16 Novembro 2015
"Nem os fins sociais, nem o bem comum, nem a fidelidade à verdade para poder servir à Justiça, toleram a desigualdade. Para tais objetivos éticos não basta mitigar a desigualdade, particularmente a social. A ética não pode se contentar em mitigar", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
O informativo on line da OAB está publicando o inteiro teor do novo Código de ética das/os advogadas/os. Ele vai entrar em vigor, de acordo com o seu artigo 79, cento e oitenta dias após a sua publicação, feita em 19 deste novembro. Em fins de maio do ano que vem, então, passa o mesmo a valer para todas/es essas/es profissionais do direito.
Se três anos de debate sobre matéria dessa relevância, como informa o mesmo site, foram necessários para formalizar a sua redação definitiva, é preciso antes do mais reconhecer-se o esforço do Conselho Federal da OAB em oferecer um bom guia de conduta para quem defende direitos alheios. Por essa mesma razão - defesa de direitos alheios - abre-se a possibilidade de, antes mesmo da entrada em vigor do novo Código - oferecer-se alguma crítica ao que parece poder fundamentar, sob justificativa ampliada, os seus objetivos, tendo-se em vista o quanto interessa aos titulares daqueles direitos o que nele está previsto.
Salvo melhor juízo, a leitura dos considerandos publicados pelo Conselho Federal da OAB, introduzindo o novo Código, cria uma expectativa nas/os advogadas/os que poderia ser melhor fundamentada, justificada e satisfeita em algumas das suas disposições subsequentes.
Eles lembram, por exemplo, a “elevada função social” das/os advogadas/os e a necessidade, consequentemente, “de modernização e atualização das práticas advocatícias com a dinamicidade das transformações sociais e das novas exigências para a defesa efetiva dos direitos de seus constituintes e da ordem jurídica do Estado democrático de direito.”
As transformações sociais mais preocupantes impondo novas exigências para a defesa efetiva dos direitos, estão muito presentes numa profunda, imoral e anti-ética injustiça social opressora de multidões pobres e miseráveis do país, uma realidade que impunha ao Código - respeitada seja toda a opinião em contrário - serem bem mais identificados e detalhados os deveres éticos de enfrentamento desse mal.
Já no parágrafo único do artigo 2º, em seu inciso II, desse novo elenco de obrigações éticas, pode aparecer um sinal dessa necessidade. Ele prevê como dever do advogado (da advogada também, por pressuposto) o de ele/a “atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa fé”.
Não seria conveniente referir coragem, em vez de destemor? - um detalhe desses pode parecer insignificante mas não é. Quem faz da profissão a defesa do direito alheio deve respeitar o nível de conhecimento, a cultura média do povo que defende e essa, no Brasil, pouco sabe o que seja destemor mas sabe bem o que significa coragem, pois é dessa virtude que mais precisa para se defender das injustiças que sofre.
Até a raiz da palavra ajuda nisso. Coragem tem a mesma raiz de coração, um órgão símbolo de sensibilidade humana, de quem é movido por amor a injustiçadas/os carentes de defesa, uma virtude fundamental para qualquer profissional do direito, uma condição intrínseca de conduta ética.
O artigo 3º dispõe: “O advogado deve ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades, para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos.”
Se o meio (Direito) só serve para mitigar as desigualdades, ele é inadequado para alcançar o fim (garantia da igualdade). Aí se desconsidera a garantia de igualdade como condição necessária de justiça. A nossa legislação é toda ela tão acostumada a “conceder” espaço a direitos, nos quais existe inerência de valores éticos, que ela nem nota (as vezes nota, mas é insincera, como já observou o ministro Luís Roberto Barroso, do STF), que esse vício pode contaminar até os redatores dum Código de ética.
Assim, a contradição presente nesse artigo 3º mais se acentua se for comparada com o preâmbulo do Código, onde se prevê, como um dos mandamentos da/o advogada/o “pugnar pelo cumprimento da Constituição e pelo respeito à Lei, fazendo com que o ordenamento jurídico seja interpretado com retidão, em perfeita sintonia com os fins sociais a que se dirige as exigências do bem comum; ser fiel à verdade para poder servir à Justiça como um dos seus elementos essenciais.”
Nem os fins sociais, nem o bem comum, nem a fidelidade à verdade para poder servir à Justiça, toleram a desigualdade. Para tais objetivos éticos não basta mitigar a desigualdade, particularmente a social. A ética não pode se contentar em mitigar, mas sim em erradicar a desigualdade. Essa é injusta e muito própria do padrão “ético” inspirador do nosso modelo econômico - político capitalista, imoral por sua própria natureza, baseado exclusivamente no egoísmo do interesse próprio. As raríssimas exceções de alguns capitalistas honestos são exceções testemunhas da regra.
Quando o artigo 5º do Código, também, determina que “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização” está denunciando outra contrariedade ao artigo 3º, pois a mercantilização, atualmente planetária pelo fenômeno da globalização dos mercados, é a principal causa da desigualdade social. Anônima como é, sua imoralidade é praticamente inimputável, seja pelas leis, seja pelos Estados, cabendo às/aos profissionais do direito não só denunciarem os efeitos injustos dessa violência, como fazerem da sua profissão uma competente defesa ético-jurídica das suas vítimas. Inclusive, de mãos dadas com essas vítimas, muito próximas delas - mandato vem do latim, mão dada, como nesse espaço tem se insistido tanto em outros textos - cumprindo o seu principal dever ético profissional: o de não permitir, nem à lei, nem ao Estado, nem à própria sociedade civil, deixarem-se conformar com a injustiça social, somente “mitigando” a desigualdade como pretende esse artigo 3º do novo Código.
Daí decorre, a nossa ver, uma outra impropriedade. Ao regular a conduta ética da advocacia “pro bono”, ou seja, a que é prestada gratuita e voluntariamente, para quem não pode pagar os seus serviços, o novo Código engessou a mesma como “eventual” (artigo 30, parágrafo primeiro). Precisava? Na Renaap (Rede Nacional dos advogados populares), por exemplo, e em muitos escritórios de advocacia relacionados com ONGs e pastorais sociais, há muitas/os advogadas/os prestando gratuitamente os seus serviços de modo permanente, pois têm consciência ética de a injustiça social não tirar férias e as Defensorias Públicas nem sempre se encontrarem em condição de atender o volume da demanda que recebe.
O novo Código, talvez com o acréscimo desses cuidados, fundamentaria melhor os seus objetivos e certamente garantiria com maior probabilidade as suas funções: inspirar firmemente o exercício ético da advocacia como forma de sustentação moral da defesa dos direitos pela mesma assumidos, bem como de maior clareza e segurança sobre quem é responsável pelas injustiças contra as quais ela presta os seus serviços.
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Um comentário crítico ao novo código de ética da advocacia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU