01 Abril 2016
“O que o Rio Xingu está fazendo aqui?!” A pergunta, em tom de espanto, foi feita a si mesmo, na manhã da quinta-feira, 17 de março, pelo taxista altamirense Reginaldo Melo, 53 anos, ao avistar o imenso canal de derivação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, proeza da engenharia que desviou o curso das águas por 20km e reduziu em 80% a vazão do rio num trecho de 100km da calha original. “O Xingu não era aqui!”, exclamou ele ao desembarcar de seu táxi perto de uma borda do leito sem movimento e sem vida, como uma grande poça.
A reportagem é de Marceu Vieira, publicada por Amazônia, 31-03-2016.
Não foi a primeira vez que ele viu o canal, enchido no dia 13 de janeiro, quando a usina abriu as comportas. Mas ainda se espanta. Reginaldo, com seu táxi, é um dos que conseguiram ganhar mais dinheiro com Belo Monte. No entanto, passada a euforia, com o término iminente das obras, sente-se desapontado. Compensar sua estupefação com a perda de praias onde costumava se banhar com a família, antes da hidrelétrica, tem preço impossível de ser calculado – como o de tudo mais que foi transformado na vida das pessoas da região.
O lenitivo para desapontamentos como o de Reginaldo foi fixado em R$ 3,2 bilhões, em 2011, quando a obra começou. O dinheiro seria investido em 54 condicionantes firmadas entre o consórcio construtor e o Ibama para atenuar os efeitos da usina na vida dos povos da floresta e das populações urbanas dos municípios impactados. A cifra, corrigida, já chega hoje a R$ 5 bilhões. Mas não conseguiu evitar tantos desfavores.
O dinheiro das compensações tem saído, de fato, do caixa da concessionária Norte Energia. Porém, os canteiros dessas intervenções jamais caminharam na mesma velocidade do erguimento da hidrelétrica – e, até agora, com o índice de conclusão da usina já superior a 90%, nenhuma condicionante urbana é dada como integralmente cumprida, à exceção do aterro sanitário de lixo de Altamira, o município mais atingido. Seguem “em andamento”. Algumas obras, segundo a prefeitura, estão paradas, como a de trechos do Parque Igarapé Altamira, que, no papel, proporcionaria lazer à população.
Outras, como a construção de 378 salas de aula, saíram do papel. Mas estão em escolas que permanecem fechadas, sem professores e alunos, na área rural, enquanto faltam vagas nos centros urbanos, onde a demanda por matrículas subiu na ordem de 1.000 por ano desde o início das obras. Em 2012, Altamira tinha 24.791 crianças e adolescentes matriculados. Em 2015, esse contingente já era de 27.486 em classes superlotadas, apesar do aumento de 57% na evasão escolar entre 2011 e 2013, provocada pela atração de jovens pela obra.
Com parte da juventude já sem emprego e longe da escola, vem crescendo, ano a ano, o número de adolescentes apreendidos pela polícia em Altamira: 27, em 2010; 66, em 2011; 175, em 2012; 189, em 2013; 182, em 2014, na contabilidade mais recente. Tudo isso apesar de, em outra condicionante mal cumprida, a Norte Energia ter repassado R$ 115 milhões ao governo do estado para reforçar a segurança na região (um terço desse montante, R$ 39 milhões, financiou a compra de um helicóptero, que, diz a voz corrente em Altamira, nunca chegou a ser usado ali).
– O saneamento básico, a distribuição de água encanada, a coleta de esgoto…Tudo isso deveria ter ficado pronto antes do enchimento da barragem. É o que determinavam as condicionantes – lembra o secretário municipal de Planejamento, Luiz Cláudio Pereira Corrêa Júnior, 27 anos. – Exatamente como ocorreu com o hospital geral construído pela Norte Energia, que também deveria ter ficado pronto antes da usina, para atender às demandas do aumento da população, e até hoje não tem data para ser inaugurado. Ficou pronto só em 2015, e continua fechado.
O Ibama concedeu a Licença de Operação a Belo Monte no dia 24 de novembro de 2015. Pelos rigores da lei, o documento só poderia ser concedido, segundo a prefeitura, após o cumprimento de todas as condicionantes. O órgão nega que tenha sofrido pressão do Planalto para apressar a licença. Mas até os contínuos do Ministério do Meio Ambiente, em Brasília, sabem que a hidrelétrica, estratégica para o governo, contou com a boa vontade oficial. O texto da licença estendeu o prazo para o cumprimento de várias condicionantes e deu como realizadas outras que só existem na obra física.
Um dos casos mais exemplares é o das redes de água (170km) e esgoto (220km), que custaram R$ 485 milhões ao consórcio construtor. Os canos e manilhas já estão todos sob o solo. Mas nenhum imóvel, segundo a prefeitura, está conectado a eles (o Ibama assegura que 3.700 casas de áreas reassentadas, sim, já estão). A Norte Energia alegou que fazer as conexões seria missão da prefeitura. O município insistiu que a responsabilidade era do consórcio.
O Ibama, ao conceder a Licença de Operação, decidiu que caberá ao empreendedor concluir o trabalho até 30 de setembro deste ano. Mas, passados quase cinco meses do início desse prazo, a situação continua igual.
– Acho difícil a Norte Energia cumprir esse prazo. Isso (as conexões às redes de água e esgoto) é trabalho que só se faz em quatro anos – teme o secretário de Planejamento.
Há vozes mais incisivas. O engenheiro Marcelo Salazar, 39 anos, coordenador do Instituto Socioambiental (ISA), organização não-governamental com atuação no Xingu, chama Belo Monte de “crime ambiental” e critica a lentidão no cumprimento das condicionantes:
– A usina é inviável tecnicamente, economicamente e ambientalmente. Só se justifica no esquema de corrupção montado para viabilizar eleições não apenas de um partido, mas de vários – afirma ele. – O ISA lutou 30 anos contra a construção de Belo Monte, não conseguiu, e a briga agora tem outro foco, é pelo direito de compensação das populações atingidas.
Pelo lado do governo, cabe ao Ibama fiscalizar o cumprimento das condicionantes. Pela sociedade civil do Xingu, esse papel é do ISA. Sob a liderança, entre outros, de Salazar, o instituto tem acompanhado com rigor as compensações. O ISA entende que nenhuma delas segue seu curso a contento – e reuniu as informações num documento chamado Dossiê Belo Monte.
Segundo o dossiê, das 8.000 famílias removidas de suas casas, num universo de 40.000 pessoas, só 4% conseguiram novas residências nos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), bairros novos erguidos pela usina em áreas desmatadas, sem sombra de árvore e sem lazer, distantes do Rio Xingu e do centro da cidade, desprovidas de transporte coletivo e demais serviços.
Um dos contemplados com uma dessas casas foi o pedreiro Nascimento Lira Alves, 42 anos, que vivia na comunidade Jardim Independente II, alagada. Hoje, ele mora na RUC Laranjeiras, uma das mais carentes. Nascimento chegou a trabalhar na obra da usina. Agora, está desempregado, como milhares de altamirenses.
– No começo, Belo Monte deu muito emprego. Mas com a fim da obra… – ele nem chega a completar a frase.
Ao lado dele, numa casa igual, modesta, em terreno de 11mx30m, vive sua mãe, Maria da Conceição Lima Alves, 87 anos, que não se conforma:
– Eu já estava acostumada com a minha casinha perto do rio. Não gostei, não. Preferia lá…
Há quem teve ainda menos sorte. Entre os removidos, 75% receberam indenizações irrisórias, incapazes de comprar moradias iguais as que tinham num município onde os preços, por causa da explosão da população, tornaram-se absurdos (aluguéis antes de R$ 300 saltaram para R$ 1.200). As indenizações de outros 21% foram pagas na forma de carta de crédito, também inferiores aos valores de mercado. Para todos esses, a vida piorou.
Foi assim com Antônia Melo, 66 anos, mãe de cinco filhos, líder da ONG Xingu Vivo Para Sempre, símbolo na região da luta contra Belo Monte. Ela também perdeu sua casa, localizada em área próxima ao rio. Com o dinheiro da indenização, comprou uma pior, num bairro chamado Ibiza, que em nada lembra a ilha de tantos glamoures no Mar Mediterrâneo, a Leste da Espanha.
– A tristeza é ter visto esse projeto virar realidade justamente no governo do PT, um empreendimento insano, que não vai gerar a energia prometida, obra feita para render propinas para campanhas eleitorais – desabafa Antônia, ex-militante do Partido dos Trabalhadores desde sua organização ali, nos anos 1980.
Quando Belo Monte ainda era só um projeto ameaçador para os povos da floresta, Antônia foi a Brasília com o bispo do Xingu, dom Erwin Kräutler, tentar demover o governo petista:
– Lula tinha estado aqui e dito para a gente que não faria isso com o Xingu. Tudo farsa. Fomos a Dilma, quando ela era ministra das Minas e Energia, e ela nem nos deixou falar. Bateu na mesa e disse: “Belo Monte vai sair”. E se levantou…Virei uma página na minha vida. Hoje, não acredito mais em partidos. Acredito na luta popular. Na transformação pelo povo unido e organizado. Só nisso eu acredito.
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Belo Monte: de todas as promessas, só uma foi cumprida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU