26 Março 2015
Defensor dos sem-terra no Pará por mais de uma década, frei Henri Burin des Roziers fala do País de hoje e dos anos setenta e oitenta.
Em seu quarto no convento Saint-Jacques, em Paris, a 12 mil quilômetros de Rio Maria, pequena cidade do Pará onde defendeu na Justiça inúmeros camponeses sem-terra, o frade dominicano e advogado Henri Burin des Roziers, 85 anos, fala da sua experiência no Brasil, onde foi morar em 1978. Rio Maria, campeã de assassinatos por encomenda de líderes sindicais, é conhecida como “a terra da morte anunciada” e, por isso, virou símbolo da luta camponesa no Pará.
A reportagem é de Leneide Duarte-Plon, publicada por CartaCapital, 24-03-2015.
O “advogado dos sem-terra” pertence a uma tradicional família francesa. Estudou em Cambridge e fez doutorado na Sorbonne, antes de se tornar alvo de matadores profissionais. Em 2005, recebeu o Prêmio Internacional dos Direitos Humanos, na França, onde, em 1994, fora condecorado com a Légion d’Honneur.
Eis a entrevista.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra, entre 1985 e 2011, 1.610 pessoas foram assassinadas no Brasil em conflitos de terras. Camponeses, padres, freiras e advogados que defendiam os camponeses. Entre os estados brasileiros, o Pará é o mais violento, com 645 mortos entre 1985 e 2013. Por que essa violência?
Certamente, por causa da impunidade. Foi por isso que, quando fui enviado a Rio Maria, trabalhei contra a impunidade dos pistoleiros e seus mandantes, que tinham matado sindicalistas. Em Rio Maria, tinham assassinado João Canuto, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, tinham ameaçado o outro presidente, que teve de fugir, e depois assassinaram quem o sucedeu, Expedito Ribeiro de Souza. E nada acontecia. Por isso, passei grande parte do meu tempo no Brasil tentando agir para que a Justiça julgasse e condenasse os assassinos. Essa impunidade diminuiu um pouco, alguns foram julgados.
O senhor obteve vitórias. Como se explica a violência em torno da terra no Brasil?
Eles continuaram a assassinar, claro, até hoje o fazem. Mas não da mesma forma sistemática. Creio que por causa do nosso trabalho. A Justiça, hoje no Brasil, ainda está ligada às classes dominantes. Na época, eles compravam juízes. Obtivemos condenações formidáveis em Rio Maria, mas na hora da execução da pena tivemos problemas por causa do conluio da Justiça com os ricos. Apesar de tudo, acho que houve pequenos avanços. No País, há uma cultura da violência, sobretudo no Norte. Ela se explica pela impunidade, mas também porque está na estrutura da sociedade. Os que têm poder na região são violentos e a propriedade da terra é uma realidade que se impõe pela violência.
A reforma agrária no Brasil é impossível? Por que nunca foi realizada?
Creio que há uma razão histórica. Na história do Brasil, o problema da propriedade e da terra é visceral. Talvez por causa das Capitanias Hereditárias e das Sesmarias, no início da colonização. Os primeiros colonos recebiam o poder a partir da terra. Desde a origem, o problema era fundamental. A terra como símbolo de riqueza e poder.
Por que tanto Lula quanto Dilma Rousseff não ousaram fazer a reforma agrária?
Antes deles houve quem tentasse. O golpe de Estado de 1964 aconteceu em parte por causa das Ligas Camponesas de Francisco Julião. O problema da propriedade da terra no Brasil é explosivo.
Como o senhor viu a nomeação da representante do agronegócio, grande latifundiária, Kátia Abreu, para o Ministério da Agricultura ?
É imcompreensível. Dilma Rousseff foi eleita com muita mobilização dos Sem-Terra, do MST. Nomeou essa mulher para sobreviver, para ter um apoio político. Dilma está fragilizada. Totalmente envolvida em um jogo difícil. Agora é o poder pelo poder. É o que se dá com o PT. No Partido dos Trabalhadores, salvo algumas exceções, o conjunto dos parlamentares luta para manter o poder. Não têm mais preocupações ideológicas, não se empenham por reformas. Dilma Rousseff não tem mais nada a ver com a Dilma Rousseff de Lula, quando chegou ao poder. Mas vale dizer que era uma tecnocrata, não está na origem do PT.
Depois do assassinato da freira Dorothy Stang, em 2005, o senhor passou a ser protegido por policiais. Por que o senhor era um alvo?
Porque trabalhei no Brasil por muito tempo como advogado, principalmente como advogado de acusação, se posso dizer assim, tentando levar à Justiça os matadores de camponeses e seus mandantes. Levamos à Justiça assassinos de camponeses e líderes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria.
Nos anos 80, os fazendeiros da região tinham decidido que o sindicato teria de fechar. Para tanto, mandaram matar, em dezembro de 1985, seu primeiro presidente, João Canuto. Depois mataram seus dois filhos, José e Paulo. Não mataram a viúva porque não a encontraram.
O sucessor de Canuto teve de fugir para não ser morto. Outro camponês, Expedito Ribeiro de Souza, assumiu a presidência do sindicato e foi assassinado em 1991. Depois, assassinaram um diretor do sindicato, Brás de Oliveira. Um companheiro dele conseguiu escapar, foi sequestrado e mandado para longe de Rio Maria.
Como defensor dos sem-terra, o senhor passou a ser um alvo?
Lembro que, já ameaçado de morte, Expedito foi convidado, em dezembro de 1990, a falar num grande congresso da CUT, em São Paulo. Fez um discurso emocionante, diante de mil trabalhadores. Disse que era pai de nove filhos e, como presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, estava ameaçado de morte. Todos os amigos lhe diziam para ir embora, mas ele fora eleito presidente e não podia abandonar os companheiros. O Le Monde Diplomatique fez uma matéria sobre esse encontro na CUT, cujo título era: “Esse homem vai ser assassinado”. E foi, em fevereiro de 1991.
O senhor estava lá?
Não, eu estava deixando o Brasil e indo para a Guatemala. Com o assassinato de Expedito, a Comissão Pastoral da Terra começou a procurar um advogado. Havia advogados como Luiz Eduardo Greenhalgh, que naquele tempo era formidável. Depois, deixou-se seduzir pelo poder, infelizmente. Tinha sido advogado de presos políticos na ditadura. Havia também Márcio Thomaz Bastos, depois ministro da Justiça do presidente Lula. Esses advogados estavam a serviço da causa, mas diziam que do Rio e de São Paulo não podiam acompanhar os acontecimentos em Rio Maria. No entanto, se não se fizesse algo imediatamente, o processo estaria comprometido. Aceitei então ser o advogado. E assim fui para Rio Maria. E fui aos poucos retomando os casos já enterrados, inclusive o de João Canuto.
O senhor foi para o Brasil em 1978. Por que o Brasil?
Em 1969, eu fui para o convento Saint-Jacques, onde estavam alguns dos dominicanos brasileiros exilados pela ditadura. Tomamos posição clara na defesa daqueles que estavam presos, e que foram, inclusive, torturados. A luta armada sequestrou o embaixador Giovanni Bucher, exigiu a libertação dos presos e foi assim que frei Tito de Alencar e outros foram soltos.
Frei Tito veio para o Saint-Jacques e também foi aqui que conheci o dominicano Magno Vilela. Muito inteligente, ele foi determinante para que eu decidisse trabalhar no Brasil. Decidi ir em 1976, mas as autoridades brasileiras recusaram meu visto. Os dominicanos me diziam que eu nunca conseguiria.
Cogitei então ir para o Peru, mas, quando estava para embarcar, já em 1978, soube que o visto fora dado. O papa Paulo VI morrera e, para ser bem-vista, a ditadura, que defendia a candidatura do Núncio Apostólico no Brasil, Sebastiano Baggio, resolveu dar os vistos aos quatro dominicanos franceses que estavam na lista de espera. Foi eleito João Paulo I, morreu logo depois. Em seguida, esse triste João Paulo II foi eleito papa. Fui para o Brasil e não para o Peru.
O senhor foi para a Amazônia?
Primeiramente, para o Rio, depois visitei Fortaleza, Belo Horizonte, São Paulo e Brasília. Aprendi o português. Quando conheci Magno Vilela, no convento Saint-Jacques, já tinha experiência de jurista na região de Haute Savoie. Ele me disse que essa experiência seria útil nas lutas populares no Brasil. Depois dessa conversa é que fiz meu pedido para o Brasil.
Em 2013, depois da eleição do papa Francisco, o senhor disse, em São Paulo: “O papa deve mudar de vida, parar de se comportar como um príncipe. Deve ser um homem de diálogo no interior da Igreja e deve acabar com esse aspecto de autoridade absoluta”. O que acha agora?
Até agora, estou feliz. Nos sentíamos no deserto, perseguidos durante 40 anos sob o poder de João Paulo II e do triste Ratzinger-Bento XVI. Com Francisco, a gente se sente reabilitado. O que vi até agora me dá esperança. Sobretudo o discurso que ele fez em Roma para os movimentos populares. Disse que era preciso fazer uma revolução. Esperamos resultados. Fico, porém, um pouco apreensivo, sua sucessão me preocupa muito.
Numa entrevista a um jornalista francês o senhor mencionou dom Helder Câmara como uma figura importante no seu percurso e falou dele com admiração. O senhor o conheceu? Como inspirou seu trabalho?
Nunca o encontrei pessoalmente. Mas a admiração vem de longe. Quando eu era capelão dos estudantes aqui em Paris, nos anos 1960, dom Helder, o bispo vermelho dos pobres, vinha frequentemente à Europa e passava sempre por Paris, onde fazia conferências que atraíam multidões. Ele denunciava a pobreza terrível do Brasil, das crianças do Nordeste. Era o bispo dos pobres, ele lembrava que naquele país de opulência havia uma grande pobreza. A gente mandava os estudantes irem ouvi-lo e depois fazíamos debates. Ele ficou como uma referência. Seu impacto no público francês era muito forte. Eu lia o que ele dizia e fazia. Ele criou um excelente centro de direitos humanos no Recife, mas outro bispo destruiu o que ele fez.
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A Justiça no Brasil é braço da elite - Instituto Humanitas Unisinos - IHU