Por: Cesar Sanson | 24 Abril 2014
Em três dias, mais de 200 chegaram a São Paulo. Alguns imigrantes não encontram emprego por falta de documentação.
Os olhares são desconfiados. O aperto de mão um tanto frágil. A comunicação só se desenvolve porque há um certo interesse em ser ajudado. O lado de lá (o entrevistado) vê no lado de cá (o repórter) a possibilidade de que boas novas cheguem.
A reportagem é de Afonso Benites e publicada pelo jornal El País, 23-04-2014.
- É você que veio me dizer que eu terei um emprego legalizado? – pergunta o homem, em um inglês carregado de sotaque.
- Não. Sou jornalista. Gostaria de conversar contigo sobre tua situação e de teus amigos haitianos aqui em São Paulo.
Assim que ouve a resposta, Roniel vira as costas para o repórter, afasta-se uns dois metros, olha para quatro compatriotas e diz, em francês, que preferia que um eletricista estivesse na sua frente, não um repórter. Todos riem. O alvo da brincadeira também.
- Do que você está rindo? – pergunta, em inglês.
- Da minha profissão. Se eu fosse eletricista, poderia te ajudar. Mas como jornalista, parece que não posso.
Depois de derrubada a barreira inicial, um envergonhado Roniel abre um sorriso e desata o nó da língua. E não para de falar. A conversa se desenvolve de uma maneira um tanto estranha.
Ele mistura inglês com português, espanhol com francês. Quando quer comentar algo impublicável, se volta aos seus amigos e fala em creole, uma das línguas de seu país natal, o Haiti. O palco do encontro é o pátio da igreja Nossa Senhora da Paz, onde há um centro de imigrantes no bairro do Glicério, região central de São Paulo.
Vivendo há oito meses no Brasil, sendo os últimos três fazendo bicos em oficinas mecânicas da capital paulista, Roniel não se deixa fotografar.
- Essas fotos tiram minha alma, diz sorrindo.
- Mas isso é da tua cultura? Isso não é conversa de povos indígenas, como os que vivem nos Andes?
- É deles, sim. Na verdade, isso é uma lenda, mas aprendi quando estive no Peru e gosto de repetir.
Antes de vir ao Brasil, ele passou dois meses em Lima juntando dinheiro para chegar a São Paulo. Precisou pagar quase 500 dólares (pouco mais de 1.000 reais) para um “coiote” peruano atravessá-lo na fronteira em um Fiat Uno com outras seis pessoas ao mesmo tempo. Era um em cima do outro, bem apertado.
Ontem, ele voltou à igreja que foi seu primeiro abrigo paulistano para tentar ajudar os “irmãos” que chegaram aos montes do Acre, na região Norte do Brasil. Desde que o governo acriano fechou – alegando não ter mais condições de atender os imigrantes - no dia 12 de abril o abrigo de Brasileia, na fronteira com o Peru, centenas de haitianos se espalharam pelo país. Nessa conta estão os mais de 800 que viviam no abrigo nos últimos meses e os quase 40 que chegam por dia ao Brasil principalmente pelas fronteiras peruanas.
Nos últimos três dias, cerca de duzentos desembarcaram em São Paulo. Percorreram 3.700 km de distância, uma viagem de três dias e duas noites de ônibus. A maioria chega, além de cansada, sem documentos necessários para conseguir trabalho. Os que têm os documentos em dia, arrumam empregos mais rapidamente.
Na tarde desta terça-feira, dezenas de haitianos se acumulavam nos pátios da igreja, que tem um complexo para receber imigrantes. Mas nem todos conseguiram um lugar para dormir. A casa, que comporta 110 pessoas, estava quase lotada. Às 17h30 havia apenas mais quatro vagas na casa, que os funcionários e os padres que administram o centro estavam decidindo quem seria beneficiado, provavelmente os que estivessem mais debilitados. Sem espaço para todos, alguns imigrantes ainda não sabiam onde dormiriam. Vários se acumularam no chão de uma sala improvisada ao lado da igreja. Roniel levou dois amigos para casa, um casebre de madeira de três cômodos perto de uma favela de São Miguel Paulista, na zona leste paulistana.
- Mas você já os conhecia antes?
- Não. Mas isso não quer dizer que eu não possa conhecer agora. Esse aqui do meu lado é eletricista, faxineiro, garçom e professor de inglês. Tem um emprego no seu jornal para ele?, dispara.
