03 Agosto 2015
"Para o Podemos, o social é irredutível a qualquer forma de síntese: esta deve partir necessariamente do exterior, ou seja, de um partido – que, por certo, encoraja formas de auto-organização (como ocorreu por exemplo em Barcelona) mas vê apenas no governo, ou melhor, no exercício do governo, uma função propulsora, unificante. O que costumava sair pela porta – a forma partido como única dimensão da política – reentra pela janela como caminho principal para conquistar não o poder, mas o governo. Uma simplificação que entra em rota de colisão com a redefinição da forma Estado na globalização. Não é um problema que possa ser facilmente apresentado como desvio de um improvável e pré-constituído 'caminho correto'", escreve Benedetto Vecchi, em artigo publicado pelo no jornal II Manifesto, traduzido por Antonio Martins e reproduzido por Outras Palavras, 30-07-2015.
Eis o artigo.
Populismo 2.0 é a expressão usada habitualmente para qualificar a experiência política do Podemos, o partido espanhol que sacudiu o panorama político ibérico. Os analistas, como sempre, colocam em evidência as distâncias, os elementos de descontinuidade em relação ao pensamento político clássico. Ao fazê-lo, procuram inscrever esta jovem formação na família do populismo de matriz latino-americana, demonizado na Europa.
A leitura de Desobedientes – de Chiapas a Madri, de Pablo Iglesias, explode tal simplificação em mil pedaços. Com uma ressalva: não se desmente a qualificação de antissistema atribuída ao partido – ela é enriquecida, ao contrário, de novos elementos, que incluem o Podemos na crítica à democracia representativa. O que não exclui, porém, uma forma institucional fundada num equilíbrio dinâmico entre a democracia direta e sua forma representativa – além do reconhecimento de processos de autogoverno articulados pela sociedade civil por meio de projetos como cooperativas sociais, organizações de mútuo socorro e sindicalismo de base, coordenados em rede.
Na proposta do Podemos, são fortes os ecos de um conjunto heterogêneo de teóricos, economistas e filósofos, que dão potência comunicativa às posições do partido. Há, claro, Ernesto Laclau, o teórico da “razão populista” e Chantal Mouffe, a filósofa do “agonismo plural”; mas também a economia-mundo de Immanuel Wallerstein, a tecnopolítica “a la Manual Castells” e a soberania de Império de Toni Negri.
Esta heterogenidade teórica não representa um problema para o Podemos, já que se privilegiam as experiências de auto-organização e de comunicação por meio de estilos que às vezes recordam os do marketing político ou da prática de “autorreflexão”.
O livro enriquece ainda a história do Podemos com elementos e experiências que condicionaram fortemente o pequeno grupo de intelectuais, midiativistas e militantes que de fato fundaram o partido.
A gênese do Podemos, na verdade, descende de movimento sociais que marcaram os anos 1990 na Europa, como os Tute Bianche da Itália. A obra é resultado de uma pesquisa universitária que Iglesias dirigiu, junto com outros pesquisadores, sobre movimentos sociais espanhóis até a intensa estação dos Indignados, interpretada como último capítulo de uma história que começa com a revolta zapatista em Chiapas, desenvolve-se nas mobilizações antiglobalização da virada do século e termina com os Indignados, que colocam em evidência o poder dos movimentos – mas, ao mesmo tempo, seus limites, impasses e becos sem saída.
A dupla “conflito e consenso”
Utilizando instrumentos próprios da pesquisa social, Iglesias passa em revista os documentos, artigos e ensaios escritos pelos Tute Bianche, ou os assinados pelo escritor coletivo Wu Ming. Em seguida, dá a palavra a alguns porta-vozes dos Tute Bianche (Luca Casarini, por exemplo). Emerge um mosaico que se propõe como uma contra-história do neoliberalismo global e da crise radical dos partidos de esquerda em escala europeia. Para Iglesias, o neoliberalismo foi um fenômeno mundial, que no entanto encontrou movimentos de resistência inéditos, seja pelo léxico político usado, seja pela composição social dos movimentos que se opunham.
Em primeiro lugar, o zapatismo, privilegiado pelas análises sobre a globalização mas também pela rede de comunidades indígenas que estão na base do Exército Zapatista de Libertação Nacional, pelo ensaio de uma democracia direta e de uma organização distante anos-luzes dos exércitos populares da luta armada latino-americana. A comandância obedece ao povo, e não vice-versa.
Portanto, não há uma estrutura hierárquica piramidal, mas uma rede social e política que toma decisões com base na polaridade entre conflito e consenso.
O segundo aspecto que se impõe com o zapatismo é a comunicação – ou seja, um tipo de discurso dirigido à sociedade civil organizada (um conceito que teve certo sucesso teórico na virada para o novo milênio, sobretudo na América Latina), com finalidades também organizativas. E se no México isso preservou a experiência zapatista das dinâmicas típicas e derrotadas do foquismo ou dos exércitos populares, do outro lado do oceano, na Europa, o movimento constituiu um potente produtor de imaginário, segundo o qual o neoliberalismo não é o fim da História, mas o contexto no qual se deve “produzir” um “outro mundo possível” que não repetirá o triste percurso do socialismo real. Emerge no livro uma retomada, obviamente renovada do speech in, da street parade, ou seja, de práticas comunicativas e formas de mobilização com raízes nos mouvements norte-americanos.
Curtos-circuitos e vazios significativos
A história, porém, não segue trajetórias lineares. Há sempre cortes e descontinuidades. E continuidades. A descontinuidade entre o Podemos e os Tute Bianche deve ser buscada nas análises do Político que a jovem formação política espanhola propõe. Já a continuidade deve ser buscada na tensão de imaginar formas de ação política e social que respondam à duplas “conflito-consenso”. Na política, é evidente uma revisita crítica a Ernesto Laclau.
Afirmou-se muitas vezes que o Podemos flerta com o populismo; buscou-se assim qualificar o partido de Iglesias como uma formação antissistema.
A acusação erra completamente o alvo: a “razão populista” de Laclau propõe precisamente o problema do governo e da capacidade de mediação que este pode exercitar entre múltiplos interesses particulares que incendeiam a realidade social.
Num longo texto publicado no site Euronomade (Egemonia: Gramsci, Togliatti, Laclau), Toni Negri evidencia, com razão, a vocação governativa das teses de Laclau, que são também rastreáveis no Podemos. Além da ênfase retóricoa que o partido dedica à superação da distinção entre direita e esquerda, emerge em seus documentos e na parte final do livro de Iglesias um curto-circuito teórico e, portanto, político. A sociedade espanhola, e as capitalistas em geral, são marcadas, segundo o Podemos, pela diferença entre os poucos que estão em cima e a grande maioria dos de baixo, entre os empobrecidos pela crise e os que ganham com ela. Daí surge a ideia pouco precisa de “casta”, um vazio no sistema teórico do Podemos.
A tarefa do Podemos é inventar politicamente o povo. Deste ponto de vista, não estamos tão longe daquele Louis Althusser que sustentava que a classe deveria ser produzida como sujeito político pelo partido. O Podemos propõe-se a inventar não a “classe”, mas o povo, por meio de um dispositivo político – o partido? o governo? – com vocação de universalidade. Ernesto Laclau não poderia encontrar melhores intérpretes de sua análise do Político. Falta em tudo isso uma referência às transformações sociais e às relações sociais de produção do capitalismo contemporâneo. E as tímidas referências à economia-mundo de Immanuel Wallerstein não podem preencher este vazio.
Problemas “tecnopolíticos”
Para o Podemos, o social é irredutível a qualquer forma de síntese: esta deve partir necessariamente do exterior, ou seja, de um partido – que, por certo, encoraja formas de auto-organização (como ocorreu por exemplo em Barcelona) mas vê apenas no governo, ou melhor, no exercício do governo, uma função propulsora, unificante. O que costumava sair pela porta – a forma partido como única dimensão da política – reentra pela janela como caminho principal para conquistar não o poder, mas o governo. Uma simplificação que entra em rota de colisão com a redefinição da forma Estado na globalização. Não é um problema que possa ser facilmente apresentado como desvio de um improvável e pré-constituído “caminho correto”…
No fundo está, na verdade, a diferença entre exercício do poder e exercício do governo – já que este segundo termo não coincide necessariamente com o primeiro. Este é, aliás, um dos nós que a experiência dos Tute Bianche – mas também de outros movimento sociais – não conseguiu resolver. O Podemos enfrentará o obstáculo recorrendo à comunicação também como forma organizativa. Aqui, há continuidade plena com a estação da desobediência. Pode-se chamá-la “tecnopolítica”, como se fez na Espanha, mas a comunicação – sua produção e circulação – é o contexto em que se manifestam os “particulares” do social, nos quais um partido introduz uma relação.
Antiautoritários e carismáticos
Estamos evidentemente numa situação em que se promove o encontro entre diferenças, escolhendo a rede como modelo organizativo. O partido proposto pelo Podemos não pode ser reconduzido aos modelos da social-democracia ou do comunismo do século XX. É um híbrido entre a tradição libertária e antiautoritária e os processos de decisão que têm, como garantes, líderes carismáticos aos quais se delega implicitamente a gestão da organização. Para o Podemos, tudo isso serve para desenredar o emaranhado do consenso e do conflito. O primeiro se constrói através da comunicação; o segundo relaciona-se ao político – ou seja, ao partido, ao papel de sintetizar.
A centralidade está, portanto, na função de mediação que o governo pode exercer. É nesta perspectiva – e aqui toma-se distância implícita da experiência de desobediência – há primazia na busca do consenso, em relação ao conflito, como se fossem termos antitéticos. Dito de outro modo, o conflito só pode desencadear sua capacidade de modificar os balanços de poder após a construção do consenso. Esquece-se que são, ao contrário, elementos temporalmente contíguos: é o conflito que produz consenso, e não vice-versa. Temas e argumentos que estão na ordem do dia, se olha-se com desconfiança participativa o que está ocorrendo na Grécia. E na Espanha, após a conquista do governo, em muitas grandes cidades, por parte de coalizões políticas que veem o Podemos como protagonista.
Isso não significa, contudo, rejeitar a aposta implícita na gestão do governo – mas pensar que a conquista de uma maioria parlamentar ou local não coincide com a conquista do poder. Sobre este terreno abrem-se cenários inquietantes, difíceis de padronizar, mas também problemas instigantes.
Significa acertar as contas com o capitalismo real, suas relações de poder, a centralidade, para qualquer movimento, das relações sociais de produção e os sujeitos múltiplos, diferenciados e heterogêneos do trabalho vivo, do dispositivo – portanto, dos conflitos – que podem colocar em crise as relações de poder. Estar, portanto, dentro da grande tempestade da crise. Situação perigosa, que poderia ser exorcizada invocando talvez a salvação de algum poder destituinte dos movimentos. Mas, como dizia um poeta, onde maior é o perigo, maior é a possibilidade de salvação.
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Podemos, contra o sistema, porém no governo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU