28 Agosto 2014
Se o papa quer uma Igreja que prioriza as necessidades dos pobres, então, abordar o bem-estar reprodutivo das mulheres é fundamental para esse objetivo.
A opinião é de Tina Beattie, professora de teologia da Universidade de Roehampton em Londres. O artigo foi publicado no jornal The Guardian, 27-08-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
O Papa Francisco tem dito repetidamente que quer uma Igreja pobre para os pobres. Em uma época em que milhões de pessoas estão experimentando o impacto brutal das políticas econômicas e uma ganância corporativa desenfreada, ele tem atraído a admiração de católicos e não católicos por sua condenação do sistema econômico e pela simplicidade de sua própria vida.
Ele também reconheceu a necessidade de dar às mulheres uma maior participação na vida da Igreja, embora tenha feito pouco para alcançar este objetivo. Por sua vez, a pobreza tem um impacto inexoravelmente agudo na vida das mulheres, e em nenhum lugar a ausência da influência das mulheres se manifesta tão claramente quanto no que se refere aos ensinamentos da Igreja sobre a ética sexual e reprodutiva.
Enquanto as encíclicas papais estão repletas de referências negativas à contracepção e ao aborto e de referências positivas à maternidade, o casamento e a família, pode-se procurar em vão por qualquer discussão sobre a mortalidade materna. Como seus predecessores, o Papa Francisco tem uma tendência para romantizar quando fala sobre a maternidade. Essa é uma fantasia perigosa quando obstrui as duras realidades e as lutas da vida reprodutiva das mulheres.
Se o papa quer uma Igreja que prioriza as necessidades dos pobres, então, abordar o bem-estar reprodutivo das mulheres é fundamental para esse objetivo. A mortalidade materna é, muitas vezes, uma consequência direta da pobreza. Das cerca de 280 mil mortes maternas por ano, 99% ocorrem nos países mais pobres do mundo - a maioria na África subsaariana e no sul da Ásia. Uma boa assistência obstétrica poderia prevenir a maioria dessas mortes, mas as questões sobre contracepção e o aborto são as que despertam mais questões éticas.
Não defendo a posição da Igreja Católica sobre a contracepção. No entanto, é importante separar os direitos reprodutivos das mulheres dos programas de contracepção associados a políticas de controle populacional. As feministas que falam a partir do sul global, como Kalpana Wilson, argumentam que esses programas são movidos por políticas econômicas de exploração e, muitas vezes, são profundamente coercitivos. Paradoxalmente, quando os documentos de trabalho para a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, em 1994, no Cairo, incluiu uma forte ênfase em controle da população, a Igreja Católica e o movimento internacional das mulheres, embora profundamente hostis entre si, fizeram uma campanha eficaz para redirecionar a agenda de desenvolvimento internacional para distanciar-se do controle da população para a educação e o empoderamento das mulheres.
Uma pesquisa recente mostra que a maneira mais eficaz de reduzir a taxa de natalidade é através da educação feminina, que também tem um impacto significativo na redução da mortalidade infantil. Uma mulher educada, que sabe que os seus filhos tem mais chance de sobreviver terá menos filhos do que as mulheres em áreas com altas taxas de mortalidade infantil e falta de acesso à educação. Também é interessante assistir a palestra TED de Hans Rosling, na qual ele mostra que as taxas de natalidade diminuem ou estabilizam quando a pobreza é reduzida, independentemente de influências religiosas.
Nada disso significa negar que o acesso à contracepção segura, confiável e acessível é importante quando as mulheres fazem suas escolhas reprodutivas. No entanto, embora uma mudança no ensino da Igreja sobre a contracepção pode estar muito atrasada, isso não deve se traduzir em um endosso acrítico de programas contraceptivos infligidos aos pobres do mundo. Em vez disso, a comunidade internacional deve se concentrar na redução da pobreza e na capacitação e educação de mulheres e meninas, não só porque a justiça exige, mas porque tem sido demonstrado que essa é a forma mais eficaz de combater a crise populacional.
A questão do aborto tem implicações semelhantes, embora a maioria dos católicos que eu conheço considere isso como uma questão ética mais complexa do que a contracepção. Eu sei que poucos concordariam que é simplesmente uma questão de autonomia individual e um direito de escolha da mulher, embora isso não signifique que eles apoiam a criminalização do aborto. A Igreja diz que o aborto é sempre errado; as feministas dizem que é sempre um direito, mas no mundo real, por vezes, enfrentamos dilemas morais complexos onde erros e acertos não são tão facilmente distinguidos.
A natureza polêmica do debate faz com que as estatísticas - já não tão confiáveis - sejam manipuladas por ambos os lados. Os opositores do aborto argumentam que o acesso ao aborto não reduz as mortes maternas, apontando para países como o Chile e a Irlanda que têm taxas muito baixas de mortalidade materna, apesar de o aborto ser ilegal. No entanto, essas justificativas ignoram o fato de que 40.000 mulheres morrem a cada ano porque preferem arriscar um aborto inseguro do que ir adiante com uma gravidez indesejada. Embora a gravidez precoce raramente possa ser uma causa direta de morte materna, o aborto inseguro é com certeza. Essas questões devem ser levadas em consideração em qualquer debate sobre a Igreja Católica e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, em particular no que diz respeito à pobreza e à maternidade.
Em nível mais local, as agências e ordens religiosas católicas são as principais fontes de educação e assistência sanitária para os pobres do mundo. Isso inclui a prestação de cuidados pré-natais e obstétricos, lidar com as consequências de abortos mal feitos e cuidar de pessoas infectadas com o HIV e AIDS. No entanto, parte desse trabalho passa desapercebido. Alguns prestadores de saúde católicos, com frequencia, têm medo de divulgar alguns aspectos do seu trabalho - tais como: cuidados pós-aborto ou fornecimento de preservativos para pessoas em risco de contrair HIV e AIDS - por medo de que seu financiamento seja cortado ou que sejam censurados por seus bispos.
Se o papa fala sério sobre querer uma Igreja pobre para os pobres, ele precisa criar um espaço seguro onde essas questões possam ser discutidas. Ele disse que prefere "uma Igreja que esteja machucada, ferida e suja porque tem saído às ruas do que uma Igreja doente por estar confinada e se agarrar à própria segurança". Ele tem salientado o caráter maternal da Igreja, e ele diz que quer uma Igreja onde os pastores tenham o cheiro das ovelhas. Que tal uma Igreja materna onde os pastores tenham o cheiro das mulheres machucadas, feridas e sujas que estão morrendo no parto?
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Papa Francisco tem feito pouco para melhorar a vida das mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU