08 Abril 2015
Rafael C. Fornasier, mestre em Antropologia teológica, doutorando em Ciências do Matrimônio e da Família e assessor da Comissão E. P. para a Vida e a Família da CNBB, elaborou a reflexão que publicamos a seguir como uma contribuição para o debate sobre o tema do próximo Sínodo dos Bispos e que tem sido amplamente acompanhado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis o artigo.
1 – Partindo dos Lineamenta
No trecho do questionário relativo à terceira parte da Relatio Synodi – dedicada às perspectivas pastorais (cf. 23-46) – se afirma que o Sínodo extraordinário iniciou uma “viragem pastoral”, e que esta deve ser levada adiante em seus aprofundamentos e implementação, evitando-se “começar de zero” no caminho já iniciado pelo processo sinodal.
E, antes das perguntas relativas (cf. 35-39) ao tópico intitulado Cuidar das famílias feridas (separados, divorciados não recasados, divorciados recasados, famílias monoparentais), se insiste, citando a Evangelii gaudium, na necessidade de encrementar a arte do acompanhamento, da proximidade com as diversas situações.
Quanto às motivações que conduzem hoje a se refletir sobre essa viragem pastoral, sobretudo no que concerne a situação dos divorciados recasados, fazem-se necessárias algumas observações:
a – O acompanhamento pessoal como critério de mudança
A perspectiva do acompanhamento das pessoas, ou do desenvolvimento de uma pastoral de proximidade, deve nortear qualquer proposta que venha a sugerir mudanças no modus operandi da aplicação do direito canônico, da doutrina da Igreja sobre os divorciados recasados e, consequentemente, da ação pastoral quotidiana, sob pena de se pretender dar soluções que vão no sentido contrário do que se intenta, isto é, uma maior acolhida mais humana e menos “burocrática”, segundo a misericórdia e a verdade em relação à vida e às situações concretas das pessoas de nosso tempo. O Papa Francisco, no dia 07 de dezembro de 2014, ou seja, após o Sínodo, afirmou ao Jornal Lanación: “E no caso dos divorciados recasados, colocamo-nos: que podemos fazer para eles, que porta se lhes pode abrir? E foi uma inquietação pastoral: então, vamos lhes dar a comunhão? Não é uma solução se lhes damos a comunhão. Só isso não é a solução: a solução é a integração.”
b – A viragem pastoral exige uma conversão pastoral com criativa caridade
Para fins de ação pastoral mais consequente ou cada vez mais consequente em relação à vida dos divorciados recasados no seio da Igreja hoje, se evoca a necessidade de se assumir a realidade do aumento do número de divorciados no mundo. A ênfase dada ao aumento do número dos divorciados recasados no mundo tem, no entanto, obnubilado o aumento, mais significativo em número na atualidade, das uniões consensuais (no Brasil; em torno a 36% da população de casais; unidos somente no civi: 17%; casados no civil e no religioso: 42%) e das famílias monoparentais (7 milhões de lares no universo de 57 milhões de lares no país. Esta quantidade de lares é igual, se não for maior, ao número de lares de casais em segunda união segundo os dados do IBGE). Segundo esses dados, não só no Brasil, mas em outras partes do mundo, se começa a falar de declínio do número dos divorciados recasados, algo que se constatará com muito mais acuidade daqui a dez anos. Portanto, dar ênfase à situação dos divorciados recasados é realismo até certo ponto!
Embora essa comparação em números não exima a Igreja de se debruçar com mais caridade sobre a situação dos casais em nova união, ela revela um certo desequilíbrio, para não dizer grande disparidade de atitude, na proposta de alguns membros do clero, teólogos, pastoralistas e leigos que se preocupam com uma mudança na Igreja, a fim de que esta seja mais misericordiosa, pois negligenciam não só os divorciados não recasados, mas também as uniões consensuais e as famílias monoparentais, para os quais pouco ou nada é feito hoje na ação pastoral, enquanto – sobretudo no caso do Brasil – temos muitas atividades com casais em nova união.
A ousadia que se pretende na ação pastoral da Igreja para com os casais em segunda união deverá – ou deveria - também motivar a ação pastoral da Igreja em relação a essas e outras situações, como o sugere os Lineamenta. Ademais, essa ousadia e criatividade pastorais já poderiam estar atuantes de vários modos, ainda que sem o acesso aos sacramentos da Eucaristia e Penitência, sem que se fira a mensagem de indissolubilidade do matrimônio. Por exemplo, o Instrumentum laboris recordava a prática da bênção pessoal para quem não pode receber a eucaristia (cf. 104). Essa é realizada, em alguns países, incluindo algumas paróquias no Brasil, com a acolhida dos casais de segunda união na continuidade da fila da comunhão para receberem, individualmente, uma bênçao do ministro ordenado. Por experiência, tal gesto faz uma enorme diferença! O Papa emérito Bento XVI fez menção positiva a essa prática em um recente texto divulgado pelos meios de comunicação (cf. http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350933) e publicado em um livro.
3 – Resolver problemas mais do que preveni-los?
Constata-se muita expectativa em mudanças de “regras” doutrinais, ou disciplinares, a partir de Roma, para depois se tomar iniciativas de acolhida. A falta de uma criativa caridade pastoral na prática do cotidiano de nossas Igrejas não mudará com a mudança de “regras”, pois se o que se busca é trazer o sentimento subjetivo de acolhida dos casais em segunda união pelo fato de terem acesso, por exemplo, à Eucaristia, um verdadeiro acompanhamento de sua situação, que também inclui, em grande parte dos casos, a dor pela ruptura do primeiro casamento, requer tempo e dedicação pastoral bastante ausente em alguns países. Essa atidude inclui também este aspecto subjetivo da vida das pessoas, colocado mais em evidência na atualidade, mas que deve, ao mesmo tempo, ser orientado para não se cair em subjetivismos individualistas.
Há uma forte tendência na atualidade, apontada e criticada por grandes filósofos, ao pragmatismo eficientista, da razão prática que pretende dar respostas a tudo através da exaltação da técnica. Pergunta-se se a Igreja também não corre o risco de tentar equacionar rapidamente, com algumas decisões, certas situações difíceis da vida de seus membros. Não se aceita hoje em dia estar diante de impasses não resolvíveis ou de sofrimentos que não devam ser extirpados. A busca da realização do prazer e da felicidade a todo custo indiretamente, ou diretamente, também pode ter sérias influências no pensamento da ação pastoral da Igreja. Não que a Igreja convide seus fiéis a uma cega resignação, pois concorda, por exemplo, com a separação de corpos quando a vida conjugal se torna insuportável para um dos cônjuges por razões graves. Mas não se poderia admitir que, no caso de um casamento validamente celebrado e rompido, ao qual se suceda uma nova união por parte de um dos cônjuges ou dos dois, que essa nova união traga a marca de uma ruptura, mesmo que essa nova união seja acolhida no seio da Igreja? Será que não se tende a dar a todo custo respostas aos problemas das pessoas na atualidade, como o fazem hoje vários âmbitos da medicina e do direito?
Afirma-se, por alguns teólogos, que a Igreja seria mais severa para com quem está em uma nova união do que para com aqueles que vão se casar. No entanto, essa afirmação não é seguida de uma proposta concreta em relação não só à preparação para o matrimônio mas também ao acompanhamento da vida conjugal – como nos propõe os Lineamenta - de tal maneira que haja maior prevenção das situações de conflito e de ruptura da vida conjugal. Esse ainda é um campo vasto a ser explorado. Durante muito tempo, e ainda é o caso em muitos lugares, devido ao aumento de uma liberdade mais subjetiva e individualista e à crescente privatização da família na atualidade, como o apontam vários sociólogos, se temeu e se teme orientar os casais em sua vida matrimonial, pois isso relevaria da vida “individual” e “privada” de muitos. Além disso, há uma enorme falta de preparo do clero e dos agentes de pastoral familiar. No entanto, tanto a Igreja como a sociedade sabem muito bem, através de pesquisas (cf. Caritas na Itália), o quanto um divórcio não ajuda a família, a própria Igreja e a sociedade. Mas, mesmo assim, as medidas sociais e pastorais propostas para tentar evitar a separação ou o divórcio são muito tímidas ou inexistentes.
Se com razão alguns teólogos apontam para uma visão jurisdicista (contratual) do matrimônio, a culpa não é só – se é que há culpa – do modo como o Código de Direito Canônico define o matrimônio, mas também, e sobretudo, de como essa realidade se viu pouco a pouco envelopada por um aspecto puramente formal, sem maiores aprodudamentos de uma teologia da família, de carácter personalista, como, de resto, Vaticano II já delineara e foi aprofundado por João Paul II e outros na mesma esteira. Grosso modo, do lado do estudo do sacramento, limitou-se aos seus aspectos canônico-jurídicos, sem uma disciplina específica de uma teologia mais aprofundada do sacramento e da própria vocação conjugal e familiar.
Nas últimas décadas, no âmbito da teologia moral, por um lado, parece ter havido um estacionamento, repetindo supercialmente os princípios da avaliação e das exigências dos atos lícitos e ilícitos, sem muita confrontação com a realidade das pessoas; por outro lado, numa perspectiva mais liberal, tentou-se justificar uma abertura da Igreja aos métodos contraceptivos (um longo debate com Humanae vitae) e a uma eventual mudança de perspectiva quanto à posição da doutrina da Igreja relativa à indissolubilidade do matrimônio, numa tentativa de acompanhar as mudanças sociais, confundido atitude profética com conformismo. Tanto o lado mais rigorista quanto o mais laxista parecem não ter lançando mão de algo que voltou com força neste Sínodo: a lei da gradualidade, ou o caminho gradual feito por cada um de nós no conhecimento e na vivência das exigências morais e no aprofundamento do mistério da vida cristã. A isso se deu também o nome de pedagogia divina, ou seja, o modo como Deus nos guia, sem forçar ninguém, mas sempre propondo o ideal de santidade.
4 – Para onde o Sínodo nos orientará?
Não se pretende aqui, com essas reflexões, afastar o debate teológico-doutrinal sobre modulações na compreensão e na aplicação canônica e pastoral de posturas relativas aos casais em nova união civil. Mas parece que o debate em torno à quetão do acesso aos sacramentos da Eucaristia e da Penitência deve passar por ulteriores aprofundamentos; como, aliás, sinalizaram alguns dos círculos menores de trabalho durante o último Sínodo. Postura que não significaria retornar à estaca zero, mas dar continuidade ao debate que tem sérias implicações e assume várias possíveis soluções. Isso não signifca que não se possa avançar mais no que tange a participação ativa e, por conseguente, a acolhida dos casais em nova união no seio da Igreja. Muito se poderia fazer, como já acontece no Brasil, quanto aos encontros de casais e famílias nesta situação tanto com outros casais e famílias quanto entre eles (lembre-se aqui o precioso trabalho do grupo Bom Pastor no Brasil, com grande capilaridade nacional, e de outros do mesmo tipo presentes em nossas dioceses. É interessante notar que os casais que participam desses grupos não se levantaram para pedir ao Sínodo o acesso à comunhão eucarística).
A respeito da pastoral sacramental dos casais em segunda união, o n. 38 do questionário dos Lineamenta diz o seguinte: “A pastoral sacramental a favor dos divorciados recasados precisa de um ulterior aprofundamento, avaliando também a prática ortodoxa e tendo presente ‘a distinção entre situação objetiva de pecado e circunstâncias atenuantes’ (n. 52). Quais são as perspetivas em que agir? Quais os passos possíveis? Quais sugestões para resolver formas de impedimentos indevidas ou desnecessárias?”
A primeira observação que deve ser feita é que a pergunta começa por uma afirmação: é necessário um ulterior aprofundamento sobre a pastoral sacramental. A afirmação sugere que esse ulterior aprofundamento será realizado durante o próximo Sínodo ou para após o Sínodo? É de se notar que a conexão entre a afirmação e as perguntas propriamentes ditas nesta pergunta não deixe ao leitor uma límpida compreensão do que se espera como resposta. No entanto, tentando uma interpretação da mesma, parece que se solicitam respostas que ajudem a avançar no sentido deste aprofundamento. O n. 52 do texto, ao evocar uma eventual possibilidade de acesso à comunhão por parte dos divorciados recasados também fala de uma questão que “ainda deve ser aprofundada”. Esse aprofundamento ulterior se justificaria mais ainda pelo fato de que não se conhece com precisão essa “prática ortodoxa”, mencionada na pergunta n. 38, que se liga – o leitor deve deduzir... – à menção de “um caminho penitencial” no parágrafo n. 52. A pergunta n. 38 ainda retoma a afirmação do parágrafo n. 52 sobre a questão da imputabilidade do ato, com a qual – a experiência de conferências e encontros o demonstra – até o clero tem dificuldades, quanto mais o fiel mais simples.
Tudo isso faz com que a pergunta, no final das contas, sugira questões muito técnicas, com o risco de se esquecer que o parágrafo n. 52 do texto aponta duas posturas em relação à possibilidade de acesso à comunhão por parte dos divorciados recasados. E para que o debate seja imparcial, as duas posturas devem ser aprofundadas.
Não é intenção aqui fazer um aprofundamento pormenorizado sobre as duas posturas. Contudo, é importante salientar, a respeito da postura que sugere manter a doutrina atual da impossibilidade de acesso à comunhão, o quanto essa posição tem sido tratada de modo simplório e sob olhares preconceituosos que lhe aplicam taxativamente atributos pejorativos, tornando sua sustentação quase arbitrária, como se fosse destituída de fundamentação teológica. O que denota uma atitude temerária. Por outro lado, o Sínodo também deveria suscitar reflexões que demonstrem a atualidade desta postura com uma linguagem convincente que dê conta de sua pertinência e sua manutenção. Tudo isso é também contribuição do Sínodo e já aparecem publicações neste sentido.
No que concerne a postura que é favorável ao acesso à comunhão, a proposta é avançada em circunstâncias bem precisas e o acesso não é oferecido de forma generalizada (como o próprio W. Kasper o sugere em seu livro. Condições que emanaram de sua reflexão, retomando, em grande parte, as ideias de uma artigo de J. Ratzinger de 1972, cuja conclusão, no entanto, o Papa emérito modicou no texto recentemente publicado e mencionado acima), mas somente após um caminho penitencial, como apontado nos Linemanta para a reflexão da Igreja. Sem declinar o confronto com a proposta, percebe-se o quanto ela exige ulteriores aprofundamentos. Não é evidente evocar uma “prática ortodoxa” como inspiração, pois, como o demonstra E. Schockenhoff, teólogo favorável ao acesso à comunhão para os recasados, a prática não é uniforme e levanta alguns questionamentos sobre a forma de penitência oferecida (cf. La Chiesa e i divorziati risposati. Questioni aperte. Brescia: Queriniana, 2014).
Em relação às condições sugeridas por W. Kasper para se conceder esse acesso à comunhão (cf. Il Vangelo della famiglia. Brescia: Queriniana, 2014), talvez seja prático e fácil aplicá-lo em uma Igreja sem muita expressão pastoral, como no caso de várias Igrejas na Europa e nos EUA. Mas o acompanhamento pessoal desses casos e o discenimento a ser feito sobre cada situação seria aplicável e evidente numa Igreja em que se percebe que a “arte do acompanhamento” não vem sendo trabalhada? Isso não requereria um tato e uma maturidade que, caso faltem, poderiam causar mais danos do que ajudar? Isso não suscitaria o sentimento de exclusão – o que se pretende eliminar – em alguns não “aprovados” de imediato à comunhão? Não resta dúvida de que, se a Igreja assume esta postura, deverá realizar um esforço hercúlio na estruturação de condições mínimas de acompanhamento pessoal, o que deveria também ser o caso da preparação para o matrimônio, para o aconselhamento e o atendimento a situações de conflitos conjugais, a fim de se evitar tratar somente o problema sem antes buscar preveni-lo.
4.a – Equidade pastoral: misericórdia e verdade se encontram.
Outra realidade atual na vida de nossas comunidades – empiracamente verificável, sobretudo em nossas comunidades menores - deve ser cada vez mais levada em consideração: imediatamente após uma separação ou divórcio, seguidos de grave traição, a parte culpada não hesita em frequentar a igreja sozinha ou, com frequência, já com outra pessoa. Isso tem causado o abandono da outra parte da Igreja, por se sentir humilhada na presença daquele ou daquela que a traiu gravamente e que, além disso, já se encontra em relacionamento com outra pessoa. Isso revela, por um lado, que o sentimento de exclusão, evocado por muitos em defesa de maior abertura para com os recasados, está talvez mudando em relação à percepção da existência do mal cometido. Por outro lado, pode-se dizer que é um bom sinal que não tenham vergonha de frequentar a vida da comunidade, e tem-se aí a oportunidade de uma evangelização em vista também do arrependimento.
No caso em que o chamado “caminho penitencial” lhes fosse aplicado – tendo ainda que se definir em que consistiria esse caminho penitencial – e que o novo casal continuasse na comunidade, pode-se dizer que se acolheu um casal divorciado recasado, o que é positivo. Contudo, quais não seriam os sentimentos e a situação daquele ou daquela que foi abandonado e que se afastou da Igreja, sem no entanto ter contraído nova união por crer na validade do seu primeiro casamento?...
Reflete-se muito sobre os casais recasados que voltam à caminhada, incluindo os que foram abandonados e contraíram uma nova união, mas reflete-se pouco ou nada sobre as pessoas que foram abandonadas e que, por não aceitarem o abandono e acreditarem na validade de seu casamento (e do amor que o fundou), não aceitam a nova união do cônjuge que se foi. O agravante hoje é que o cônjuge que se foi e se casou de novo na verdade não se foi e continua ao lado com a nova família, causando assim o afastamento da primeira mulher ou do primeiro marido da vida da comunidade. Ainda que a parte abandonada venha a perdoar a traição da outra parte, como se espera de um bom cristão, a comunidade local pode se deparar com um grande dilema nas situações dos recasados: estar acolhendo um e afastando o outro! As soluções propostas, quaisquer que sejam elas, não evitarão o confronto com tal dilema. Um homem ou uma mulher que amou profundamente e exclusivamente alguém, quando se vê traído(a) e abandonado(a) de modo injusto passa por um processo de perda equiparado quase à morte de um ente querido, que não é fácil enfrentar.
Um dos grandes argumentos avançados em favor da abertura do acesso à comunhão aos divorciados recasados consiste em dizer que não há pecado que não possa ser perdoado. Sem pretensões de aqui refletir de modo apropriado sobre tal argumento, caberia repensar a teologia do pecado em relação com a teologia do sacramento do matrimônio, levando em consideração certas consequências temporais do mal cometido. Com a devida reserva exigida pela categoria da analogia, não se poderia dizer que quando a doutrina sobre o pecado atual diz que um assassino é perdoado, mas mesmo assim deve pagar sua pena em presídio, ou que o perdão a um grande corrupto implicaria a devolução do que foi usurpado, isso não poderia ser mutatis mutandis pensado em relação à “pena” do afastamento da comunhão pelos divorciados recasados? Todavia, alguns recordam que houve quem teria dito que seria então melhor matar sua ex-mulher, pois assim teria perdão, já que enquanto ela estiver viva, ele continuaria num pecado que não tem perdão. Mas, ao cumprir pena por seu assassinato, este homem não perderia para sempre ou durante grande parte da sua vida a comunhão permanente de sua nova mulher? Ainda que possa retornar à comunhão eucarística pelo perdão, sofrerá uma consequência temporal do seu pecado grave, não tendo a comunhão permanente com a mulher com quem se casou novamente e sua comunhão com a comunidade eclesial fica também bastante fragilizada, ainda que no presídio se possa criar esses laços de vida cristã.
De fato, poder-se-ia aprofundar a questão do perdão para os casais recasados com muito tempo de vida, onde a primeira união já não existe há muito tempo, e em relação à qual não houve possibilidade de declaração de nulidade. No entanto, esse perdão, sobretudo para um primeiro casamento que se considerou válido e produziu frutos, incluindo a geração de filhos, apagaria todas as consequências temporais da separação ou do divórcio? Seria exagerado pensar que a ruptura do sacramento do matrimônio, ruptura de uma comunhão íntima, mantenha-se “relembrada” pelo não acesso à Eucaristia, ou seja, à comunhão por excelência com Jesus Cristo, sobretudo que, para uma das partes, essa seraparão pode ainda significar ausência de comunhão com a pessoa amada, que era tudo para ela? A analogia entre a comunhão perfeita de Cristo e a Igreja e o homem e a mulher no sacramento do matrimônio não nos autorizaria a refletir neste sentido?
Mais uma vez, pode-se dizer que, ainda que se espere um perdão dado pelo homem ou a mulher injustamente abandonados num casamento que tenha durado alguns anos, e em relação ao qual não há como se declarar nulidade, imagina-se que seria de difícil aceitação para a parte abandonada e filhos reconhecer que a Igreja acolhe e reconhece a nova comunhão de vida daquele que se foi e o recebe à plena comunhão na Eucaristia, enquanto à parte abandonado, ainda que possa ter acesso à comunhão eucarística, se vê privada da comunhão de vida estabelecida pelo sacramento do matrimônio. Seria isso uma atitude equânime pastoralmente falando? Obviamente que nem todos estão nesta situação, mas, pelo fato de haver um número considerável que aí se encontra, a proposta do acesso à comunhão eucarística aos casais em nova união deve ser muito bem pesada.
Neste contexto, caberia também aprofundar o tema da comunhão espiritual, como apontado no n. 53, e responder à objeção que diz que quem recebe Cristo espiritualmente poderia também recebê-lo sacramentalmente (aprofundamento precioso sobre o tema é dado por J. J. Pérez-Soba; S. Kampowski. Il vangelo della famiglia nel dibattito sinodale: oltre la proposta del Cardinal Kasper. Siena: Cantagalli, 2014, p. 138s.). A distinção sobre os graus e modos de presença de Cristo na Igreja (na Palavra, na assembleia, na Eucaristia, no celebrante e em todo batizado) e noutras confissões cristãs (mesmo não participando da Eucaristia, encontram e vivem com o Cristo) e no mundo (nos pequeninos e sofredores, e nas pessoas de boa-vontade etc.) pode elucidar a participação diferenciada no mistério da vida de Cristo. Ademais, um recurso à teologia de Santo Tomás de Aquino sobre o sacramento da Eucaristia nos ajudaria a recordar que os efeitos salvíficos desse sacramento não estão vinculados à comunhão eucarística, mas são aplicados a todos participantes da celebração do mesmo e sobre toda a humanidade. A isso acrescente-se a necessidade de uma maior conscientização sobre a recepção da comunhão, aparentemente banalizada em nossos tempos. Como também o Papa emérito Bento XVI afirmou no texto já citado, “Um sério exame de si, que pode até mesmo conduzir a renunciar à comunhão, nos faria [...] sentir de modo novo a grandeza do dom da eucaristia e isso representaria ao mesmo tempo uma forma de solidariedade com os divorciados recasados.” E por que não pensar que isso também seja assumido pelo celebrante da eucaristia, em relação ao qual, parece, não haver orientação a uma comunhão compulsória em cada celebração?
2 – Proposta para a próxima assembleia sinodal a respeito dos recasados
Como já afirmado acima, as questões não pretendem eliminar o debate quanto a esse tema. No entanto, parece importante, a partir das próprias perguntas da questão n. 38 do questionário, se esboçar outras possibilidades de acolhimento e comprometimento dos casais divorciados recasados no seio da Igreja. Não se trata de apontar vias “paliativas”, como o afirmaram alguns (de resto, a via do acesso à comunhão também é paliativa, pois nunca resolveria totalmente as questões humanas do divórcio) ou, muito menos, uma saída estratégica para se evitar o confronto com essas questões. Mas trata-se de evitar que a reflexão esteja somente à mercê da polaridade entre o acesso ou não à comunhão eucarística. E, para tanto, se faz aqui apelo a uma via não muito explorada durante o Sínodo – embora tenha sido proposta – e sugerida em dezembro passado pelos dois papas.
Todavia, cabe também recordar que a via da agilização e acessibilidade ao processo matrimonial, como refletida no n. 49 dos Linamenta, merece também maior atenção, por não só ter uma adesão mais equilibrada, mas porque, de fato, muitas situações (talvez a maioria) poderiam ser por ela atendidas adequadamente. Quanto a esse tema, é necessário retomar o que o Papa Bento XVI, em várias ocasiões, já afirmará a respeito da falta de fé de muitos batizados (pagãos batizados), sobre a qual se deveria aprofundar quando se trata da recepção e da validade do sacramento do matrimônio. Tal argumentação também reaparece no seu texto publicado recentemente, em que o papa emérito corrige a conclusão do seu artigo de 1972.
Voltando à via proposta recentemente pelos dois papas, a questão que a norteia é a seguinte: como podem viver quotidianamente a vida de fé cristã no seio da comunidade eclesial? Ou, para retomar parte da questão n. 38, “quais sugestões para resolver formas de impedimentos indevidas ou desnecessárias” ?
a - A orientação do magistério recente
Na Familiaris consortio, n. 84, pede-se, em primeiro lugar, que se discirna bem as situações. E se afirma que a Igreja não pode abandonar os fiéis divorciados recasados, pois não estão separados dela. Enquanto batizados, devem participar da vida eclesial através de várias atividades, entre elas destaque-se a educação dos filhos na fé, também reafirmada pelo Catecismo (cf. n. 1651). A Exortação apostólica Sacramentum caritatis, n. 27, reforça a ideia de pertença à Igreja, e, dentre vários modos de participação na vida eclesial, evoca também a educação dos filhos.
b – Os questionamentos na práxis pastoral
O Catecismo da Igreja Católica (CIgC), n. 1650, afirma que os fiéis recasados estão “numa situação objetivamente contrária à lei de Deus. Por isso [...] ficam impedidos de exercer certas responsabilidades eclesiais.” Assim, o discernimento sobre o que o casal em nova união estável ou um deles pode ou não realizar no seio da comunidade, pode ou não assumir, tem ficado a critério do seu pastor, variando desde a autorização à comunhão à proibição de se fazer uma leitura durante a celebração eucarística. Nesse contexto, faz-se necessário citar o texto Sulla pastorale dei divorziati risposati (1998), de autoria da Congregação da Doutrina para a Fé, publicado na coleção Documenti, commenti e studi. O texto indica quais seriam essas responsabilidades vedadas a esses fiéis e procura dar as razões canônico-pastorais. Assim, não podem ser padrinhos de batismo ou crisma; assumir os “serviços litúrgicos” (Leitor e ministro da Eucaristia) e os “serviços catequéticos” (professor de religião, catequista de primeira comunhão ou crisma); ser testemunha de casamento; e fazer parte do Conselho Pastoral Diocesano ou conselhos paroquiais.
Alguns questionamentos devem ser feitos a respeito do referido texto: tratar-se-ia de documento emanado da Congregação para a Doutrina da Fé ou de comentário ou estudo, já que publicado na coleção “Documenti, commenti e studi”? Se é documento, por que razão não consta da lista dos documentos disponíveis no site da Santa Sé, na parte reservada à Congregação? Por que não foi traduzido? Foi aprovado em audiência com o Santo Padre? Note-se que a Exortação apostólica Sacramentum caritatis, publicada posteriormente a esse texto, quando aborda a questão da participação dos fiéis recasados na vida da Igreja e na celebração eucarística (cf. supra), não faz referência ao texto.
Há difuso desconhecimento do referido texto, porém ainda vigora em boa parte das Igrejas particulares a proibição de que pessoas unidas em nova união estável sejam admitidas como padrinhos e madrinhas. No entanto, algumas têm feito exceções, aceitando de modo excepcional aqueles que estão “engajados na comunidade eclesial”. Por outro lado, outras pedem que seja revista e flexibilizada a interpretação dada ao cânon 874 § 1, 3º, a respeito do encargo de padrinho ou madrinha. O mesmo se diga em relação a outras funções eclesiais, tais como serviços litúrgicos, catequéticos e à participação em Conselhos Pastorais diocesanos ou paroquiais.
No sentido de uma eventual revisão desse texto, advogam tano o Papa Francisco como o Papa Emérito Bento XVI. Na entrevista dada pelo Papa Francisco ao Jornal Lanación, acima citada, o papa questiona: “[Os recasados] Não estão excomungados, é verdade. Mas não podem ser padrinhos de batismo, não podem ler a leitura na missa, não podem dar a comunhão, não podem ensinar a catequese, não podem ao todo umas sete coisas; tenho a lista aí. Parem! Se eu conto isso pareceriam excomungados de fato! Então, abram as portas um pouco mais! Por que não podem ser padrinhos? ‘Não, veja, que testemunho vão dar ao afilhado.” O testemunho de um homem e uma mulher que lhe dizem: ‘Olha, querido, eu me equivoquei, eu escorreguei neste ponto, mas creio que o Senhor me quer, e quero seguir a Deus, o pecado não me venceu, mas antes sigo adiante.’ Haveria maior testemunho cristão do que esse? [...] Ou seja, temos que começar a mudar um pouco as coisas, as orientações valorativas.”
Por sua vez, o Papa Bento XVI, num texto publicado no final do ano passado (03/12) no site chiesa.expressoonline, já mencionado acima, afirma: “No número 84 [da Familiaris consortio] está escrito: ‘Juntamente com o Sínodo, exorto calorosamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis, a fim de que ajudem os divorciados procurando com solícita caridade que não se considerem separados da Igreja [...]. A Igreja ore por eles, os encoraje, demonstre-se mãe misericordiosa e assim os sustente na fé e na esperança.’ Com isso, à pastoral se confia uma tarefa importante, que talvez não foi ainda transposta o suficiente na vida quotidiana da Igreja. Alguns detalhes são indicados na própria exortação. Nela está dito que essas pessoas, em quanto batizadas, podem participar na vida da Igreja, e que justamente devem o fazer. São elencadas as atividades cristãs que para eles são possíveis e necessárias. Todavia, talvez se necessitaria sublinhar com maior clareza o que podem fazer os pastores e os irmãos na fé para que eles possam sentir verdadeiramente o amor da Igreja. Penso que necessitaria lhes reconhecer a possibilidade de participação nas associações eclesiais e também de aceitar que sejam padrinho ou madrinha, o que no momento o direito não prevê.” (grifo nosso)
As propostas que se seguem, com suas breves justificativas, vão neste sentido.
c - A função de padrinho ou de madrinha de batismo ou de crisma
Reza o cânon 874, § 1.º, item 3.º, do CIC: “Sit catholicus, confirmatus et sanctissimum Eucharistiae sacramentum iam receperit, idemque vitam ducat fidei et muneri suscipiendo congruam”. A frase ora sublinhada denota a exigência legal de que o padrinho ou a madrinha viva de modo congruente com a fé e com o múnus assumido.
Preceitua o cânon 18 do CIC: “Leges quae poena statuunt aut liberum iurium exercitium coarctant aut exceptionem a lege continent, strictae subsunt interpretationi”. Trata-se deveras de um princípio válido tanto para o direito canônico como para o direito civil. Ou seja, as leis que coarctam o exercício de direitos devem ser interpretadas em sentido estrito e não amplo. O próprio cânon 874 poderia ter arrolado os “casados em nova união” entre os que não se qualificam para o exercício da missão de padrinho ou madrinha. Mas não o fez. Decerto, o rol do cânon é taxativo e não exemplificativo; em outras palavras, não se poderiam propor requisitos além dos que constam do mencionado cânon.
O pároco, pastor próprio da comunidade, sob a orientação do bispo, auxiliado pelo bom senso da comunidade paroquial, poderia aferir, no caso concreto, se a pessoa “recasada”, ao seu modo, leva uma vida coerente com a fé e com a eventual missão de ser padrinho ou madrinha de batismo ou crisma.
d - Outras funções na vida pastoral e litúrgica da Igreja
A respeito das outras funções ou serviços elencados pelo texto da Congregação para a Doutrina da Fé, há que se realizar uma avaliação diferenciada daquilo que é proposto pelo mesmo. Quando o texto evoca os “serviços litúrgicos”, detém-se no serviço de leitor e ministro extraordinário da Eucaristia. Por coerência com a situação na qual os fiéis em segunda união estável se encontram, compreende-se o impedimento ao exercício do ministério extraordinário da Eucaristia. Todavia, não pouca dificuldade tem surgido quando o assunto é o “serviço de leitor”. Ao que se refere o texto? Ao leitor instituído ou a qualquer leitor ad hoc? Caberia maior clareza em relação à possibilidade de se aceitar esses fiéis, de comprovada e reconhecida caminhada comunitária, na vida litúrgica da Igreja. O texto da Sacramentum caritatis fala em participação desses casais na Santa Missa. A participação na Santa Missa deve ser “consciente, ativa e frutuosa”, segundo a Instrução Redemptionis Sacramentum (RS), n. 4. Quando uma pessoa ou um casal em nova união participa da Santa Missa, poder-se-ia admitir sua efetiva participação, enquanto batizados (cf. FC, n. 84), na ação litúrgica, através das leituras, da recitação ou canto do salmo, bem como de outros atos que estejam conforme as orientações sobre a atuação dos leigos na celebração litúrgica, segundo os n. 43-47 da RS.
No que tange aos “serviços catequéticos” (professor de religião, catequista de primeira comunhão ou crisma), não se poderia argumentar que, assim como os casais em nova união estável são convidados a educar seus filhos na fé (cf. FC, n. 84; CIgC n. 1651), não poderiam eles exercer também o papel de transmissores da fé para outras crianças, adolescentes e jovens?
Em relação ao exercício da função de testemunha de casamento, talvez se exija maior discernimento pastoral, sendo por vezes, como diz o texto da Congregação para a Doutrina da Fé, desaconselhada.
A participação no Conselho Pastoral Diocesano ou nos conselhos paroquiais estaria vedada com base na interpretação do cânon 512 §13, que reza o seguinte: “Para o conselho pastoral não se escolham senão fiéis de fé firme, de bons costumes e notáveis pela prudência”. Cabe se perguntar se os fiéis em nova união estável, chamados a participar da vida da Igreja (cf. FC, n. 84) ou a cooperarem na vida comunitária (cf. SC, n. 27), não poderiam também ter uma fé firme, bons costumes e serem notáveis pela prudência, ainda que em situação irregular. O cânon talvez mereça uma interpretação mais flexível.
e – A caridade pastoral como critério para a orientação das situações difíceis
Há uma necessária prudência a ser adotada no que concerne a acolhida dos fiéis recasados, a fim de que não se pretenda equacionar ligeiramente recentes rupturas, causando graves injustiças para com os cônjuges que preferiram não se recasar e manter sua fidelidade ao casamento rompido. A caridade pastoral deve ser exercida para conciliar a verdade das situações difíceis com a misericórdia em relação a todos os que sofrem com o término de um casamento. Seguindo um antigo critério eclesial, para os ofícios, funções e responsabilidades na vida da Igreja e da comunidade local, evitar-se-á a escolha de alguém cuja indicação venha a causar escândalos. O bom-senso pastoral tem aqui um lugar relevante, a fim de se procurar incluir as pessoas em nova união estável na vida eclesial da comunidade, tanto a nível litúrgico quanto pastoral. Por outro lado, é necessário também haver orientações da parte da Igreja particular, proximidade do pastor da comunidade com o seu bispo e seu presbitério, bem como com a própria comunidade no exercício da avaliação das situações em vista de maior acolhida e do engajamento dos fiéis em nova união estável na vida da Igreja.
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Divorciados em nova união: Uma via sugerida por dois papas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU