Por: Jonas | 18 Fevereiro 2016
Quem foi esse homem de rosto redondo, pálpebras caídas e gesto bonachão, tão repudiado pela classe política e econômica de Chiapas, que sofreu dois atentados contra sua vida, e ao que os povos indígenas abraçaram carinhosamente com o nome Tatic, o “Papai”?
Fonte: http://goo.gl/fyKhNM |
A reportagem é de Paris Martínez, publicada por Reflexión y Liberación, 15-02-2016. A tradução é do Cepat.
O príncipe...
Em 1960, Samuel Ruiz chegou a San Cristóbal de las Casas “como um príncipe”, narra Pablo Romo - teólogo, filósofo, catedrático, defensor de direitos humanos -. “Sua acolhida por parte da sociedade de San Cristóbal foi à moda da ‘antiga igreja’: dom Sam era um bispo muito jovem (de 36 anos), e ingressou na catedral adornado com uma capa longuíssima”, sendo reverenciado pela classe alta local, formada por fazendeiros, comerciantes e políticos, todos enriquecidos com a exploração dos recursos naturais do estado e dos povos indígenas que o habitavam.
Samuel Ruiz foi filho de um matrimônio de migrantes, que nos anos 1920 havia partido de Guanajuato para os Estados Unidos, em busca do mesmo que todos, naquela época e agora: não morrer de fome.
Ali, foi concebido Samuel, mas seus pais decidiram que a terra natal de seu filho seria o México, razão pela qual retornaram a Guanajuato e aí nasceu e cresceu, sendo uma criança muito pobre, mas de inteligência proeminente.
Pablo Romo apresenta um exemplo desse brilhantismo: aos 13 anos, Samuel Ruiz entrou no Seminário Diocesano de León, onde rapidamente aprendeu italiano e francês.
Aos 23 anos, o seminário de León o enviou para estudar em Roma, onde aprendeu hebraico, grego e latim, além de se especializar em exegese cristã (quer dizer, interpretação bíblica) para depois continuar com o inglês e o alemão.
Ao regressar ao México, com 30 anos, foi nomeado reitor do seminário que o havia abrigado quando criança, e seis anos depois foi elevado ao posto de bispo.
Era uma trajetória meteórica para um jovem de 36 anos, nascido no seio de uma família humilde, que agora era recebido nas fazendas como uma eminência, e que comia na mesa do patrão, enquanto lá fora, em palhoças, permaneciam os “índios acasillados”, ou seja, os indígenas que viviam nas terras do “finquero” (fazendeiro), que trabalhavam em seus latifúndios cafeeiros, em troca de alimento suficiente para chegar ao seguinte dia.
Iniciavam-se os anos 1960, narra por sua parte o bispo de Saltilio, Raúl Vera, que foi amigo e bispo adjunto de Samuel Ruiz; ou seja, na realidade, passou-se pouco tempo desde então, mas ressalta: “Tratava-se de outra época, Chiapas era outro. Naquele momento, os indígenas não tinham permissão para se sentar nos bancos da praça de San Cristóbal e as banquetas nas ruas eram apenas para pessoas brancas ou mestiças; e embora o salário mínimo fosse de oito pesos, em San Cristóbal, o salário para um indígena era de três centavos, que os fazendeiros lhes pagavam em espécie, ou seja, com um pouquinho de feijão ou com um pouquinho de milho”.
Era, ressalta o bispo Vera, como se o feudalismo extirpado da Europa, ao encerrar a Idade Média, tivesse se transferido para Chiapas, como se o estado estivesse encapsulado nesta história na qual o senhor feudal era o dono da terra e de quem vivia nela.
E lá estava o jovem bispo dominicano, Samuel Ruiz, com sua longa capa de veludo, acolhido pelos mais privilegiados e conservadores, mas com a cabeça cheia de ideias que poucos anos depois seriam rotuladas como “comunistas” por esses mesmos que o lisonjeavam.
O caminho...
Os anos 1960 foram um momento de mudança da consciência social e política em nível mundial, explica Pablo Romo. Na Europa e Estados Unidos se lutava contra a segregação dos afrodescendentes, pelo reconhecimento dos direitos das mulheres, a Revolução Cubana apenas tinha iniciado, preparava-se o terreno para a Guerra Fria e, em Roma, a hierarquia católica havia estabelecido novas formas de “dialogar” com um mundo que a “horrorizava”.
Em 1959, detalha Romo, foi realizado em Roma o Concílio Vaticano II [nota do tradutor: na verdade, neste ano, apenas foi anunciado], convocado pelo Papa João XXIII com o objetivo de “atualizar” a Igreja católica. A partir daí, decidiu-se abandonar o latim e permitir que as missas passassem a ser realizadas nas línguas nativas de cada nação; nas cerimônias, passou a ser permitido o uso de instrumentos musicais autóctones e, inclusive, colocou-se sobre a mesa a necessidade de reconhecer a teoria da evolução de Darwin.
“E aí estava o jovem bispo Samuel Ruiz, com praticamente nada de experiência, mas muito atento, absorvendo, como esponja, todas as ideias que aí eram apresentadas”, que levou à prática, assim que retornou a sua nova diocese: a de San Cristóbal de las Casas.
“Dom Sam, rapidamente, fez uma reflexão muito importante - explica Romo -: ele disse ‘bom, se estou vindo à casa do fazendeiro para batizar os filhos dos índios ‘acasillados’, por que celebro com o fazendeiro e não com a família indígena?’. E, então, decidiu caminhar melhor com os indígenas, não com aqueles que os estavam oprimindo, então, começou uma ruptura nele, uma mudança de pensamento”.
Foi assim que Samuel Ruiz e outros bispos latino-americanos preocupados em realizar esta “atualização da Igreja” em suas respectivas nações – entre os quais estavam o mexicano Sergio Méndez Arceo, o salvadorenho Óscar Arnulfo Romero, o equatoriano Leónidas Proãno e o guatemalteco Juan Gerardi, citando apenas alguns - desenvolveram a corrente conhecida como “Teologia da Libertação” ou “A opção pelos pobres”, que assumia como missão pastoral a defesa das almas dos mais desprotegidos de maneira prioritária, como também a defesa de suas vidas, suas dignidades, suas liberdades e a denúncia de seus opressores.
“A primeira ação de dom Sam foi aprender as línguas de todos os povos indígenas de sua diocese: tzotzil, tojolabal, chuj, chol, e começa a ouvi-los. Eu me pergunto – destaca Pablo Romo – quantas línguas indígenas fala o atual governador, Manuel Velasco? A resposta é ‘nenhuma’. Durante o século XX e o que vai deste XXI, só houve um governador do estado que falava uma língua, Elmar Zeltzer, que falava tzeltal”, e que governou só um ano, de 1993 a 1994.
Contudo, o projeto do bispo Samuel Ruiz, de atenção às comunidades indígenas, não se limitava a entender suas línguas: criou equipes de trabalho que traduziram a Bíblia, e depois uma rede de diáconos que desempenhou trabalhos de evangelização na Mata, Altos e na região fronteiriça com a Guatemala.
“Aí está a genialidade de dom Samuel: ele colocou a sandália do indígena e saiu percorrendo toda a mata e as montanhas” (por este costume, de fato, foi conhecido como O Caminhante). Nesse caminho, foi criando uma rede, foi gerando equipes de trabalho, criou comitês de ensinamento das escrituras, que depois chegaram, por si mesmos, a soluções em temas não relacionados com a religião. “Assim como, primeiramente, houve delegados de atenção pastoral, depois houve delegados indígenas de saúde, de educação, delegadas de assuntos da mulher, de direitos humanos; e isso desembocou na criação de cooperativas de produção e distribuição, em agrupamentos estatais de mulheres, porque cada comitê foi se enlaçando com o restante, localizados em toda a diocese”.
Assim como destacam pesquisas de O Colégio de México, em 1961 – ou seja, um ano depois de sua ascensão à Diocese de San Cristóbal -, esta nova estratégia de atenção pastoral permitiu a formação de 700 catequistas indígenas; já em 1985 eram mais de 6.000 catequistas, pré-diáconos e diáconos indígenas e, em 2007, considerava-se que esta rede já chegava a 8.000 integrantes. Além disso, cada um destes representantes eclesiais era acompanhado por equipes de voluntários que atendiam o restante das áreas da vida comunitária.
Esta rede, pois, podia chegar a 15.000 integrantes, pelo menos, contando religiosos e voluntários.
E isso desatou a ira dos setores conservadores de San Cristóbal e de Chiapas, reconhece, com certo agrado, o bispo Raúl Vera.
“Os ricos e os poderosos sentiam muita raiva por dom Samuel preferir estar com os irmãos indígenas, do que com eles, e que conversasse com eles nos idiomas, isso os irritava muitíssimo. Porque dom Samuel, então, tornava-se testemunha de todos os seus abusos. Ele me contou que, naquelas épocas, viu muitos irmãos indígenas com as costas cheias de cicatrizes, porque os fazendeiros não só não os pagavam e os tinham submetidos a trabalhos forçados, como também os golpeavam cruelmente... E não só os ricos sentiam raiva, como também um setor da Igreja, pelo fato de dom Samuel incorporar os indígenas na vida diocesana. Dom Samuel enfrentava gente muito racista, gente que acreditava que os indígenas sobreviviam graças a eles, gente que acreditava que se os indígenas abandonassem suas propriedades, morreriam, porque não saberiam como sobreviver”.
No entanto, o tempo demonstraria que os povos indígenas não só recuperaram o orgulho por sua identidade, durante as primeiras duas décadas do bispado de Samuel Ruiz, em San Cristóbal de las Casas, como também estavam animados a exercer e defender seus direitos, e também estavam dispostos a mudar a realidade de maneira irreversível.
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Samuel Ruiz, o bispo com razões de sobra para ser homenageado por Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU