08 Janeiro 2015
Cuidar do mundo é uma obra que vai além das capacidades humanas. Em relação a elas, um papa pode fazer pouco. Nesse campo, a dimensão retórica, entendida, bem se compreenda, no sentido nobre do termo, continua sendo, na prática, o único campo viável. O discurso é diferente quando se olha para dentro da Igreja. Ali, as capacidades de intervir são reais.
A opinião é do filósofo e biblista italiano Piero Stefani, especialista em judaísmo e em diálogo judaico-cristão, e ex-professor das universidades de Urbino e de Ferrara. O artigo foi publicado no seu blog Il Pensiero della Settimana, 04-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2015, "Não mais escravos, mas irmãos", o Papa Francisco também confirmou as suas características de ser vigoroso na denúncia, menos pesado no diagnóstico e fraco na terapia. Palavra de fogo, análises genéricas, remédios improváveis.
Impressiona a lista das novas formas de escravidão que afetam a exploração dos trabalhadores e trabalhadoras também menores de idade, os migrantes, vários tipos de prostituição, o tráfico e o comércio ilegal de órgãos, a organização em larga escala da mendigagem, formas disfarçadas de adoção internacional e assim por diante. As causas são procuradas no âmbito – válido, mas não específico de hoje – do pecado e da adoração do deus dinheiro. Os remédios se resolvem em auspícios dirigidos aos Estados, às organizações internacionais, às empresas e à sociedade civil.
Cada um desses temas exigiria, na realidade, análises de extraordinária complexidade. O tráfico de órgãos, por exemplo, constitui uma aberração totalmente contemporânea. Para além das evidentes injustiças ligadas ao deus dinheiro e ao pecado da exploração realizada pelo homem sobre o homem, ele envolve uma avaliação sobre o mundo da técnica e sobre visões antropológicas que impõe a busca a todo o custo da vida biológica (em relação à qual o magistério católico se revela acomodante ou, em certas formas, até mesmo conivente). Como sempre, a oferta pressupõe uma demanda. Há os pobres que sofrem os explantes, os criminosos que os põem a disposição no mercado, mas também há os compradores e os cirurgiões que os implantam. Com todas essas etapas, o deus dinheiro tem a ver, mas não basta apelar a ele para explicar todas as coisas.
Cuidar do mundo é uma obra que vai além das capacidades humanas. Em relação a elas, um papa pode fazer pouco. Nesse campo, a dimensão retórica, entendida, bem se compreenda, no sentido nobre do termo, continua sendo, na prática, o único campo viável. O discurso é diferente quando se olha para dentro da Igreja. Ali, as capacidades de intervir são reais. De algum modo, a opinião pública – ao menos católica – entendeu isso, dando grande atenção ao discurso proferido por Francisco à Cúria Romana no dia 22 de dezembro.
Ele se centrou na denúncia de nada menos do que 15 males que afligem a Cúria – mas mais extensamente isso vale para quase todas as outras instituições. As principais reações foram as de hipotetizar uma forte tensão entre papa e Cúria. Não faltaram hipóteses da existência de manobras antipapais. Em busca de adesões, ainda está circulando um abaixo-assinado, de tom e de conteúdos fora de medidas, redigido pelo padre Paolo Farinella. Ele, tomando como impulso um artigo crítico (ou perplexo) de Vittorio Messori, que apareceu na primeira página do jornal Corriere della Sera do dia 24 de dezembro, inclina-se em defesa do papa ameaçado por supostas manobras obscuras.
Os ambientes curiais conservadores, com o apoio de lobbies não mais bem especificados, estariam orquestrando um ataque sem precedentes contra o Papa Francisco (primeira página do Corriere na véspera de Natal! O que se quer mais?).
Por isso, é preciso mobilizar tropas de defesa. Os críticos do Papa Ratzinger se tornaram os primeiros defensores do papado. O seu esquema parece ser apenas aquele "papa bom – papa ruim". De modo mais meditado, Vito Mancuso (La Repubblica, 23-12-2014) justamente salientou a impossibilidade histórica de separar a Cúria do papado. Repetidamente, fazem-se santos papas que deram poucas provas de saberem governar organismos por eles nomeados.
Com efeito, deve-se dizer que, desde a origem medieval, a Cúria foi a expressão da crescente centralidade assumida pelo papa. Os historiadores mostraram que, nisso, ela foi modelo para os Estados modernos. O problema da reforma da Cúria não é o de mudar de pessoal, nem o de inserir algumas mulheres em cargos de liderança. A questão está no fato de que uma autêntica reforma da Cúria deve envolver uma correspondente reforma radical do papel do papa.
A indicação havia sido dada pelo próprio Francisco na sua apresentação da sacada de São Pedro como bispo de Roma. Mas um bispo de Roma que preside a multiplicidade das Igrejas na caridade pode ser um chefe de Estado e centro indiscutível de uma administração que diz respeito à Igreja universal?
O discurso à Cúria Romana de Francisco começa de modo desconcertante. Deslumbrados pelas sucessivas e repetidas críticas e denúncias, a maioria das pessoas não captou esse aspecto. Naturalmente, a maioria dos jornalistas não o fez também por causa da sua bem conhecida incompetência teológica (mais cedo ou mais tarde, será preciso perguntar se a própria figura do vaticanista não pressupõe alguma forma de secularização). A consciência eclesial, começando justamente pela ala conciliar, no entanto, não deveria ter ignorado a passagem. Francisco diz:
O Concílio Vaticano II lembra-nos que, "na edificação do Corpo de Cristo, existe diversidade de membros e de funções. É um mesmo Espírito que distribui os seus vários dons segundo a sua riqueza e as necessidades dos ministérios para utilidade da Igreja (cf. 1 Cor 12, 1-11)". Por isso, "Cristo e a Igreja são o 'Cristo total' (Christus totus). A Igreja é una com Cristo".
Faz-nos bem pensar na Cúria Romana como um pequeno modelo da Igreja, isto é, como um "corpo" que procura, séria e diariamente, ser mais vivo, mais saudável, mais harmonioso e mais unido em si mesmo e com Cristo.
Na realidade, a Cúria Romana é um corpo complexo, formado por muitos Dicastérios, Conselhos, Departamentos, Tribunais, Comissões e por numerosos elementos que não têm todos a mesma tarefa, mas estão coordenados em ordem a um funcionamento eficaz, edificante, disciplinado e exemplar, não obstante as diferenças culturais, linguísticas e nacionais dos seus membros.
Usar a imagem de Igreja como corpo místico, sem falar da referência paulina, para aplicá-la à Cúria feita de Dicastérios, Conselhos, Escritórios, Tribunais, Comissões beira o incrível. O mesmo vale para a escolha de apresentar a Cúria Romana como modelo da Igreja. Para dizer isso do modo como deveria ser dito, trata-se de verdadeiros erros teológicos e eclesiológicos: assume-se o ponto em que o catolicismo romano contribuiu para iniciar o processo de secularização moderna para apresentá-lo como "pequeno modelo de Igreja".
Naturalmente, o Papa Francisco não ignora essas coisas. Então, por que se expressou nesses termos? O seu discurso deve ser enquadrado, como sempre, no consciente primado por ele atribuído à pastoral e à guia espiritual. É um caminho que, objetivamente, está ajudando a muitos. Mas é preciso estar ciente de que, por si só, ele não é capaz de lançar as bases para uma séria reforma da Igreja.
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Francisco: forte na denúncia, fraco nos remédios. Artigo de Piero Stefani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU