23 Fevereiro 2015
Cento e cinquenta anos depois de gravíssimas afirmações da Igreja e da política sobre o tema da escravidão, será preciso evitar, no Sínodo dos Bispos que está sendo preparado, o recurso a tais argumentos toscos, aplicados não mais à escravidão, mas a famílias feridas, a famílias ampliadas e a coabitações.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado na revista Settimana, 22-02-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No caminho rumo ao Sínodo Ordinário de outubro próximo, é bom considerar o rescaldo deixado por algumas intervenções que – muito antes do Sínodo Extraordinário e, depois, durante o seu desenvolvimento, além dos seus balanços que se seguiram – evocaram, com tons dramáticos, o perigo de "traição da tradição" e a possível perda de fidelidade em relação ao depositum fidei.
Para confortar essas vozes alarmadas, é útil recomeçar a partir de uma palavra forte, dita pelo Papa Francisco por ocasião da sua famosa entrevista à revista La Civiltà Cattolica. Ele afirmava, de fato: "... a compreensão do homem muda com o tempo, e assim também a consciência do homem se aprofunda. Pensemos em quando a escravidão era admitida ou a pena de morte era admitida sem nenhum problema. Portanto, cresce-se na compreensão da verdade. Os exegetas e os teólogos ajudam a Igreja a amadurecer o próprio juízo. […] A visão da doutrina da Igreja como um bloco monolítico a se defender sem nuances é errada".
A cabana do tio Tom
É significativo que essa frase tenha sido publicada pela revista dos jesuítas, cuja história faz parte, em pleno título, daquela "mudança", em que a consciência da Igreja se aprofunda e se afina.
Nesse lento percurso de "afinamento", é preciso rever não apenas as ideias, mas também as modalidades da argumentação e os dados da experiência. O exemplo trazido pelo Papa Francisco deve fazer pensar: antigamente, a escravidão era admitida e era justificada com a "lei natural" pela própria Igreja.
O preconceito mais pesado era coberto e sustentado por uma suposta "evidência natural". É útil consultar dois textos da época, bastante significativos. Na mesma revista dos jesuítas, que hoje hospeda as entrevistas proféticas do Papa Francisco, em 1853, apareceu uma resenha de um livro que corria o risco de ser "posto no Índex" naqueles anos, A cabana do tio Tom. Nela, comentava-se com ironia pesada "A escravidão na América e a Cabana do tio Tom" (La Civiltà Cattolica, 1853, IV, 2, 2, p. 481-499), acrescentando uma série de considerações a propósito da "servidão".
O livro, embora sendo julgado como "não ruim", incitava estes julgamentos terríveis: "O escravo preto ou de outra tinta que não seja a branca é, como o servo junto aos pagãos, estritamente não uma pessoa, mas uma coisa, embora (entenda-se) coisa viva e movente... Uma raça, digamos, que, colocada no ínfimo grau da espécie humana, na tez negra a ponto de degradar o ébano, na crina lanosa e veludada, na face esmagado e estranhamente obtusa, no olho que, quando não é estúpido, ou é feroz e te revela uma astúcia sagaz, nas faculdades intelectuais lentas, circunscritas, muito inertes... Assim, neles, a condição de escravos parece ter vindo para confirmar o que a natureza havia disposto; e a repugnância que as outras raças encontram ao se aproximar deles parece condená-los a uma eterna servidão. Ora, todos veem que tais diferenças não são removidas com os artigos dos códigos. Quer seja em um Estado da Confederação admitida ou não legalmente a escravidão, será sempre verdade que um branco não se sentará eternamente à mesma mesa com um homem de cor, não vai querer entrar com este na mesma carruagem ou compartilhar o banco, não apenas no teatro, mas também no templo..." [1].
Do mesmo modo, uma instrução da Congregação para o Santo Ofício de 13 anos depois (1866) estabelecia o que se segue: "Embora os Pontífices Romanos não tenham deixado nada de não tentado para abolir a escravidão junto a todas as gentes, e a isso se deba principalmente o fato de que, há diversos séculos, não se encontrem mais escravos em muitos povos cristãos, todavia […] a escravidão, por si só, não repugna, de fato, nem ao direito natural nem ao direito divino, e pode haver muitos motivos justos para ela, segundo a opinião de provados teólogos e intérpretes dos sagrados cânones. De fato, a posse do senhor sobre o escravo nada mais é do que o direito de dispor perpetuamente da obra do escravo, para a suas próprias comodidades, as quais é justo que um homem forneça a outro homem. Segue-se que não repugna ao direito natural nem ao direito divino que o servo seja vendido, comprado, doado. Portanto, os cristãos (…) podem legalmente comprar escravos ou dar-lhes em pagamento de dívidas ou recebê-los como doação, todas as vezes em que estão moralmente certo de que esses servos não tenham sido nem subtraídos ao seu legítimo senhor nem injustamente arrastados à escravidão (…) porque não é lícito comprar, sem a permissão do proprietário, a coisa alheia, subtraída com o furto" [2].
A 13ª emenda
Por último, podemos reencontrar, em um recente filme de sucesso como Lincoln, de Steven Spierlberg, a acurada reconstrução da superação formal da escravidão por parte dos EUA, com a aprovação da 13ª emenda, no dia 31 de janeiro de 1865.
Há 150 anos, para chegar a essa histórica aquisição, foi necessário um choque de argumentações e de forças bastante grande. Hoje, parece que adquirimos o "valor", mas o método ainda parece bastante obscuro.
É bom ouvir, no seu discurso à Câmara dos Representantes, um honesto "defensor da escravidão" temer o efeito de "plano inclinado" que poderia ter uma aprovação da 13ª emenda: "A lei natural impõe a diferença entre brancos e negros perante a lei. Se hoje equiparássemos os negros aos brancos, amanhã os negros quereriam votar e, por fim, acabariam pedindo o voto... até mesmo para as mulheres!".
Cento e cinquenta anos depois dessas gravíssimas afirmações, no Sínodo dos Bispos que está sendo preparado, será preciso evitar o recurso a esses argumentos toscos, aplicados não mais à escravidão, mas a famílias feridas, a famílias ampliadas e a coabitações.
A quem usar tais argumentos e pavimentar tais "planos inclinados", poderá acontecer, em 150 anos, de ser citado como um homem – não importa se leigo ou clérigo, filósofo ou teólogo – que vivia em tempos já totalmente incompreensíveis.
Mas não é evidente que toda a inadequação dessa abordagem não possa saltar aos olhos já hoje, 150 anos antes...
Nota:
1. No original: «Lo schiavo negro o di altra tinta che non sia bianco è, come il mancipio presso i pagani, strettamente non persona ma cosa, benché (si capisce) cosa viva e semovente... una razza, diciamo, che, collocata nell’infimo grado dell’umana specie, nella carnagione nera da disgradarne l’ebano, nel crine lanoso e velluto, nella faccia schiacciata e stranamente ottusa, nell’occhio che, quando non è stupido, o è feroce o ti rivela un’astuzia volpina, nelle facoltà intellettuali lente, circoscritte, inertissime... Così in essi la condizione di schiavi pare venuta a confermare ciò che avea disposto la natura; e la ripugnanza che le altre razze trovano ad avvicinarlesi sembra condannarli ad un eterno servaggio. Or vede ognuno che somiglianti differenze non si tolgono via cogli articoli dei codici. Sia in uno Stato della Confederazione ammessa o no legalmente la schiavitù, sarà sempre vero che un Bianco non si assiderà in eterno alla stessa mensa con un uom di colore, non vorrà con essolui entrare nel medesimo cocchio od avere comune il banco, non che nel teatro, ma fino nel tempio...».
2. Instrução do dia 20 de junho de 1866 da Sacra Congregação para o Santo Ofício, aprovada pelo papa [Pio IX] e reunida em Collectanea S. Congregationis de Propaganda Fide seu Decreta Instructiones Rescripta pro apostolicis Missionibus, vol. I, Roma 1907, p. 719 (texto original em latim).
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150 anos antes do Sínodo, escravidão e ''lei natural''. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU