23 Abril 2015
"Quando, no Vaticano, os analistas e comentadores na imprensa examinavam o tráfego nas mídias sociais dos últimos sete dias, as suas atenções poderiam se afastar da Turquia e da diáspora armênia e se direcionarem para uma constelação de tuítes, comentários e postagens no Facebook que emanavam da África", escreve David Olusoga, autor do livro “The Kaiser’s Holocaust: Germany’s Forgotten Genocide and the Colonial Roots of Nazism” junto com Casper Erichsen, em artigo publicado pelo jornal The Guardian, 18-04-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Já faz uma semana desde que o Papa Francisco descreveu a matança de 1 a 1,5 milhão de armênios, pelas forças da Turquia otomana durante a Primeira Guerra Mundial, como sendo “primeiro genocídio do século XX”. As reações à declaração do pontífice eram, em sua maior parte, previsíveis. No domingo, houve uma reação indignada quase instantânea na Turquia. Na segunda-feira, o embaixador turco no Vaticano recebeu uma ordem para deixar a cidade-Estado e, na terça-feira, as palavras do papa haviam sido condenadas pelo presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.
Na diáspora armênia, em comunidades que se estendem de Paris a Milwaukee, de Londres a Montreal, e na própria Armênia, houve uma onda de otimismo – e mesmo de gratidão – porque o líder dos católicos usou a palavra “genocídio” para descrever o assassinato em massa dos seus ancestrais.
Nos EUA, país que acolhe mais de um milhão de armênios, houve pedidos dirigidos ao presidente Barack Obama para que seguisse o exemplo do papa e, formalmente, classificasse, como um genocídio, aquilo que os armênios chamam de “o Grande Mal”. Observaram que ele esteve disposto a pronunciar esta palavra em 2008, quando, como senador, cortejava os votos dos armênio-americanos.
No entanto, quando, no Vaticano, os analistas e comentadores na imprensa examinavam o tráfego nas mídias sociais dos últimos sete dias, as suas atenções poderiam se afastar da Turquia e da diáspora armênia e se direcionarem para uma constelação de tuítes, comentários e postagens no Facebook que emanavam da África. Aí, um outro debate se levantou na semana passada. A descrição do massacre armênio como o “primeiro genocídio do século XX” era, simplesmente, incorreta. Esta cruel condecoração pertence ao genocídio que a Alemanha imperial desencadeou, uma década antes, contra os Hereros e Namas, dois grupos étnicos que viviam na antiga colônia do sudoeste africano, atual Namíbia.
O genocídio namíbio, 1904-1909, não foi só o primeiro do século XX; em vários sentidos, ele também pareceu prefigurar os horrores posteriores daquele século conturbado. O extermínio sistemático de aproximadamente 80% do povo Herero e 50% dos Namas foi obra tanto dos soldados alemães quanto dos governantes coloniais; assassinos frios, burocratas. Os relatos mais confiáveis estimam que 90 mil pessoas foram mortas.
No caso dos Hereros, uma ordem oficial por escrito – a ordem de extermínio – foi emitida pelo comandante alemão, explicitamente condenando todo o povo à aniquilação. Depois que tentativas militares de pôr em prática esta ordem se viram frustradas, o extermínio dos Hereros sobreviventes, junto com os Namas, teve continuidade em campos de concentração, termo usado na época para as instalações alemãs construídas na Namíbia. Algumas das vítimas do genocídio namíbio foram transportados para estes campos em caminhões puxados por bois e os corpos de algumas delas foram enviados para análises raciais e dissecações pseudocientíficas.
Tudo isso é, hoje, bem conhecido e amplamente aceito na África e na Alemanha. Em 2004, o governo alemão pediu desculpas aos Hereros e admitiu que o aquilo que a Alemanha havia feito aos ancestrais deles constituía um genocídio. Como o coautor de uma das histórias mais recentes do genocídio, sou frequentemente convidado a participar de congressos e dar palestras sobre o assunto na Alemanha – e este assunto está ficando cada vez mais conhecido. Há uma década, o meu coautor e eu descrevemos o que aconteceu na Namíbia entre 1904 e 1909 como o “genocídio esquecido da Alemanha”. Esta afirmação está desatualizada em quase todos os lugares do mundo, exceto, pelo que parece, no Vaticano.
A questão agora é saber se a declaração do papa foi feita na ignorância ou se o Vaticano caiu no pecado da omissão deliberada. Em todo caso, trata-se de um episódio bizarro e autodestrutivo. O catolicismo cresce rapidamente na África mais do que em qualquer outro lugar: 200 milhões de africanos seguem o credo católico. Mas a consciência histórica está, também, aumentando no continente e crimes tais como o genocídio namíbio não podem mais ser ignorados, seja por acidente ou deliberadamente.
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Prezado Papa Francisco, ocorreu na Namíbia o primeiro genocídio do século XX - Instituto Humanitas Unisinos - IHU