10 Abril 2014
Estudioso das questões do desenvolvimento econômico há décadas, Wilson Cano, professor do Instituto de Economia da Unicamp, diz que o Brasil está sem rumo e falta um projeto nacional de desenvolvimento.
Para o economista, um dos grandes problemas é a perda do controle sobre os instrumentos de política macroeconômica depois das reformas neoliberais dos anos 1980-1990 e as "amarras" com a Organização Mundial do Comércio (OMC). Diz que sem o controle desses instrumentos, cedendo às pressões do organismo internacional e do capital financeiro, é impossível fazer uma política industrial efetiva, reanimar a indústria e o próprio crescimento do país.
A reportagem é de Vanessa Jurgenfeld, publicada no jornal Valor, 09-04-2014.
Eis a entrevista.
Como o sr. analisa o baixo crescimento da economia brasileira nos últimos anos?
Nós tivemos um curso da nossa história que foi truncado em 1970 com a crise da dívida. De lá para cá, as diferenças são que, nos anos 80, o PIB cresceu a 1% ou menos, nos 90 cresceu a 2%, depois a 2,5%, depois, entre 2003 e 2009, graças ao boom de commodities da China, crescemos a 4,5%, 5%. Agora, se você tirar a média histórica de 80 para cá, é simplesmente deprimente. E parte da crise social não está pior porque a taxa de crescimento demográfico baixou muito. A demografia nos livrou de problemas bastante sérios que teríamos que enfrentar agora. Então, nossa crise é estrutural e de 30 anos, vem dos anos 80, trazendo efeitos cumulativos.
Quais efeitos cumulativos?
Os erros da ditadura militar, que geraram a crise do endividamento, e depois os erros crassos da adoção de uma política neoliberal, que foram e são calamitosos.
A quais erros da política neoliberal o sr. se refere?
Os erros advindos do neoliberalismo são as reformas do Consenso de Washington - desregulamentação financeira, abertura comercial, as reformas da relação capital-trabalho, reforma da previdência social, privatização e encolhimento do aparelho do Estado. Essas coisas, que motivaram palmas e elogios na mídia durante muito tempo a muitos empresários, cobram um preço muito pesado para o futuro. Nos livramos das estatais e nos livramos também da possibilidade de atuar diretamente no comando da política econômica de vários setores-chave. Se hoje estamos com problemas de logística, de comunicações, de energia, em parte se deve a isso. Simplesmente se entregou a coisa ao setor privado, achando que ele iria resolver os problemas. O setor privado se move com uma perspectiva de uma taxa de lucro.
Quando essa taxa estremece, ele recua. Além disso, infraestrutura exige pesado financiamento de longo prazo, portanto, imobilização de recursos por muito tempo. É muito complexo deixar exclusivamente na mão do setor privado. E foi muito pior, porque foi uma privatização de fato e de direito. Aquilo que estava afeto a ministérios, controlar telecomunicações, eletricidade, navios, virou todo um arremedo de controle público que são as agências, como Anatel e Aneel. Aquilo é um conjunto de pessoas que vieram do setor privado e que não são o Estado. É um ente híbrido e que, portanto, não pode fazer uma administração pública desses setores. Então, o Estado foi desmantelado.
E isso gerou impacto nas políticas de desenvolvimento?
O Ministério do Planejamento hoje se converte em um ministério de contabilidade pública. Não é um ministério que usa orçamento público como instrumento de política de desenvolvimento. Você não tem uma estratégia de planejamento. Então, crescemos pouco, porque nos amarramos não só a essas reformas [neoliberais], mas também nos amarramos com a OMC.
Em que sentido "nos amarramos" com a OMC?
A abertura comercial, além de reduzir as tarifas violentamente e eliminar um monte de entraves às importações, escancarou o parque produtivo nacional à competição internacional. Essas falas - 'vamos elevar a produtividade', 'vamos introjetar ciência e tecnologia' -, eu ouço desde pequenininho, como se tecnologia fosse uma maria-mole que você compra na venda da esquina e dá para criança. Isso passa por decisões de empresários e por questões que não são fáceis de ser administradas. "Se vier uma ventania forte, essas reservas não sustentarão equilíbrio do país e corremos risco de enfrentar crise severa"
Alguns economistas defendem que é preciso melhorar a produtividade do capital e do trabalho para o país avançar mais...
O empresário introjeta tecnologia e ciência quando tem expectativa de retorno. Se você está destruindo a sua indústria, encolhendo cadeias produtivas, importando as coisas mais complexas e mais caras e deixando a coisa mais fácil e simples para se fazer aqui, que ciência e tecnologia vai embutir aqui? O pior é que, como você não tem rumo, não há um projeto nacional, não sabe o que fazer também com o sistema educacional. Aí inventa educação sem fronteiras e está uma festa. Estão mandando aluno para tudo que é lado no mundo, como se o cara fosse aprender algo muito inteligente no interior de Portugal, que é um submisso na União Europeia. Estamos fazendo essas barbaridades.
Há economistas e empresários que dizem que houve nos últimos anos aumento do Estado na economia e isso seria um dos principais problemas...
É o contrário. O Estado se retirou da economia. Era responsável por cerca de 50% da Formação Bruta de Capital Fixo do país. Hoje, não responde nem por 20%. O investimento público federal foi ao chão, e o dos Estados e municípios está rastejando. A presidente Dilma Rousseff ainda elevou o investimento público federal, mas muito pouco. E ela não consegue mudar isso.
Antes você tinha um orçamento público federal e havia uma fatia que você podia dedicar ao investimento público, ao financiamento público das estatais, ou o que quer que fosse. Agora entraram aí juros, que consomem 40% da receita federal líquida, consomem cerca de 5% do PIB.
Isso era a participação do Estado na taxa de inversão. Então, a nossa taxa de investimento não pode subir. E não há economia que cresça de forma sustentada e elevada, se a sua taxa de investimento não sobe.
Qual a profundidade do problema da competitividade da indústria brasileira?
O que fizeram Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul? Eles transferiram à China boa parte da sua capacidade de produção industrial pelos salários mais baixos e condições da economia muito melhores. Lá eles poderiam realmente ter uma competitividade avaliada em moeda e inundaram o mundo com manufaturas da China, desde as simples até as de maior complexidade. É um mito pensar que poderíamos enfrentar China, Japão, Coreia. Simplesmente porque, ao escancarar essas condições externas [abertura, entrada na OMC], você acabou com um instrumento poderoso que o Estado tinha, que era o de fazer controle do comércio exterior, de tentar proteger determinados segmentos da produção nacional. Você não pode mais fazer isso.
Por causa da OMC?
A OMC não deixa. Ela só te permite fazer alguma restrição diante de uma crise grave de balanço de pagamentos e durante certo tempo. Já estão exigindo do Brasil que acabe com a tarifa de 30% dos automóveis. E tem um outro lado ainda mais cruel, que é a exacerbação do sistema financeiro internacional. Com a longa crise que vem dos anos 70, arrefeceram-se os níveis de produção, o crescimento desacelerou no mundo, e o capital, que antes tinha ovos produtivos e os colocava num ninho para gerar mais produção, diminuiu esses ovos na produção e passou a colocá-los no ninho financeiro.
O capital foi deixando de ser basicamente produtivo para se converter cada vez mais em capital financeiro. E o que sucedeu com os empresários que receberam uma cacetada diante da abertura? Reduziram níveis de produção e colocaram mais ovos na cesta financeira. De lá para cá, uma fatia crescente da massa de lucro das empresas não é fruto de produção, mas de aplicações no sistema financeiro. Hoje, há empresários ganhando mais dinheiro no sistema financeiro do que produzindo sapatos, salsichas ou lingotes de ferro.
Quando se eleva a Selic, chiam porque pagarão financiamento mais caro, mas riem de felicidade, porque a aplicação financeira dará lucro maior do que se fizessem sapatos.
É uma contradição?
É uma contradição que se refletirá no sistema de tomada de decisões nacional. O poder não vai ter mais uma frente empresarial, como nos anos 1970, que dava sustentação ao avanço da industrialização.
Outros países, como Estados Unidos, parecem mais preocupados com uma reindustrialização, após perder indústrias para Ásia....
Eles perderam em termos. A desindustrialização no Hemisfério Norte tem caráter distinto da desindustrialização aqui. As duas diminuíram a proporção da indústria de transformação no PIB, só que a do Brasil diminuiu de maneira precoce, porque não fez crescer o que deveria crescer.
Aquela diminuiu porque os serviços cresceram muito, talvez tenham perdido um pouco de indústria. Mas as empresas americanas estão na China e mandando lucro aos EUA. Essa perda é bem relativa, diferente da nossa. Nós perdemos mesmo, porque não temos estratégia nenhuma. E isso não é uma debilidade do governo Dilma, Lula ou FHC. Mas é que, com adoção dessas políticas macro, você não tem direito de formular nenhum programa nacional de desenvolvimento.
Quais as principais consequências em não se ter um projeto nacional de desenvolvimento?
Sem isso, não há rumo, porque as decisões passam a ser tomadas porque o mercado financeiro gritou, porque a bolsa caiu, o dólar subiu, enfim, você volta a viver as pressões diárias do tal do mercado financeiro, que é quem no fundo faz as pressões na política econômica que nos restou, que é elevar os juros e aumentar o superávit primário para poder pagar juros a ele.
Alguns economistas dizem que há recuperação da indústria brasileira nos dados do início deste ano. Como o sr. analisa isso?
A indústria não se recuperou coisa nenhuma. Isso é produto de determinadas flutuações estatísticas. Houve erro de política industrial, mas o crucial é o modelo de crescimento e de política econômica que encarnamos em 1990 e não mudamos. E é por isso que a oposição é fajuta. Para ser oposição, teria que poder criticar. Mas não pode, porque foi ela que inaugurou esse modelo de política de juros altos, câmbio valorizado e superávit primário.
O sr. acredita que o modelo macro vai seguir sendo o atual?
Acho que sim, só que certas coisas têm limites. Em economia, nada é eterno, nada é contínuo. Por exemplo, cuidado com as contas do setor externo, porque [alguns dizem que] a vulnerabilidade do país baixou consideravelmente, porque exportamos commodities e acumulamos US$ 370 bilhões de reservas. Mas eu digo: alto lá, cavalheiro. Essas reservas são fruto de quê?
Um país acumula reservas por três razões: porque tem superávits comerciais, por receber notáveis fluxos de investimentos externos produtivos e por ter recebido capitais de empréstimo, ou mesmo especulativos, em quantidade apreciável, que o ajudaram a fazer caixa. E esse [último] é o nosso caso. Nosso saldo comercial já foi para o brejo. Estamos com déficit. E o déficit da conta de serviços e de rendas supera nos últimos 15 anos largamente os superávits comerciais. O país vem tapando buraco à custa de investimentos diretos, que não cresceram como eram no passado, mas principalmente com investimentos financeiros, como derivativos, dívida pública. Nossas reservas não têm um lado real da economia. Estão calçadas em capital temporário, de alto risco.
Se vier realmente uma ventania forte, que é algo que está na agenda de vários autores, essas reservas não sustentarão o equilíbrio do país, corremos o risco de enfrentar crise severa.
Qual deveria ser o modelo para reanimar a indústria?
Aí é que está o problema. O governo vestiu uma camisa de força. Você tem seus músculos, seu cérebro, mas numa camisa de força você não consegue se mover. Se você não pode mover os instrumentos do juro, do câmbio, do crédito e das contas públicas, está amarrado. Esses instrumentos são fortemente interdependentes nesse jogo político internacional que entramos.
Você está com um avião e não consegue fazer voo alto. Não adianta, como fazem alguns economistas, dizer que precisamos de política industrial mais inteligente. É impossível. Você pode desenhar a política industrial que quiser, mas política industrial precisa de juros, de câmbio, de financiamento, de um grau de protecionismo à indústria nascente para introjeção de alta tecnologia. E você cedeu todos esses instrumentos ao admitir seu ingresso na OMC e fazer as reformas neoliberais. A possibilidade de mudança é mínima. Pode fazer política de desenvolvimento agrícola com recursos do Banco do Brasil. Faz uma estradinha, dá uma 'garibada' no porto, mas fazer uma fábrica de chip, avançar na petroquímica, na química fina, aí você não vai.
"Há empresários ganhando mais dinheiro no sistema financeiro do que produzindo sapatos ou salsichas".
Por que esses setores especificamente seriam importantes?
Fábrica de chip foi uma coisa estratégica para quem quisesse enveredar no ramo da microeletrônica. Você não tem o comando, o nervo da criação tecnológica na microeletrônica, se não fabrica chip. Aí tem que comprá-lo da Coreia, da China... Mas posso dar outros exemplos. O déficit de exportações na indústria química é severo, complexo. Ficaram fazendo bobagens com a Petrobras, de comprar refinaria em vários países, fazendo coisas do arco da velha, e não cuidaram como deveriam da petroquímica e da Petrobras aqui dentro. Agora, ela paga caro, toma grandes empréstimos lá fora e estamos com problema no abastecimento de derivados de petróleo, uma política em parte equivocada. E vamos afundar o setor de etanol, com essa política de preços de combustíveis.
O governo tentou enfrentar a pouca competitividade industrial com subsídios, por exemplo.
São paliativos usados muito mais na hora que a onça vai beber água. Na crise do 'subprime', que ia bater aqui, eles correram e deram estímulos, mas que têm limites estreitos. A OMC não aceita isso em caráter permanente.
O resultado do PIB de 2013 mostrou avanço da taxa de investimento. Há uma mudança?
Mesmo nos anos melhores, o investimento não atingiu nem 20% do PIB. Tivemos 25% nos anos 70. E há também uma diferença qualitativa. Economistas pecam porque olham a taxa de investimento e não a sua estrutura. Nos anos 70, a parte alocada na indústria de transformação era substancial. Hoje, não. E isso se reflete também na estrutura do investimento direto externo, que vem muito mais para serviços, agrobusiness, mineração e pouco à indústria.
Há economistas que defendem criação de grandes grupos nacionais como forma de melhorar a competitividade. O que o sr. acha?
Essa ideia foi fruto de um fato que ocorreu no capitalismo. Quem mostrou realmente capacidade de engendrar gigantes foram os americanos. Os alemães já tinham noção disso com as políticas de cartelização no século XIX, tinham corporações fortes; aí os japoneses copiaram isso, os coreanos também; e a China, que tinha as suas estatais. Mas eles possuem muito mais do que apenas grandes empresas. Têm moeda conversível internacionalmente, reservas, controle sobre o câmbio, sobre os juros. Nós não temos. Que grande empresa internacional você vai fornecer, se não tem moeda, se não há controle sobre a política macroeconômica? É até apostar demais que aquele grupo privado beneficiado por financiamento público é tão schumpeteriano que vai ter sucesso internacional descomunal para virar grande grupo. Não creio nisso. Várias apostas já foram feitas de maneira errada. Esse Eike [Batista]...Há anos que chamo a atenção de meus alunos de que ele é o "Farquhar" brasileiro.
Farquhar?
Teve um financista americano hábil no início do século XX, chamado Percival Farquhar, que montava castelos de cartas. Um dia alguém puxou uma cartinha...É evidente que isso é um fenômeno especulativo. Nós embarcamos nessa canoa. E o BNDES não tem que ficar nisso.
Qual seria a saída?
Pode ser que se consiga diante de certas circunstâncias internacionais montar uma saída de médio a longo prazo, cuidadosa, gradual, para que se possa administrar os inevitáveis confrontos externos e internos. Se vou mexer nos juros, desvalorizar o câmbio e até subir um pouco a inflação, posso ter chiadeira nacional e o sistema financeiro sairá de armas na rua. Tenho que administrar isso, a indústria, o agronegócio. Qualquer peça que se mexa neste tabuleiro afeta interesses cristalizados. Se quiser aumentar proteção à indústria nacional, vai vir a OMC e dizer não.
Então, chegará um momento em que você vai ter que dizer não à OMC. É uma briga feia e complicada. Quem sabe haveria com isso possibilidade de realmente se montar uma integração latino-americana. Não que isso resolva a magnitude dos problemas que temos. Mas seria um contraponto interessante.
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