Por: André | 06 Agosto 2014
Indignado e incomodado, o cardeal Rouco Varela não dava crédito ao que estava acontecendo. Em seu foro íntimo pensava: “Não podem me demitir assim. Minha folha de serviços à Igreja merece outra coisa”. Teve que demonstrar todo o seu autocontrole diante do núncio, embora em sua mente martelasse sem cessar uma ideia: Roma estava cometendo uma grande injustiça com ele. No conteúdo e na forma.
A reportagem é de José Manuel Vidal e publicada no jornal espanhol El Mundo, 03-08-2014. A tradução é de André Langer.
Um suor frio começou a escorrer pelo seu rosto. E isso que na tarde de 25 de julho fazia um calor de morte na Rua Pio XII de Madri, sede da Nunciatura da Santa Sé. No interior do despacho do núncio Fratini, no entanto, o ambiente era aprazível. As grossas paredes do palacete não deixam passar o calor e o jardim que o rodeia o mantém fresco inclusive no fragor do verão madrilense.
Rouco não podia acreditar no que estava acontecendo. E, além disso, sentia-se humilhado. No dia 25, estreve em Compostela, presenciando na primeira fila, como eclesiástico de maior categoria, a primeira oferenda do novo rei, Felipe VI, ao Apóstolo. Ali, todo o mundo sabia que estava de saída, mas seguia conservando sua aura de poder. Em todos os grupinhos clericais compostelanos falava-se dele e de seu “segredo” para permanecer no posto de arcebispo de Madri três anos após ter completado os 75 anos e com um Papa que não é da sua linha.
Acolhido cordialmente por uns, temido por outros, o cardeal foi nessa mesma noite com seu sobrinho, mons. Carrasco Rouco, para pernoitar na sede da diocese de Lugo. E ali recebeu, no dia seguinte, o telefonema do Núncio da Sua Santidade: “Eminência, tenho que vê-lo amanhã sem falta na sede da Nunciatura. Tenho que dar-lhe uma notícia pessoalmente”. Nem Rouco perguntou do que se tratava, nem o núncio o adiantou.
Durante a viagem de Lugo até Madri não parou de pensar no telefonema do Núncio. Que coisa tão importante teria que lhe comunicar mons. Fratini, para fazê-lo voltar para Madri a toda pressa? E repassou assuntos eclesiásticos graves. Podia ser algum caso de pederastia a ponto de explodir. Ou a transferência urgente de algum bispo. Ou que o representante papal quisesse saber sua opinião sobre o caso Pujol. Ou que Roma quisesse conhecer seu parecer sobre o sucessor do cardeal Sistach em Barcelona. Ou que tivessem chegado ao Vaticano rumores sobre o calamitoso estado das contas da Arquidiocese de Madri...
“Com Bento XVI isso não teria acontecido”
Nem por assomo conjecturou que o Núncio fosse lhe comunicar que o Papa aceitava sua renúncia. Primeiro, porque não costuma ser o procedimento habitual. Normalmente, quando um cardeal passa à reserva, Roma comunica com muita antecedência o dia em que se será publicada a aceitação da sua renúncia, assim como o nome do seu sucessor. Essa era a práxis, ao menos até agora. Mas, já se sabe que com Francisco as coisas mudaram tanto em tão pouco tempo...
E como não esperava, saiu da Nunciatura ainda mais sentido. Como um basilisco. E assim continua: tremendamente ferido e enfadado com o mundo. Os que o viram por estes dias asseguram que “quase chora pelas esquinas” e que, em privado, não faz outra coisa que lamentar-se. Repete para quem quer ouvi-lo quase as mesmas palavras que disse ao Núncio: “Com a saúde que eu tenho, posso continuar. Há uma semana que estive em Roma e ninguém me disse nada. E agora me soltam uma notícia dessas pelo núncio. Com Bento XVI isso não teria acontecido”.
Em seu entorno, que cada vez apresenta mais fendas, garantem que não quer deixar o cargo. Não aceita a ideia de ter que deixar o cargo e passar a ser emérito. Está tão chateado que chegou a dizer a dizer a alguns que, venha quem vier, ele vai ficar em Madri. Mais ainda, ameaça permanecer no próprio palácio de São Justo, residência dos arcebispos madrilenses: “Faremos um andar abaixo para quem vier e eu ficarei morando acima, na minha casa de sempre”.
Agenda cheia
Para demonstrar que está em boa forma e que a arquidiocese continua funcionando normalmente, o cardeal encheu de grandes atos sua agenda até outubro: 06 de agosto, preside, em Compostela, a comemoração dos 25º aniversário da JMJ de 1989; de 18 a 21 de setembro, Madri acolhe as II Jornadas Sociais Católicas Europeias; no dia 27 de setembro, a beatificação de mons. Álvaro del Portillo, sucessor de Escrivá de Balaguer à frente da Opus Dei; e até já programou para o dia 7 de outubro o início da visita pastoral ao Vicariato V da diocese madrilense.
Mas isso ainda não é tudo. Sua indignação aumenta quando para para pensar na forma como lhe comunicaram a aceitação da renúncia: fazendo-o voltar a toda pressa da sua terra e pela boca de um homem que, até agora, havia sido uma espécie de subalterno para ele. O imperador humilhado. O vicepapa espanhol demitido por um simples núncio, a quem sempre controlou e manteve sem comando real no episcopado.
Homem de poder, acostumado a dirigir a trama da política eclesiástica espanhola durante mais de duas décadas, Rouco sente-se, pela primeira vez, impotente e sem sequer capacidade de manobra. Mas, fiel a si mesmo, não parou de buscar explicações ao telefonema do núncio. Está tão chateado com mons. Fratini que o culpa inclusive pelo fato de que o Papa tenha aceitado sua renúncia assim, de repente e sem aviso prévio.
Indignado com o vazamento
Por outro lado, sua indignação subiu de tom quando a notícia vazou para os meios de comunicação. E, na quarta-feira, 30 de julho, tão somente três dias depois do comunicado do núncio, o jornal La Razón publicava a singular manchete: O Papa aceita a renúncia de Rouco Varela à frente de Madri.
Ficou sentido, especialmente, que fosse esse jornal, por ser o jornal “de cabeceira” do cardeal Cañizares, seu eventual sucessor. As pessoas mais próximas a ele apressaram-se a atribuir o vazamento da notícia ao prefeito da Congregação para o Culto Divino. Para queimá-lo como eventual sucessor. Mas Rouco não acreditou nessa versão. Conhece muito bem o ministro da liturgia do Papa (desde os tempos em que eram amigos íntimos) e sabe que não manipula os tempos nem os meios, nem quer jogar mais lenha na fogueira da sucessão. Basta-lhe esperar desde a distância romana.
Por isso, logo depois o cardeal inclinou-se pela hipótese de que o vazador tenha sido o próprio núncio, após ter recebido ordens de Roma, com o objetivo de que o cardeal de Madri não fosse alongando indefinidamente (e com todo o tipo de artimanha) a data do seu adeus.
Ganha, pois, corpo, a hipótese de que o prefeito dos Bispos, o cardeal Ouellet, cansado das tretas de Rouco, tenha mandado o núncio comunicar a notícia ao cardeal antes de torná-la oficialmente pública. Dado que a renúncia de um bispo só é aceita no momento em que é publicada pelo boletim da Santa Sé, o cardeal canadense encarregado dos bispos quis ter um pequeno detalhe com o cardeal madrilense. Para que vá preparando o melhor que puder sua saída, que seria anunciada publicamente no final de agosto ou princípios de setembro.
A data proposta por Roma era 28 de agosto, mas Rouco pediu, por favor, que fosse adiada até o dia 08 de setembro, porque a primeira semana desse mês é dedicada, há anos, às suas férias alemãs.
Em todo caso, fiel a si mesmo, Rouco continua queimando os miolos em busca de possíveis estratégias que adiem a data fatal da sua retirada. Já o conseguiu fazer alguns meses atrás. Com efeito, em dezembro passado, o ministro do Interior, Jorge Fernández, membro da Opus Dei e muito conectado com os “assuntos romanos”, anunciava a um reduzido grupo de civis e eclesiásticos: “Cañizares vem para Madri ainda para o Natal”. Mas, a máquina roucana pôs-se em marcha e conseguiu adiar a data da sua saída.
Outros, no entanto, garantem que a verdadeira razão do adiamento da aceitação da sua renúncia está na pouca clareza da situação real econômico-financeira na qual se encontra a arquidiocese madrilense há muitos anos.
Uma quaterna de nomes
Outra coisa que muito dói a Rouco na hora do adeus é não saber quem vai ser seu sucessor. Considera esse fato como “uma patada” de Roma. Sabe, isso sim, que não será nenhum dos três nomes que ele propôs: Fidel Herráez, seu fiel bispo auxiliar; Juan José Asenjo, arcebispo de Sevilha, e Jesús Sanz, arcebispo de Oviedo. Os três estão descartados para a sucessão, porque não constam da terna enviada a Roma pelo núncio. Uma terna que, neste caso concreto, é quaterna. Ou seja, está integrada por quatro nomes: Antonio Cañizares, Carlos Osoro, Juan Del Rio e Ricardo Blázquez.
Desta quaterna sairá o próximo arcebispo de Madri. Mesmo que ninguém deles saiba de nada, neste momento e depois de muitos comentários, o candidato com mais probabilidades é o cardeal Cañizares. Dom Antonio pediu ao Papa para voltar para a Espanha. E Francisco, pelo que tudo indica, teria lhe respondido: “Voltarás para a Espanha, mas não te digo nem quando nem para onde”. Por outro lado, é dos poucos prefeitos de dicastérios que não foram confirmados em seu cargo. Mais ainda, em Roma asseguram que Cañizares já sabe quem vai sucedê-lo à frente da Congregação do Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos. Um dicastério que será redimensionado na nova configuração curial do Papa Francisco.
Conhecendo o Papa Francisco, não se pode excluir, no entanto, que se pule ternas e quaternas, e opte por um outsider. Para imprimir uma profunda mudança de direção na Igreja espanhola e sua adequação aos novos ventos romanos. Nesse caso, ganharia muitos pontos a figura do arcebispo galego e secretário da Congregação para a Vida Religiosa, frei José Rodríguez Carballo. O ourense tem experiência de governo. Não por acaso foi o ministro-geral dos franciscanos. Tem dotes pastorais e fina sintonia com o Papa. Poderia ser uma opção.
Em qualquer caso, neste momento, Rouco sabe que já não tem margem de manobra e que já não pode “enredar” em Roma. Por isso, segundo contam em Madri, optou pelo vitimismo e pela indignação. Está indignado com o representante do Papa na Espanha (“Quem é o núncio para me dizer uma coisa dessas?”) e se faz de vítima com os últimos fiéis que restam: “Já chegou a minha hora... Preciso ir... Quem virá agora?”
Na próxima semana, o Vaticano comunicará ao Governo o nome do sucessor do cardeal de Madri e, então, é provável que acabe vazando para algum meio de comunicação. Por enquanto, a Igreja espanhola segura a respiração. A nomeação será decisiva pela virada que tem que fazer para adequar-se à primavera de Francisco. E a marchas forçadas. Porque, até agora, está sendo uma das Igrejas mais reticentes para acertar os ponteiros com Roma, submissa na etapa anterior e no modelo anterior de Igreja pelo imperador, como Rouco é chamado em alguns círculos clericais.
A sucessão de Rouco manterá, pois, a Igreja espanhola em stand by no mês de agosto. Vai-se o cardeal Cisneros, sem poder alongar mais seu reinado e sem ter podido nomear seu sucessor. Um adeus triste para o vicepapa espanhol. Sic transit.
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Cardeal-Arcebispo de Madrid não quer deixar o cargo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU