06 Outubro 2014
Depois que os militares corromperam a língua inglesa com a expressão "danos colaterais", eu gostaria de apresentar o igualmente delicado e igualmente enganoso "benefício colateral". Espero que você goste da maneira suave como o eufemismo escorre dos lábios; a sutileza imperceptível com que ele confunde a responsabilidade.
A reportagem é de Nick Cohen, publicada pela revista CartaCapital, 03-10-2014.
A frase implica, sem ser tão crua a ponto de dizê-lo em voz alta, que o Ocidente não pretende que criminosos em massa lucrem com suas guerras, assim como não pretende que civis morram em seus ataques aéreos. Quando os contadores da violência fizerem seu cálculo, se os ditadores forem tão triunfantes quanto os civis estão mortos, não é problema nosso.
Bashar al-Assad hoje desfruta dos benefícios colaterais da política externa ocidental. Não é que ele, e por extensão o Irã e o Hizbollah, seja nosso aliado formal. Ainda temos nossos padrões, afinal. Se o poder deles for reforçado, e o bombardeio e a chacina de civis continuar, lamentamos, naturalmente. São efeitos colaterais imprevistos que ninguém pode esperar que controlemos.
O sofrimento humano não é uma competição. Não se podem medir pilhas de cadáveres e reservar suas críticas para os mais altos. Mas quando Barack Obama se dirigiu à ONU ele nem sequer olhou para a montanha de corpos na Síria. Ele descreveu os crimes de guerra do Estado Islâmico, mas nem uma vez disse que o fascismo religioso foi alimentado pela guerra mais sangrenta que Assad lançou contra a versão síria da Primavera Árabe. "Vamos apoiar os iraquianos e os sírios que combatem para recuperar suas comunidades", gritou Obama. Mas só se eles estiverem lutando para recuperá-las do Estado Islâmico.
Entre 2011, quando manifestantes pacíficos exigiram a derrubada da ditadura do Baath que tiraniza a Síria desde 1963, e abril deste ano, a ONU disse que 191 mil pessoas foram mortas – acrescentando que o número é "provavelmente subestimado". Cerca de 9 milhões de sírios fugiram de suas casas. Para compreender a catástrofe causada pelo regime Assad, é preciso imaginar uma Grã-Bretanha apocalíptica onde toda a população de Londres – e mais um pouco – corre para salvar a vida. Assad lançou ataques de armas químicas nos subúrbios de sua própria capital. A galante força aérea síria despejou bombas incendiárias em pátios de escolas. Muitos milhares de pessoas, incluindo trabalhadores de socorro, advogados e médicos, desapareceram em suas prisões, onde seus carcereiros os espancaram, mutilaram e estupraram.
Obama poderia ter atirado ao regime Assad todas as condenações que atirou contra o Estado Islâmico. Ambos "aterrorizaram todos os que cruzaram seu caminho" na Síria. Ambos submeteram "mães, irmãs e filhas à violação como arma de guerra". Ambos "atiraram em crianças inocentes". Mas enquanto Obama disse que o Estado Islâmico chocou "a consciência do mundo", não conseguiu proferir uma palavra sobre Assad.
Eu admito que a consciência do mundo é tão flexível quanto um iPhone. E já mencionei antes como Obama se dobra ao vento. Mas seu comportamento, e o do Ocidente em geral, continua extraordinário. Vamos à guerra contra um inimigo bárbaro, mas ninguém fala sobre a barbárie que ajudou a criá-lo. O fato de que os ataques aéreos contra os inimigos de Assad deverão aumentar as probabilidades de sobrevivência do ditador não é um assunto adequado para discussão.
Estou tentado a escrever que a disposição de Obama a ajudar criminosos é nixoniana. As autoridades do Oriente Médio já estão examinando os intercâmbios diplomáticos com Teerã e especulando que ele ruma para seu próprio momento Nixon na China. Nadim Shehadi, da Chatham House, diz que Assad deve estar esperando a notícia de que Obama está pronto a permitir que ele domine a Síria e que seus asseclas iranianos dominem o Iraque e o Líbano também. Entretanto, talvez a comparação de Obama com o pior de seus antecessores seja bondosa demais. Nixon e Kissinger fariam qualquer coisa e apoiariam qualquer um que fosse contra a União Soviética. Apesar de todos os seus crimes, eles tinham uma objetividade brutal. Eu me esforço para encontrar algum tipo de coerência na política externa de Obama.
Assad não se importa. Ele sabe que está ganhando, sejam quais forem os motivos do presidente. Ali Haidar, o "ministro da reconciliação nacional", ronronou como a rainha ao ouvir o resultado do referendo escocês quando descreveu os ataques americanos a alvos do Estado Islâmico. "O que aconteceu até agora está procedendo na direção certa em termos de informar o governo sírio e não atingir instalações militares sírias."
Não discuto a necessidade de confrontar o Estado Islâmico. O islamismo militante conduzirá os cristãos e os zoroastrianos para fora do Iraque como já fez com os judeus. Os curdos, que poderiam ser nossos mais verdadeiros amigos na região, poderão sofrer mais massacres. A Grã-Bretanha tem uma responsabilidade moral especial de enfrentar o islã radical, já que nossa sociedade "vibrante" e "diversificada" forneceu ao Estado Islâmico tantos carrascos (ou teria uma responsabilidade moral se nossas forças armadas não tivessem perdido a batalha com George Osborne e ficado sem condições de enfrentar qualquer um).
Mas, assim como o Ocidente não reconhece o direito dos curdos à autodeterminação, também não aceitará que é impossível combater o Estado Islâmico na Síria sem oferecer esperança aos adversários de Assad. Em vez disso, continua propagando a mentira autenticamente orientalista de que os sírios são ou baathistas ou islâmicos radicais, e que não há alternativa à tirania.
Não acredito que essa linha se manterá. Por quanto tempo os países árabes sunitas ficarão na coalizão de Obama quando virem seus inimigos xiitas se beneficiarem? Como os sírios vão reagir ao duplo critério?
É como se todo slogan liberal da última década estivesse voltando para assombrar Obama. Você vai se lembrar de ouvir, ou talvez tenha dito pessoalmente, que deveríamos nos concentrar nas "causas originais" do terrorismo. A causa original do Estado Islâmico é o sectarismo xiita no Iraque e o assassinato em massa sectário na Síria. Mohammed Antabli, um líder dos exilados sírios na Grã-Bretanha, contou-me que levou políticos britânicos e europeus até a fronteira da Turquia com a Síria no início da guerra e os advertiu de que o islamismo floresceria se o Ocidente nada fizesse pela oposição moderada. E foi assim.
Você vai se lembrar de ouvir, ou talvez tenha dito pessoalmente, que não devemos alienar "a rua árabe". Kassem Eid, um ativista da oposição hoje exilado nos EUA, disse que as ruas que restaram na Síria foram alienadas além da conta. O mundo democrático nada fez. Nada de zona de exclusão aérea. Nenhuma tentativa de desacelerar Assad, mesmo por um dia, mesmo quando ele cruzou a "linha vermelha" de Obama sobre armas químicas. Todo ativista sírio com quem falei repetiu sua afirmação de que as hipocrisias ocidentais estão atraindo apoio para o islamismo.
Em seu 1 September, 1939, à véspera de outra guerra, W. H. Auden escreveu: "Eu e o público sabemos/ o que todos os escolares aprendem/ que aqueles contra quem se pratica o mal/ fazem o mal em troca".
Um grande mal foi feito à Síria. Não posso ver como qualquer projeto ocidental contra o Estado Islâmico poderá prosperar até que a "consciência do mundo" ofereça reparação, dizendo que não vai tolerar a continuidade do regime Assad. Neste momento, porém, o mundo nem sequer reconhece a existência do mal. Devemos esperar o mal em troca.
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A hipocrisia do Ocidente reforça o regime brutal de Assad - Instituto Humanitas Unisinos - IHU