28 Outubro 2015
Três semanas após deixar a chefia do Ministério da Educação (MEC), o filósofo Renato Janine Ribeiro diz que o Brasil vive tempos de insensatez.
Sindicatos fazem greves e exigem aumentos, enquanto deputados tentam aprovar projetos que aumentam os gastos públicos. Apesar do agravamento da crise econômica, governo e oposição evitam ceder em suas posições, temendo favorecer os rivais.
A entrevista é de João Fellet, publicada por BBC Brasil, 26-10-2015.
"Não percebem que é um abraço de afogados e que há um risco tremendo de destruir tudo", diz ele.
Professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), Janine foi demitido na última reforma ministerial, negociada para aumentar o espaço do PMDB no governo.
Ele deixou o posto para dar lugar a seu antecessor no MEC, Aloizio Mercadante, desalojado da Casa Civil por pressões da base aliada.
Em entrevista à BBC Brasil, o filósofo diz ter se chocado em sua gestão com o "corporativismo" de sindicatos de professores, especialmente de universidades.
Ele também defendeu o MEC de críticos que denunciaram esforços de "doutrinação" e "ideologização" na Base Nacional Comum Curricular e em questões do último Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).
Eis a entrevista.
O senhor escreveu que O Alienista, de Machado de Assis, é a melhor análise do momento político atual. Por quê?
Porque estamos numa situação em que a insensatez prevalece. Um setor está querendo destruir o outro. Não percebem que é um abraço de afogados e há um risco tremendo de destruir tudo. Isso pode acontecer com gente que faz greves indevidas, com a pauta bomba do Congresso, com a recusa do Fernando Henrique (Cardoso) em dialogar com o governo. Vários atores estão apostando na piora.
Há medo grande de certas pessoas no sentido de, se deixarmos a situação melhorar, o outro lado vai sair ganhando. A oposição tem medo de, se a situação melhorar, o governo tirar vantagem. E o governo tem medo de, se fizer certas concessões, a oposição ganhar com isso. Mas não tem jeito, estamos todos no mesmo barco.
Setores da oposição argumentam que uma troca no governo poderia melhorar o cenário.
Fazer um segundo impeachment em 20 anos, um impeachment sem nenhuma base jurídica, sem nenhuma acusação à pessoa da presidente, é gravíssimo, destrói a democracia no Brasil. Sem contar que criará conflitos internos. Quem quer isso?
O empresariado tem perfeita noção de que, se está ruim assim, vai ser muito pior se houver situação em que a presidente saia como vítima e em que quem apoia o governo sinta que foi vítima de um golpe. A reação vai existir. Não sei qual, mas vai ter violência.
O governo não tem uma parcela de responsabilidade pela situação atual?
O governo minimizou durante a campanha passada os problemas que havia no Brasil e demorou a tomar medidas de ajuste que levassem o país a uma situação de mais equilíbrio.
Não houve falhas na forma como se compôs a relação do governo com o Congresso?
O problema é o seguinte: por que Dilma foi tão popular nos primeiros meses de mandato? Porque demitiu todo mundo acusado de bandido. A sociedade falou: "pô, finalmente alguém que não gosta de corrupção". Fernando Henrique e Lula abafavam os casos. Essa mesma virtude dela de detestar a corrupção virou um vício, porque ela não dialoga com os caras.
Nesse ponto o Brasil teria que escolher: quer corrupção, quer que tudo funcione bem, com os corruptos mandando, ou quer que acabe com a corrupção e pague o preço por isso?
Qual o melhor desfecho para a crise?
É necessário retomar o desenvolvimento econômico e segurar a inclusão social. É como se precisasse, de um lado, de uma política que a direita oferece, de credibilidade econômica, e uma política que a esquerda oferece, de inclusão. A Dilma, com todos os erros, tem feito o possível e o impossível para preservar os mais pobres. Certamente outro governo já teria largado isso há muito tempo.
Alguns deputados criticaram trechos do último Enem que trataram da condição da mulher, dizendo que estimulariam uma "doutrinação". Como encarou as críticas?
Existe um setor muito conservador no Congresso, que tem protestado contra uma série de medidas liberais do ponto de vista da conduta pessoal. A reação era de se esperar, mas eles estão errados. Ninguém no MEC está querendo impor um modelo. Querem aumentar a liberdade das pessoas para viver.
Que achou do tema da redação do exame: "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira"?
Foi ótima. A única coisa é que, diferentemente de outros anos, é um assunto em que pessoas não podem ser a favor ou contra. Afirmar que não persiste a violência contra a mulher é um erro e justificaria a reprovação. O que aluno pode é discutir onde está a violência, qual o grau, se a Lei Maria da Penha é boa, então o espaço de formulação ficou mais preciso.
Estamos vivendo um período de retrocesso dos valores éticos. A liberdade e a igualdade estão em xeque - há vários projetos no Congresso contra esses valores, sobretudo os que querem eliminar tipos de família que já existem. Então, nesse caso, acho muito importante acentuar que temos problema de desigualdade, de violência, que a igualdade não está assegurada para mulheres, negros e outros grupos.
O sociólogo Demétrio Magnoli escreveu um artigo dizendo que a Base Nacional Comum Curricular aprovada em sua gestão é "um decreto ideológico de refundação do Brasil". Ele disse que a proposta de ensino em história ignora vários episódios essenciais para a formação do país.
Ele não leu a base. Convidamos uma série de equipes para fazerem projetos. A primeira versão da proposta de história me incomodou muito pelo caráter extremamente ideológico. Era uma visão em que não existia história do mundo, só história do Brasil e da África. Falava só de revoltas e não mencionava nem sequer a Inconfidência Mineira, porque é um movimento que não tem participação significativa de negros ou indígenas.
Questionei a primeira versão entregue e não deixei publicar. Pedi que fosse um trabalho não ideológico, e eles entregaram um texto quase sem mudanças. Então mandei publicar com o alerta de que desejava muita discussão e marquei uma reunião - não sei se acabou havendo ou não - com alguns grandes historiadores brasileiros para discutirem e fazerem comentários. Esses documentos são de discussão, nenhum deles é uma proposta do governo.
A publicação não significou um endosso?
Não, isso foi dito com todas as letras. No caso da proposta de história, certamente requer muita mudança.
Foi o MEC quem convocou essas equipes?
Sim, por determinação do Plano Nacional de Educação. Não fui eu que escolhi o critério, foi o secretário de Educação Básica. O MEC procurou pegar professores que estão na sala de aula, pesquisadores universitários e o pessoal ligado a redes municipais e estaduais de educação. A escolha se baseava em pessoas que estão acostumadas a dar aula.
Mas há controvérsias. No caso da proposta de português, o ministro (Aloizio) Mercadante contestou o pouco espaço dado à gramática. O que mostra que o próprio MEC tem divergências em relação a essas propostas.
O senhor mudou alguma percepção sobre a educação ao exercer o cargo de ministro?
Em linhas gerais, penso o mesmo que pensava. Temos uma prioridade absoluta do MEC com a educação básica, mas o que me preocupou foi ver o quão difícil é isso. Foi muito chocante ver um movimento sindical de professores universitários, o Andes, pedindo que 75% de todo o orçamento de educação fosse para instituições federais de ensino. Ou seja, que aquele dinheiro que a União canaliza para a educação básica, que é mais do que 25% e faz uma diferença, deveria ser cortado.
Também me impressionou muito ver como é difícil negociar com os diferentes atores da educação, sobretudo os mais corporativistas. É fundamental elevar o salário do professor da educação básica, mas uma greve de 90 dias é uma coisa que não tem justificativa ética e afeta gravemente as crianças. Você tem atores voltados a seu interesse imediato e com muito pouca disposição em assegurar o aprendizado do aluno.
Na universidade, o senhor não tinha essa percepção sobre os sindicatos?
Tinha, mas não pensava que fosse tão forte. As greves municipais e estaduais de professores geralmente se deram porque as pessoas não tinham recebido aumento neste ano. Nas universidades, fizeram uma greve de quatro meses, não importando o fato de que já tinham tido aumento e de que os recursos são escassos.
