09 Julho 2014
"Francisco falou comigo sem nunca olhar para o relógio. Ele disse que mudar as coisas é difícil, mas que é necessário fazê-lo." A irlandesa Marie Kane, 43 anos, sai renovada do "franco face a face" de meia hora em Santa Marta. Ela foi abusada dos 15 aos 18 anos por um padre em Bray.
A reportagem é de Giacomo Galeazzi, publicada no jornal La Stampa, 08-07-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um diálogo que entrelaçou questões privadas e decisões relevantes para toda a Igreja. Com o papa que não esconde as dificuldades, mas que mostra a determinação de levar até o fim a obra de "purificação". Em todos os níveis, mudando os procedimentos ineficientes do sistema e identificando as responsabilidades dos indivíduos.
"Grande parte da conversa foi sobre temas pessoais", acrescenta ao Irish Times. "Eu descrevi para ele os efeitos dos abusos sofridos e as consequências sobre a relação com a Igreja dos meus dois filhos, que agora têm 14 e 18 anos: não acreditam na Igreja de forma alguma."
Bergoglio se inclina para ouvi-la como um pároco no confessionário. Para ele, na sala, existe apenas a mulher que confidencia sofrimentos e obstáculos na sua vida. Abrir-se de modo tão imediato e espontâneo só havia ocorrido com ela apenas uma vez. Com o seu marido, Sean, casados há 23 anos.
"Eu o coloquei a par assim que começamos a sair juntos." E isso foi "de grande ajuda", enquanto, para os seus pais, "o que tinha acontecido era grande demais para se enfrentar".
Na segunda-feira de manhã, o que surgiu na alma de Marie Kane foi a atitude "límpida e partícipe" de Francisco. A forma se torna substância, e à simplicidade dos modos se une a profundidade das reflexões. "Achei Francisco muito humilde: nenhum protocolo, nem cerimonial, nem formalismo."
Uma linearidade de comportamento que reforça a credibilidade do que Francisco recém-proferira na homilia da missa. Não há ruptura entre pregação e prática. Por isso, "me senti completamente à vontade, relaxada".
O papa "parecia sinceramente entristecido por aquilo que eu lhe contava e me pareceu muito envolvido". Havia "uma forte empatia entre nós". Portanto, "nenhum olhar para o relógio, nenhuma pressa: fui eu que pus fim à conversa e lhe disse tudo o que eu tinha intenção de relatar".
Francisco estava abalado, comovido, entristecido. "Foi uma experiência muito positiva", destaca Marie Kane, que tinha consigo uma carta "para não se esquecer de nada". A sua filha tinha escrito outra. "Eu entreguei ambas nas mãos do papa."
Mas, mais do que as palavras, foram os olhares, as lágrimas, "a partilha das emoções" que falaram. Sem poupar nada, nem mesmo os nomes de "quem traiu a sua missão". Assim, "eu pedi que o pontífice removesse o cardeal Seán Brady como arcebispo de Armagh e primaz da Irlanda, por ter encoberto em 1975 os abusos sexuais de um sacerdote". De fato, "é escandaloso que ainda faça parte da hierarquia eclesiástica quem encobriu abusos". Além disso, "na Igreja, nada mudará enquanto essas pessoas permanecerem no seu lugar".
Marie se volta ao papa de coração aberto, entende que pode confiar. Folhear páginas dolorosas torna-se natural. "Eu lhe disse que os encobrimentos ainda ocorrem, e que ele tem o poder de mudar a situação. Além do cardeal Brady, existem outros responsáveis". Francisco assentiu, os olhos de Marie brilharam.
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''O papa falou comigo com o coração, sem nunca olhar para o relógio'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU