, todos nós experimentamos circunstâncias onde a verdadeira humildade está mais em receber do que em dar. Humilhante é estender a própria mão, não encher com algumas moedas aquela dos outros. Se o lava-pés é chamado a tornar-se uma espécie de sacramento da fraternidade inter-humana, pela lógica interna, deveria apresentar-se como recíproco. Mas, neste renovado contexto, qual seria, então, o papel da Eucaristia?
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Quem lava os pés do papa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU