01 Março 2015
O grão-imã de Al-Azhar denunciou as interpretações baseadas na letra do Alcorão e da sunna, empunhadas pelos fundamentalistas e pelos terroristas islâmicos. Ele defende a urgência de uma reforma do ensinamento do Islã entre os leigos e os imãs. Pede o fim da excomunhão (takfir) recíproca entre sunitas e xiitas. E o presidente egípcio, Al-Sisi, decidiu combater o Estado Islâmico depois da decapitação de 21 coptas cristãos, que ele chamou de "cidadãos egípcios" com plenos direitos.
A opinião é do jesuíta egípcio Samir Khalil Samir, islamólogo de renome internacional e professor do Pontifício Instituto Oriental de Roma. O artigo foi publicado pela agência Asia News, 24-02-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As palavras ditas por Al-Tayeb na conferência de Meca, no dia 21 de fevereiro, são o que de mais importante pode acontecer no mundo muçulmano. Ele falou de como é urgente rever o ensinamento do Islã nas escolas e universidades, corrigindo as interpretações extremistas do Alcorão e da sunna.
O que foi ressaltado por Al-Tayeb, o reitor da Al-Azhar ("Devemos rever o nosso modo de entender o Alcorão e a sunna, e o nosso modo de interpretá-lo") foi dito muitas vezes por muçulmanos doutos (por exemplo: Abdel Majid Charfi, Abdel Wahad, o egípcio Nasr Hamed Abou-Zeid, o marroquino Abdou Filali Ansari, o francês Abdennour Bidar etc...), mas estes eram todos leigos e nenhum deles era imã.
Agora, Al-Tayeb compreendeu e entendeu que é preciso enfrentar esse problema de modo global, no ensino nas escolas e nas universidades – e, portanto, entre os leigos –, mas também no ensino dos imãs.
O compromisso deve ser assumido em todos os níveis, em todas as categorias do mundo muçulmano onde se educa a mente e, especialmente, com os imãs, que todas as sextas-feiras pregam nas mesquitas, e cujos discursos são divulgados no rádio e na televisão, com uma influência midiática muito forte.
1. A excomunhão entre sunitas e xiitas
O ensinamento deve corrigir aquele estilo firmemente estabelecido entre os muçulmanos de se rotularem reciprocamente como "incrédulos", como kāfir, de praticarem o takfīr. Todas as veze em que Al-Tayeb fala, ele volta à acusação de infidelidade desferida contra os muçulmanos.
O que isso significa? Os grupos muçulmanos, os sunitas consideram os xiitas como infiéis, e lançam uma espécie de anátema contra eles. Essa atitude é muito difundida.
Há anos, nos ambientes oficiais, diz-se que é preciso acabar com essa caça às bruxas, mas os mesmos ambientes oficiais (próximos do Qatar e do wahhabismo da Arábia Saudita) usam-na para incitar as pessoas a cometerem ataques contra outros muçulmanos.
Todos os meses, no Paquistão, há bombas contra mesquitas xiitas, às vezes o contrário; o mesmo ocorre no Iraque, no Iêmen, no Bahrein e, às vezes, também no Irã, nas províncias do Baluquistão e do Curdistão.
A tendência é a de considerar aqueles que não pensam como eu como alguém a ser eliminado. Por trás desse problema, esconde-se a questão da liberdade de consciência, de fé, de mudar de religião. Deve ser garantida a possibilidade de ser descrente, sem que haja perseguição ou eliminação. Deve-se dizer que é muito mais comum a condenação dos sunitas contra os xiitas do que o contrário.
Al-Tayeb também convidou a "ir até o fundo nas coisas que nos unem", para ver o que une sunitas e xiitas sem se excomungarem reciprocamente, mas mostrando as duas tradições como dois modos de viver o Islã com igual dignidade.
Esses dias, eu ouvi alguns cristãos que, sobre a guerra entre sunitas e xiitas, comentam, esfregando-se as mãos: "Ainda melhor para nós! Que combatam entre si. Isso não nos importa!".
Não: diante de Deus, isso não é bom, e, além disso, em nível político e histórico, vê-se muito bem que, depois da guerra entre eles, começa-se a matar os judeus e, depois, os cristãos.
Mas, então, qual é o objetivo dos cristãos? Não é o de fazer com que uma religião vença sobre as outras, mas tornar o mundo mais pacífico, mais fraterno. Qualquer forma de ódio vai contra esse projeto.
Por isso, nós, cristãos, deveremos defender as tentativas de diálogo e de convivência pacífica entre sunitas e xiitas e, naturalmente, entre muçulmanos e não muçulmanos.
2. Contra a interpretação literal
Outro ponto importante trazido à tona por Al-Tayeb foi indicar como causa da divisão no Islã "a má interpretação do Alcorão e da sunna". Dizer isso é um salto formidável, um passo importante de autocrítica.
Al-Tayeb diz que o extremismo nasce de uma interpretação não correta do Alcorão; mas justamente os extremistas pretendem ter a verdadeira e autêntica interpretação do Livro e da tradição maometana, porque a seguem literalmente.
Essa crítica implica afirmar que o Alcorão e a sunna devem ser interpretados e não se pode tomá-los ao pé da letra! Só os fanáticos tomam tudo ao pé da letra, e o literalismo é uma falsa leitura do Islã, assim como do cristianismo.
No mundo muçulmano, para traduzir a "interpretação", usam-se duas palavras. Uma é a palavra tafsīr, que significa "comentário". Todos os grandes imãs da história escreveram tafsīr: eles consistem em tomar o texto palavra por palavra, explicar a origem filológica, o lugar gramatical da palavra na frase etc...
A outra palavra é ta'wīl, interpretação, e esta não é praticada quase nada. Talvez seja usada apenas um pouco no mundo xiita.
Eu não tive tempo de ver o texto em árabe do discurso de Al-Tayeb e, por isso, não sei qual dessas duas palavras ele usou.
No seu discurso em Meca, sem explicitar, Al-Tayeb citou "grupos extremistas" que praticam essa interpretação literal. Um motivo é que, na conferência, estavam presentes personalidades do Qatar, ou da Arábia Saudita, ou da Malásia que usam a mesma interpretação. Talvez, a sua citação genérica servia para não dar origem logo a um debate não essencial.
De fato, é muito provável que, com "grupos extremistas", Al-Tayeb indicasse não apenas o Isis, mas também os wahhabitas, os salafistas, a Irmandade Muçulmana etc... Todos estes interpretam o Alcorão de modo literal, embora nem todos eles recorram, depois, à violência.
Infelizmente, dias antes, o mesmo grão-imã condenou os "crimes bárbaros" do Estado Islâmico e desejou para eles a condenação que há no Alcorão para "aqueles agressores corruptos que combatem Deus e o seu profeta: a morte, a crucificação ou a amputação das suas mãos e pés". Desse modo, ele também usou o Alcorão de modo literal!
Infelizmente, essa é uma ambiguidade presente no mundo muçulmano: quando convém, cita-se o Alcorão ao pé da letra; quando se é criticado, diz-se que o Alcorão deve ser interpretado!
3. Islã e islamofobia
Outro ponto de destaque da intervenção do grão-imã de Al-Azhar é quando ele diz que os grupos extremistas "estão difundindo uma imagem negativa do Islã": ele não atribuiu a islamofobia do Ocidente à imagem negativa do Islã.
Muitas vezes, entre os muçulmanos e entre os ocidentais "bonachões", diz-se que as críticas ao Islã vêm de um preconceito atávico, de um fechamento a priori que os ocidentais têm. Em vez disso, para Al-Tayeb, a imagem negativa do Islã vem do próprio Islã. Dizer muito facilmente que "o Islã é uma religião de paz", que tudo está bem, com condescendência, é uma posição falsa.
Mas, mesmo aqui, a posição de Al-Tayeb é um pouco equívoca. De fato, entre as causas das lutas entre muçulmanos, o grão-imã fala de "um novo colonialismo global aliado ao sionismo mundial". Desse modo, ele recai no estilo tradicional do mundo islâmico, que dá a culpa a outros pelo que acontece, diminuindo a responsabilidade dos muçulmanos.
Eu não acredito nessa conspiração "global" e "sionista". Certamente, Israel, os Estados Unidos, o Ocidente podem explorar as divisões e as lutas entre os muçulmanos para os seus interesses. Mas eles não poderiam fazer nada se, no mundo islâmico, não houvesse lutas dos quais os responsáveis são, principalmente, os muçulmanos.
É verdade também que Al-Tayeb admite que tal conspiração explora "as tensões confessionais dos muçulmanos", mas não se pode concluir de imediato que o Ocidente está em guerra contra o Islã.
Eu acredito que as palavras de Al-Tayeb em Meca têm uma importância fundamental. Se, no mundo islâmico, se afirmasse aquilo que ele aponta, ou seja, o aspecto teológico-interpretativo do Alcorão, haveria uma revolução.
4. Al-Sisi e os coptas, cidadãos egípcios
Nestes dias, há de se registar outro fato revolucionário: os ataques aéreos que o presidente egípcio Al-Sisi fez contra as bases do Estado Islâmico na Líbia. O elemento revolucionário está no fato de que ele deu a ordem para os ataques depois do assassinato de 21 cristãos egípcios.
Nessas guerras no mundo islâmico, morreram milhares de muçulmanos. Mas Al-Sisi lançou a represália depois da morte de 21 cristãos coptas, reconhecendo-os, portanto, como cidadãos de pleno direito do Egito. Ele mesmo disse: "Nós não queremos fazer a guerra, mas defendemos a nossa pátria e os nossos cidadãos".
E lançou uma possível aliança dos países árabes para uma luta contra o Estado Islâmico. Além disso, ele participou dos ritos dos funerais na catedral copta do Cairo e decidiu recompensar as famílias que perderam o seu marido ou pai.
O rei saudita Salman também disse coisas interessantes no seminário de Meca. Para o monarca, "o terrorismo é uma chaga produzida por uma ideologia extremista". Ele é "uma ameaça para a comunidade muçulmana e para o mundo inteiro".
Salman definiu os terroristas islâmicos como pessoas "enganadas e enganadoras", que dão a oportunidade para que o mundo "ataque o Islã e trate os muçulmanos como pessoas vis".
Desse modo, vê-se que a autoridade religiosa (Al-Azhar), a autoridade política mais importantes da região (Arábia Saudita) e a autoridade do país árabe mais populoso (Egito) parecem aliadas para uma transformação do mundo islâmico. Talvez, será preciso ao menos uma década para ver os frutos. Mas é preciso começar.
Tal reforma na interpretação e na modernidade havia começado no início do século XX com o imã de Al-Azhar da época, Mohammad Abdou, morto em 1905. Depois, infelizmente, o seu melhor discípulo, Rashid Rida, bloqueou a reforma e tornou-se o pai espiritual da Irmandade Muçulmana, um movimento que aplica a interpretação literal do Alcorão.
Mais de um século depois da morte de Mohammad Abdou, retrocedemos! Esperamos que a resposta à violência de grupos islâmicos marque o início de uma reforma islâmica, como deseja a maioria dos muçulmanos!
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As palavras de Al-Tayeb e de Al-Sisi: um grande passo para uma revolução do Islã. Artigo de Samir Khalil Samir - Instituto Humanitas Unisinos - IHU