Lula e Dilma criaram cerca de 20 universidades federais. Dezenas de milhares de professores e funcionários não estariam onde estão se o país não tivesse feito o esforço que fez nos últimos dez, doze anos. Essas pessoas fazem greve e paralisam tudo num momento em que sabem que o Brasil não tem condições.
Qual a margem do governo para contornar obstáculos?
Pequena. Ao longo dos anos Lula, o governo fez uso inteligente do dinheiro obtido pelas commodities (matérias-primas), que foi muito canalizado para a educação. Mas isso trouxe um problema: fez com que o dinheiro parecesse a solução. Então sem dinheiro você fica muito limitado.
São raros os países que avançaram na educação básica rapidamente dentro do regime democrático. Os grandes exemplos citados, na Ásia, são regimes autoritários. Dizem que Polônia e Irlanda avançaram, mas a Polônia vinha do comunismo. Pode-se ter a opinião que quiser, mas o comunismo valorizava a educação, a cultura, tanto que Cuba tem os índices que tem.
O senhor foi bastante criticado, inclusive por colegas, por ter dirigido o MEC num momento de grandes cortes. Como se sentiu?
No começo dei alguma importância, mas não podia ter respeito por pessoas que acham que você só deve exercer funções no governo quando tem dinheiro sobrando.
Como lidar com a falta de recursos?
Uma das coisas que deveriam ter sido feitas e a greve das federais impediu seria concatenar as ações das universidades para evitar a duplicação de recursos. Por exemplo, você não precisa ter 50 cursos de ensino a distância, um de cada universidade, na matéria tal. Bastariam dois ou três de excelente qualidade.
Há uma oposição grande ao aumento de impostos, a uma canalização de recursos, então você tem de provar à sociedade que consegue ter resultados efetivos na educação. Há também grupos sindicais que acham que nenhum recurso privado pode ser aceito na educação pública, ainda que esteja faltando dinheiro público.
Como o dinheiro privado poderia ser aproveitado?
Cursos de extensão, especialização e mestrados profissionais trazem um retorno muito grande para o bolso de quem os faz. Não existe razão para o dinheiro público ir para eles. Você pode também estabelecer acordos no ensino técnico com empresas.
Há outro exemplo, o Instituto Germinare, mantido pelo ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles. É um curso privado, mas gratuito, para jovens dos dez aos 17 anos. Eles fazem o curso regular de manhã e, à tarde, um curso técnico de administrador. É uma iniciativa privada que deve ser conferida e, se for boa, deve ser estimulada.
Há amplos setores privados dispostos a contribuir com a educação, entre os quais grupos empresariais, além de institutos e fundações que já contribuem.
Nos Estados Unidos, muitos milionários doam suas fortunas para universidades. Isso funcionaria no Brasil?
Seria ótimo, mas é muito difícil. A cultura brasileira é uma cultura de privatização do ensino público. Parece paradoxal dizer que o Brasil seja assim e os Estados Unidos tenham uma visão mais pública, mas a cultura brasileira está muito ligada à seguinte ideia: você faz um curso de direito, medicina, engenharia, ganha fortunas com isso, e essa fortuna é sua. Você não deve nada à sociedade.
É um dos erros terríveis que temos do ponto de vista ético: o descompromisso do beneficiário da educação com as pessoas - no caso, a sociedade - que custearam sua educação.
Uma das maiores iniciativas em educação do governo Dilma é o programa Ciência sem Fronteiras. O dinheiro destinado ao programa se justifica?
Hoje o Ciência sem Fronteiras não poderia ser iniciado. Tanto que, enquanto estive no ministério, não abri novos editais. O valor por aluno é muito caro, ainda mais agora que dólar subiu. Mas quando o Brasil tinha recursos, foi uma iniciativa muito importante mandar multidões de estudantes de graduação para conhecer o que se faz nas áreas tecnológicas no exterior. É um programa bom, mas que precisará ser revisto - em especial o acompanhamento dos alunos, que terá de ser mais rigoroso.
Muitas vezes o aluno não era acompanhado em seu dia a dia. Houve casos de alunos que não fizeram o que deveriam ter feito, que ficaram viajando etc e tal. Mas a maioria cumpriu o que deveria.
A ênfase em ciências e exatas do programa descontentou muitos estudantes de humanidades.
Temos de pensar nas prioridades nacionais. A presidente Dilma é uma mulher muito culta. Conversamos muito sobre literatura latino-americana. Ela conhece ballet, ópera, música clássica. O ponto dela é: enquanto você tem gente passando fome, a prioridade é aumentar a produtividade na economia. E se você não fizer isso, terá salários baixos e, portanto, o acesso a toda essa cultura não vai existir.
Que iniciativas que conheceu no MEC mais chamaram sua atenção?
A escola (Pres. Campos Salles) de Heliópolis é um caso interessante, porque fica numa região conflagrada de São Paulo, de muita violência. Há uns 15 anos, furtaram 21 computadores que estavam nas caixas. O diretor saiu pelas ruas falando: "seus filhos foram roubados, roubaram o futuro dos seus filhos". Isso criou tal comoção no bairro que os próprios ladrões devolveram os computadores. E aí a reação do diretor foi derrubar os muros da escola. Foi muito simbólico. Hoje a escola tem um sistema moderno, mais participativo.
Outro caso foi o da escola (Padre João Bosco de Lima) de Mauriti, uma cidade pobre no sul do Ceará. No Brasil, a média do Enem entre estudantes do nível socioeconômico mais alto é 611, e a do nível mais baixo é 429. Mauriti teve 700 na redação. Ali, dos 99 alunos inscritos no último ano do ensino médio, todos prestaram o Enem. É comum alguns se ausentarem, para não baixar a média da escola. Isso não aconteceu em Mauriti. Na escola, cada professor é responsável por uma classe. Quando há problemas, ele fala com os pais, visita as famílias.
O Ceará tem feito grandes avanços na educação básica. Primeiro, com seu Plano de Alfabetização na Idade Certa. Se até os oito anos a criança não sabe ler, escrever e fazer contas, vai ficar mais difícil aprender depois. O Ceará preparou cartilhas, treinou professores, monitorou tudo. O avanço é genial.
Em que medida casos como o de Mauriti e Heliópolis dependem de diretores excepcionais? Qual a possibilidade de replicá-los?
Para isso criei um programa de formação de diretores. A ideia é, com R$ 10 milhões, formar todos os diretores de escolas públicas com mais de 600 alunos, que são 30 mil. Tem que fazer o diretor saber ler os dados que aparecem nas pesquisas do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas), baseadas nos exames nacionais de português e matemática que fazemos com os alunos do quinto e nono anos. Segundo, tem de saber quais estratégias adotar conforme os resultados. Terceiro, saber lidar com conflitos e organizar equipes.
Ficou frustrado pela maneira como deixou o ministério e a curta duração de sua gestão? O que mais gostaria de ter feito no cargo?
Foi sim frustrante. Pretendia discutir os cursos universitários, aumentar o ensino técnico no plano do ensino médio e focar muito pesadamente a alfabetização. Gostaria no curto prazo de botar todos os novos recursos da educação para a alfabetização. É muito difícil alfabetizar, exige uma competência muito grande.
De qualquer forma, o positivo nisso tudo é que, enquanto o Ministério da Saúde está sendo ocupado por interesses políticos, o Ministério da Educação não sofreu nenhum tipo de intervenção dessa ordem.
O ex-ministro da Saúde Arthur Chioro fez duras críticas ao deixar o governo.
O ministério dele foi entregue a um partido (PMDB) que está aparelhando uma área em que houve trabalho extremamente sério nos últimos anos. Então há muitas diferenças. Na Educação, não tive nenhuma pressão nessa direção. E o ministro Mercadante também, a fama dele é que não nomeia indicados políticos.
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Governo e oposição dão 'abraço de afogados', diz Janine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU