27 Janeiro 2016
O papa distingue entre famílias matrimoniais e uniões civis de qualquer tipo e, de fato, não nega que a mesma posição seja reconhecida legalmente.
A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista italiano e fundador do jornal italiano La Repubblica, 24-01-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"A Igreja indicou ao mundo que não pode haver confusão entre a família desejada por Deus e todos os outros tipos de união." O Papa Francisco disse isso no seu discurso da sexta-feira passada, na abertura do ano judiciário do Tribunal da Sacra Rota, e isso teria significado um passo atrás em relação à abertura à modernidade contida nas prescrições do Concílio Vaticano II, cuja citação Francisco sempre assumiu até agora como a maior tarefa do seu pontificado.
Mas ele não disse apenas isso. No fim da sua intervenção, ele também abordou o tema das mudanças que podem ocorrer dentro e fora da família consagrada pelo matrimônio religioso: "A família fundada no matrimônio indissolúvel, unitivo e procriativo pertence ao sonho de Deus, mas os responsáveis pelos processos matrimoniais nunca deverão se esquecer do necessário amor misericordioso para com aqueles que, por livre escolha ou por infelizes circunstâncias da vida, vivem em um estado objetivo de erro".
De fato, naquele mesmo dia do seu discurso ao tribunal rotal, o papa enviou também uma mensagem aos participantes do 50º Dia Mundial da Comunicação, em que convidou a "se exprimir com gentileza e compreensão também em relação àqueles que, sobre o matrimônio, pensam e agem de forma diferente".
Que essa seja a sua atitude em relação às chamadas uniões civis entre pessoas sexualmente heterogêneas ou também do mesmo sexo é sabido há muito tempo. Em suma, o papa distingue entre famílias matrimoniais e uniões civis de qualquer tipo e, de fato, não nega que a mesma posição seja reconhecida legalmente.
No confronto de rua que está acontecendo entre associações católicas no "Family Day", que irá ocorrer no próximo dia 30, e as múltiplas associações laicas que seguirão em frente até que a lei apresentada pelo governo seja discutida e, na forma de emenda, aprovada (a partir do próximo dia 28) Francisco não intervém; no máximo, a tarefa cabe ao episcopado italiano, que, no entanto, é lembrado que não deve mais se ocupar de política, mas esclarecer a posição pastoral sobre os problemas em discussão.
O chamado passo atrás de Francisco sobre o tema da família, portanto, não existiu. Naturalmente, Francisco, como já ocorreu na discussão sinodal sobre o tema do acesso dos divorciados recasados que pedem para ser readmitidos aos sacramentos, deve procurar soluções de compromisso (temporário) para manter a unidade da Igreja sinodal.
Sobre o tema dos sacramentos aos divorciados recasados, o compromisso foi de confiar aos bispos e aos confessores por eles delegados a decisão sobre se o requerente pode ser acolhido novamente ou não. Desse modo, a porta de readmissão foi aberta pela metade, caso a caso; mas é sempre possível que os requerentes da readmissão que tenham recebido um parecer negativo do confessor se reapresentem depois de algum tempo penitencial e formulem de novo o pedido novamente, e é igualmente possível, ou, melhor, praticamente certo que essa segunda demanda será acolhida.
Nessa fase – como sabemos – a tensão entre o papa e a Cúria alcançou o seu nível máximo, de modo que Francisco deve manter unida a maior maioria possível do episcopado que privilegia a ação pastoral e representa, desse modo, a Igreja missionária desejada por Francisco. Isso explica em grande parte o compromisso em matéria de matrimônio e de uniões civis.
Além disso, a palavra família é uma palavra plurissignificativa: designa uma comunidade de pessoas unidas entre si por vínculos de afeto ou de amizade ou de simples pertencimento a uma comunidade. Na antiga Grécia e na antiga Roma, a família compreendia homem e mulher, além de filhos e netos, mas também parentes distantes no grau de parentesco e escravos, malabaristas, bufões. Em suma, aquela que, na Roma clássica, era chamada de "gens" e também tinha um nome: a gens Júlia ou Cláudia ou Scipia ou Flávia.
Mas, em tempos atuais, também existem em todo o mundo as famílias mafiosas, que tomam o nome do seu chefe. De modo que a família matrimonial não tem uma natureza diferente daquela legalizada pelas uniões civis; sempre se trata de famílias, de uniões com conteúdos análogos, mas diversos termos lexicais que os distinguem. O papa conhece muito bem todas essas variáveis.
Além disso, há outro elemento que Francisco conhece igualmente bem: a concepção muçulmana da família é completamente diferente da católica, começando pela supremacia do homem e pela poligamia. Mas a concepção judaica também é diferente, porque a Bíblia do Antigo Testamento prevê famílias com duas ou até mesmo três esposas para um só marido.
Francisco prega o Deus único, especialmente entre os três monoteísmos, mas para todas as formas de divindade transcendente. Um Deus único com escrituras e tradições diferentes, mas, mesmo assim, único, de modo que as diversidades entre as escrituras e as tradições têm um impacto bastante modesto e também são submetidas a mudanças contínuas que incidem sobre a letra, mas não sobre a essência espiritual das religiões. E isso é tudo o que diz respeito ao Papa Francisco.
Mas agora há o côté laico para se descrever. Quem são e o que pensam sobre esses problemas?
* * *
As pessoas laicas se dizem tais independentemente de serem ou não religiosas em uma religião qualquer. Normalmente, elas são contrárias à transcendência; uma das "bíblias" do pensamento laico, de fato, é Baruch Spinoza, que teorizara a imanência da divindade com um lema já famoso: "Deus sive Natura".
Contudo, não somos secular e não nos autodefinimos como tais senão pelo fato de que nos identificamos com os valores de liberdade, igualdade, fraternidade. Gustavo Zagrebelsky, no jornal La Repubblica desse sábado, defende que a pessoa laica se identifica com a democracia, isto é, com a atribuição do poder ao chamado povo soberano. É verdade, mas até certo ponto. Nem sempre, de fato, o povo soberano sustenta com fatos e não só com palavras todos esses três valores.
A Atenas de Péricles estava cheia de escravos, assim como a Roma republicana e, depois, imperial. E também a Galileia, onde Jesus de Nazaré pregou há 2.000 anos. Por fim, a democracia burguesa sempre apontou para a liberdade às custas da igualdade, e a democracia operária, a fim de obter a igualdade, muitas vezes colocou a liberdade no sótão.
Concluo sobre esse ponto que as pessoas laicas certamente são democráticas, sempre que esses valores sejam, todos os três, considerados com igual força, o que significa que a defesa dos direitos e, junto com eles, dos deveres que cada direito implica como correspectivo em favor daquela própria comunidade que reconhece os direitos.
Pessoalmente, eu critico Renzi [primeiro-ministro italiano] todas as vezes (e, infelizmente, são várias) em que ele deturpa tanto os direitos quanto os deveres, seja no tabuleiro nacional quanto no internacional; mas, no caso em questão que diz respeito às uniões civis, o apoio que ele está dando à lei proposta pela senadora Cirinnà representa um compromisso do nosso presidente do Conselho que merece pleno louvor. Louvor que aumenta quando vemos que ele recebe a oposição da Liga Norte, da Forza Italia e de Grillo, com motivações desprovidas de sentido, para esconder aquele veio de ataque antirrenziano.
Existem milhares de possíveis motivações de antirrenzismo, começando pela lei constitucional e pelo referendo que deveria confirmá-la, mas essa contra a lei Cirinnà não, não se sustenta por razão qualquer daqueles que professam uma liberdade anárquica (Grillo) ou um clericalismo de massacre de São Bartolomeu.
Naturalmente, Renzi também, assim como o Papa Francisco, estudou algum compromisso para superar a hostilidade dos católicos do seu partido. Mas Cirinnà, embora emendada, mas substancialmente íntegra, é um notável passo à frente, sobre o qual se fala há 30 anos sem que nada tenha sido feito até agora.
Enquanto isso, a questão foi legalizada em todos os outros países do Ocidente, de modo ainda mais integral; trata-se, em grande maioria, de países onde as religiões dominantes são de caráter protestante e, portanto, com menos hesitação, ao contrário do que acontece entre nós, italianos.
A Itália ou é laica no sentido acima mencionado ou é católica, mas hoje, com um papa aberto ao encontro com a modernidade. Por isso, a lei Cirinnà vai ser discutida no próximo dia 28 e vai ser votada. O resultado favorável não é certo, mas provável. Eu já disse: desta vez, espero que Renzi vença.
Seria hora de falar da Europa. Faremos isso no próximo domingo. Hoje, só posso dizer que existem, em uma Europa dividida em mil pedaços, apenas duas posições positivas: a de Draghi, que está lutando com todos os meios para sair do perigo de outra recessão, e a de Schäuble, que propõe um Plano Marshall europeu que ajude os países africanos onde nasce a emigração que tem a Europa como objetivo.
Seja-me permitido encerrar com um trecho tirado de um poema de Thomas S. Eliot, que – me parece – capta plenamente a transitoriedade do tempo que nos atravessa:
"Em sucessão / casas surgem e caem, desmoronam, são ampliadas, são removidas, destruídas, reformadas... / Há um tempo para construir / e um tempo para viver e para gerar / e um tempo para que o vento rompa o vidro solto... / Temos que estar sempre nos movendo / a outra intensidade / a uma união a mais, uma comunhão mais profunda / através da escuridão fria e da desolação vazia, / do grito das ondas, do grito do vento, das vastas águas / da gaivota e do golfinho. No meu fim está o meu início".