O tal profissional multitarefa, chamado Wilfrid, é tímido. Diz que veio ao Brasil por duas razões: não há emprego no Haiti e onde teria uma oportunidade, na República Dominicana (único país vizinho ao seu), os policiais e a sociedade recriminam os trabalhadores haitianos.
- Já vivi lá. Eles não nos tratam como irmãos. Estou no Brasil, ilegal há pouco mais de quatro meses e não fui maltratado por ninguém ainda, afirma Wilfrid, que sonha um dia poder trazer a mulher e os dois filhos.
Enquanto a conversa desenrolava, diversos haitianos se aglomeravam no entorno. Todos na expectativa de que o repórter fosse um agenciador. A cena se repetia várias vezes quando algum brasileiro sacava um caderno ou um pedaço de papel. Só parou quando dois representantes da paróquia apareceram e entregaram documentos para um grupo de 14 haitianos. Sorrisos largos no rosto, abraços apertados nos “irmãos” que mal conheciam e saudações de despedidas. Eles tinham acabado de assinar o contrato de trabalho para trabalhar em uma fazenda em Santa Catarina, no sul do país. Vão trabalhar em uma plantação de maçã.
Além de agricultores, os haitianos que chegam com cada vez maior frequência a São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul costumam trabalhar na construção civil, em frigoríficos, matadouros, restaurantes e hotéis.
- A área de trabalho é bem diversificada porque eles querem mesmo é trabalhar. Não importa em que, diz o padre Antenor Dalla Vecchia, diretor do centro de migrantes.
Não há dados oficiais, mas antes mesmo do fechamento do abrigo acriano, já havia registro de migrações para o Mato Grosso, Minas Gerais, Ceará, Amazonas e Pernambuco, entre outros.
Divisão
Estabelecido na região do Glicério desde a década de 1940, o centro do imigrante da paróquia Nossa Senhora da Paz acompanhou todo o recente movimento migratório para o Brasil. O centro onde hoje o idioma mais falado é o creole já ouviu muito italiano, coreano e espanhol (da América Latina). Mais recentemente, passou a receber exilados sírios, paquistaneses e africanos.
- O movimento migratório no Brasil tem crescido a cada ano. Nós, que trabalhamos com isso, e os Governos precisamos nos preparar para receber cada vez mais pessoas, diz Dalla Vecchia.
O recado dele é sútil, mas direto ao mesmo tempo. A maior parte dos filhos do Haiti que chegam a São Paulo vai direto para a igreja no Glicério, que é bancada pela Congregação dos Padres Escalabrianos e por poucas parcerias com empresas privadas. Um fato que chamou a atenção: dos 15 haitianos recém-chegados ao Brasil ouvidos pela reportagem, 12 já tinham uma recomendação da embaixada ou do consulado brasileiro no Haiti para procurar a igreja Nossa Senhora da Paz.
O abrigo no Acre, que era mantido pelo Governo estadual e pela prefeitura, é um exemplo da ausência do poder público federal na recepção dos haitianos. Apesar de conceder o visto humanitário aos haitianos que querem viver no Brasil, o governo brasileiro pouco tem feito para receber os imigrantes, conforme organizações de direitos humanos. O caso já foi levado para a Organização dos Estados Americanos.
O abrigo do Acre foi construído em 2011, um ano depois do terremoto que matou cerca de 220.000 pessoas e deixou 1,5 milhão de desabrigados. Nesses três anos de funcionamento, mais de 20.000 refugiados do Haiti passaram por Brasileia. Para chegar até lá muitos desembolsaram todo o dinheiro que tinham. Paulin e seu amigo Rony, que chegaram há duas semanas em São Paulo, disseram que gastaram 5.000 dólares (pouco mais de 10.000 reais) cada um com passagens até Lima e coiotes até o Brasil.
Não imaginavam que viveriam em condições desumanas ao chegar ao país. Quando a ONG Conectas Direitos Humanos esteve no Acre, em agosto passado, a situação só não era pior do que em presídios brasileiros porque lá os abrigados tinham certa liberdade de circulação. Segundo relato da ONG, havia 800 pessoas em um local que comportaria 200. Todos dividiam 10 latrinas e 8 chuveiros. Não havia distribuição de sabão ou pasta de dente e o esgoto corria a céu aberto.
Agora, com o fechamento do centro, muitos deles ficam sem rumo, sem casa, sem emprego. Mas não perderam a esperança.
- A esperança só vai morrer junto comigo, disse o multiprofissional Wilfrid, primeiro em creole, depois em inglês.
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Imigrantes haitianos se espalham pelo Brasil após fechamento de centro no Acre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU