Por: André | 12 Março 2015
Deveríamos retornar ao assunto? Nós nos fizemos esta pergunta. A cobertura da edição de 1º de janeiro da revista La Vie suscitou uma grande curiosidade. Mas também não caiu no gosto de todos os nossos leitores, nem mesmo de toda a nossa redação. De fato, desde a publicação de Submission (Submissão), uma nova Batalha de Hernani está sendo travada. Como de costume, os juízos de valor sobre a pessoa de Michel Houellebecq (foto) se misturam com os de alguns dos seus personagens. Mas, desta vez, as considerações sobre a literatura se misturam com um debate quente sobre o islã e a islamofobia.
Fonte: http://bit.ly/1yCqtRH |
Do Libération à revista Famille Chrétienne, passando pelo jornal Le Monde, uma parte da crítica literária julga o livro medíocre ou grosseiro. Da revista Les Inrocks ao Le Figaro e Valeurs Actuelles, passando pela revista Marianne e o L’Obs, outros acreditam que ele é inquietante ou excelente. Na maioria dos casos, a questão do declínio do cristianismo, ainda central no romance, é evitada, até mesmo completamente esquivada.
Para ver o coração líquido, nós enfrentamos durante três horas o nevoeiro de cigarro, laconismo e ambiguidade que envolve e esconde o estranho sr. Houellebecq, costurando o fio de uma verdadeira conversa. Cabe ao leitor julgar suas palavras. Ele tem agora a peça do quebra-cabeça que lhe faltava: o próprio autor.
A entrevista é de Marie Chaudey e Jean-Pierre Denis, publicada na revista francesa La Vie, 29-01-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Você está irritado?
A declaração do Papa após os ataques contra o Charlie me deixou consternado. Quando ele diz "Se você falar mal da minha mãe, eu lhe dou um soco", ele legitima a resposta a uma agressão escrita com uma agressão física. Não estou plenamente de acordo, e eu ainda teria preferido que tivesse ficado calado. A religião não deve limitar a liberdade de expressão. Se há limites, não são dessa ordem, mas relacionados à difamação, aos atentados à privacidade, etc. E eu sei do que estou falando por ter sido perseguido muitas vezes. Mesmo por La Carte et le Territoire, eu tive direito a um processo na Alemanha movido pela associação Dignitas, favorável à eutanásia – que o editor também ganhou.
Qual é a sua opinião sobre a grande manifestação de 11 de janeiro? Ela não desmentiu a sua afirmação sobre a morte da República?
Isso significou uma coisa: os franceses estão muito apegados à liberdade de expressão, que é, na minha opinião, o principal valor. Trata-se, pois, de uma boa notícia. Mas eu não vejo relação com a República. Aliás, a liberdade de expressão é uma causa que ultrapassa de longe o quadro republicano. É uma questão sempre conflituosa e que surgiu bem antes de 1789. Há poetas árabes que puderam se beneficiar de uma enorme liberdade de expressão sob determinados califas. Mas, bastava uma mudança de dinastia para que fossem decapitados.
O fato de ver os franceses capazes de se mobilizar, de não estarem totalmente apáticos e frouxos, o desconcertou ou tornou-o menos pessimista? É um sinal positivo da nossa vontade de viver juntos?
Viver juntos é pedir muito – viver com alguém é difícil. Viver um ao lado do outro já é menos mal. A tolerância não é necessariamente fruto do diálogo. Ela pode ser simplesmente fruto da indiferença... Uma indiferença pacífica, uma amável indiferença para com o que acredita o outro, à maneira como vive. As boas relações entre judeus, cristãos e muçulmanos muitas vezes caminharam assim, e não sobre um diálogo a pleno vapor.
Faz muito tempo que você está fascinado pela religião...
Sim. Na literatura, em meu primeiro livro, Rester Vivant (1991), que é fortemente influenciado por Paulo e sua insolência. E depois havia Les Particules Élémentaires e meu eventual batismo em La Carte et le Territoire. Mas eu já falei sobre a minha tentativa de conversão no livro escrito com Bernard-Henri Lévy, Ennemis Publics. Durante a minha infância, na casa dos meus avós, não havia nada de religião. Sem verdadeira antipatia – ao contrário dos seus amigos comunistas, que eram mais antipadres. Para eles, o Reino e o progresso eram deste mundo. Mas a religião entrou na minha vida desde aos menos aos 13 anos de idade. Um amigo da minha classe tentou me converter na época. Eu guardei a Bíblia que ele me deu. Eu a tenho lido muito nos últimos tempos.
A religião é um tema que aparece com frequência no romance contemporâneo. Em Emmanuel Carrère, por exemplo...
Eu me sinto próximo de Emmanuel por uma série de aspectos. Mas eu cheguei à conclusão de que somos perturbados por coisas diferentes. Eu tenho uma visão da religião mais próxima da magia. O milagre me impressiona! O meu momento religioso favorito de todo o cinema é o final de A Palavra (Ordet), o filme de Dreyer, que termina com um milagre. É isso que me abala. Mas a imagem de que mais gosto no romance de Emmaneul Carrère é a cena final de A Arca de Jean Vanier, quando o narrador entrevê a possibilidade do Reino nos olhos da filha deficiente. O que indica que a coisa mais importante para Carrère é a concessão de uma comunidade. “Reconhecereis os meus discípulos no amor de uns pelos outros”, como disse São João.
O seu interesse pela religião, em última instância, se deve ao sobrenatural?
Não somente. Eu quero saber se o mundo tem um organizador e como ele é organizado. Fiz estudos científicos. Há uma verdadeira curiosidade em mim pela maneira como tudo funciona. De modo que hoje eu não me defino mais como ateu. Eu me tornei agnóstico, a palavra é mais correta. Um dos amigos de meu pai lhe havia confidenciado que ele queria ser cremado, que ele não queria uma cerimônia religiosa. Meu pai lhe respondeu: "Eu te acho muito presunçoso". De certa forma, é o sentido da aposta de Pascal.
Acompanhando o seu romance, no entanto, podemos concluir que o cristianismo está morrendo...
Não, acho que não. Foi apenas o ponto de vista de um personagem, o Rediger. Os católicos aparecem de maneira positiva no romance: quando os jovens vêm para assistir à leitura de Péguy. O orador de "face aberta e fraterna" impressiona o narrador. Eu tive a oportunidade de ver o rosto desses jovens em uma Jornada Mundial da Juventude, a de Paris, para a qual eu fui por curiosidade. No geral, eu não estou convencido de que as perspectivas para o catolicismo sejam apenas negativas no meu livro. Hoje, a ideia de um cosmos organizado é ainda mais pertinente do que na época de Voltaire: o argumento do grande relojoeiro evidencia uma organização de todo o Universo. As descobertas científicas reforçam mais a impressão de uma organização geral do que o seu contrário...
Mas a imagem da Virgem Negra de Rocamadour também o fascina?
Sim, eu experimentei uma impressão de irradiação espiritual muito intensa, um inegável poder que nos ultrapassa. Diante desta estátua nos encontramos diante de algo muito forte, mas cujo acesso não é fácil. Dizemos que é incompreensível.
Mas o que dificulta esse acesso?
Devo admitir que não sei. O distanciamento temporal, talvez. As estátuas egípcias me parecem tão distantes. François, meu narrador, sente o poder da Virgem Negra de perto. E sem que saiba por que, ela se distancia... É essa passagem que é trágica, e que é a chave do livro. Ao mesmo tempo, é, talvez, esse aspecto do catolicismo que tem as maiores chances de agradar os jovens de hoje, graças a filmes como Guerra nas Estrelas ou O Senhor dos Anéis. A ideia do poder espiritual está muito presente nesse tipo de cinema.
Por causa deste romance, você foi acusado de islamofobia. Ora, podemos fazer-lhe a acusação contrária: você retoma a apologética tradicional do islã ao dizer que o cristianismo acabou. A etapa seguinte é do islã?
Trata-se da cena do personagem de Rediger, o presidente da Sorbonne islamizada, cuja característica, como a do Grande Inquisidor, é ser extremamente brilhante. É preciso que o personagem o seja – era uma cena fundamental para ser construída, que levou mais tempo para ser escrita. Agora, podemos preferir alguém menos brilhante e mais simpático...
Você declarou que se converteu ao islã logo depois, que se tornou crente...
Não, eu continuo agnóstico. Mas eu não nego que Rediger seja muito convincente: é uma exigência do livro.
E, de qualquer maneira, você olha o islã de forma mais benevolente do que antes. O que fez você evoluir nessa visão?
A leitura do Corão e de vários livros, incluindo os de Bernard Lewis, e, mais recentemente, os de Gilles Kepel. E, além disso, muitas coisas atribuídas ao Islã são anteriores a ele, o que é inegável. O islã não inventou o apedrejamento (uma das cenas mais conhecidas do Evangelho é a que diz "Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra"), nem a ablação, nem a escravidão. Eu li o Corão para escrever este romance. Eu tinha acabado de esmiuçá-lo antes. A questão também foi para avaliar seu grau de periculosidade. Saí bastante sossegado. Minha leitura resultou em conclusões relativamente otimistas, mesmo que na verdade eu não acho que os muçulmanos leem mais dessa maneira o Corão, assim como católicos não leem a Bíblia. Assim, o papel do clero é fundamental em ambos os casos. Precisamos de intérpretes, de um clero. Eu não posso imaginar a religião sem sacerdotes, sem intérpretes.
Para você, o problema do Islã, hoje, é que não tem intérprete competente?
Em primeiro lugar, que não tenha papa! O papa elimina os desvios. Se os muçulmanos tivessem um papa a questão do jihadismo seria erradicada em 20 anos. Como castigo: quanto maior o direito de participar das orações, maior o direito de entrar nas mesquitas... Em suma, uma forma de excomunhão. Na ausência de uma tal organização, que não pode ser montada em dois anos, deve incentivar alguns imãs.
Por que os jovens partem para fazer a jihad? Por razões religiosas? Ou por que estamos nesta sociedade que você descreve, onde não há mais sentido? Você acredita que esses jovens têm um sentido?
Eu os levo a sério. Eu levo a sério a necessidade espiritual. Acho que é muito chato sociologizar as coisas. Nem todos os jovens estão à deriva, como estamos dispostos a dizer. Eles pertencem, certamente, à classe média. Devemos evitar vê-los apenas somente como desequilibrados. Seu desconforto é mais profundo do que isso. Em todo caso, a sedução do islamismo não tem nada a ver com a política, mas com a religião, ao contrário do que ouvimos. Para mim, esta é claramente uma variante da interpretação do Islã. O senso comum está do meu lado: tivemos ocasionalmente mártires na política, mas são ainda muito mais comuns na religião...
O que você diria para aqueles que acusam você de agitar a bandeira vermelha da islamização?
Aqueles que gostariam que eu me sentisse responsável? Bem, não... Não, não sou. Observo um enfraquecimento intelectual em alguns dos meus interlocutores. Conceitos claramente distinguidos antes, como islamofobia e racismo, não o são mais.
A própria palavra islamofobia é polêmica. Como você a interpreta?
O fato é que meu livro não é islamofóbico. São os jihadistas que procuram provocar a islamofobia no verdadeiro sentido da palavra, isto é, para provocar o medo. Todas as suas ações não têm outro propósito.
Você acredita na necessidade da religião como um sistema para ligar a pessoas?
Sim, a religião ajuda muito a formar sociedade. Como Auguste Comte, eu penso que a longo prazo uma sociedade não subsiste sem religião. E, de fato, vemos hoje sinais de erosão de um sistema que surgiu há alguns séculos. Mas eu acredito no retorno do religioso. Embora eu não saiba te dizer por que isso acontece agora. Mas eu sinto isso. Em todas as religiões. No judaísmo, eu vejo que os jovens são mais crentes e praticantes que seus pais. Entre os católicos, há sinais – a Jornada Mundial da Juventude, a Manif pour tous [referência à ONG Manifestação para todos, que reúne grupos contrários ao casamento gay na França].
Huysmans, Péguy: você tem uma paixão pelos escritores convertidos, como se algo deles lhe causasse inveja, não?
Não sei por que, mas os convertidos são melhores escritores que os outros! É preciso passar por tormentos para fazer um romance: o convertido passou por isso. Péguy é o mais impressionante de todos, porque ele admira as coisas paradoxais, São Luis e Robespierre ao mesmo tempo. Péguy é uma personalidade abrasadora e contraditória. Em Huysmans, trata-se de uma conversão muito particular, puramente estética: é belo, logo é verdadeiro.
E você diz: é belo, mas está distante. Aí está a diferença.
No meu caso, o que eu acho belo está objetivamente mais distante no passado do que aquilo que Huysmans achava belo. A Crucificação de Grünewald é uma obra que nos fala hoje: ela foi retomada por Mel Gibson em A Paixão de Cristo.
Os exemplos que você dá são de obras de arte, nunca de pessoas. Você não encontrou cristãos suscetíveis de atenuar esta distância que você sente?
Não seria do meu feitio. O exemplo não seria suficiente. Eu encontrei cristãos admiráveis, pessoas comuns. Mesmo recentemente, no enterro de Bernard Maris, o padre era impressionante, porque ele não demonstrava absolutamente nenhum sentimento de dúvida. O que ele dizia era uma certeza pura e simples. E para alguém como eu, que sempre tem a tendência de duvidar de tudo, isso é fascinante.
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“Eu não me defino mais como ateu”. Entrevista com Michel Houellebecq - Instituto Humanitas Unisinos - IHU